Mostrar mensagens com a etiqueta 2024. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 2024. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Filosofia: o despertador das paixões. Cadeiras que são cebolas e o novo ano letivo?


 

Dado que estamos prestes a iniciar um novo ano letivo nada melhor do que aproveitar o tempo e partilhar algumas dicas de ensino. Um destes dias via uma série na Netflix com um autor americano que tinha como tarefa convencer políticos a melhorar as condições das cidades de modo a garantir mais saúde e bem-estar e aumentar a longevidade das pessoas. A determinado momento o autor refere que nos EUA tem de se arranjar sempre um argumento pela economia. Se for economicamente viável, pode ser aceite. Caso contrário está condenado ao fracasso. Pouco depois quando questionado sobre como as pessoas vão aderir a novos programas que visem a sua longevidade, o autor responde de um modo curioso. “É preciso ser sexy”. Pois eu acredito que a apresentação de uma disciplina como a filosofia para novos alunos tem de ser do mesmo modo. É o primeiro passo. E não é nada fácil consegui-lo, principalmente quando tem de se repetir a dose entre várias turmas, com múltiplos níveis de ensino e disciplinas com que se desdobra um dia de trabalho de um professor. E eu próprio não tenho resposta a todas essas barreiras. Afinal de contas estou no mesmo barco. Acontece que o trabalho pode ser divertido e é nesse sentido que aqui escrevo estas linhas, pois o trabalho que faço, ensinar filosofia, ainda me diverte. Pensem que passamos muito tempo das nossas vidas dentro de uma escola. Porque não aproveitar? Estas sugestões são aplicáveis tanto no 10º como no 11º, embora estejam mais pensadas para o 10º ano. E é necessário pensar sempre que vamos estar pelo menos 9 meses com aqueles alunos, pelo que de nada vale se a surpresa inicial não for conduzida nos meses seguintes ao que pretendemos. Esperem!!! Eu escrevi “9 meses”? Pois... isto.... não vos lembra nada? A Maiêutica socrática? É isso colegas. Estamos em trabalho de parto após estes 9 meses e nós, os professores, somos os parteiros (as). E o trabalho de parto é exigente e não são todos iguais. Uns são mais fáceis e outros mais difíceis. 

Vamos à obra? Vou concentrar-me em 2 ou 3 ideias simples para uma primeira aula. E os exemplos que vou aqui dar foram todos usados por mim em anos anteriores, uns mais bem-sucedidos que outros. 

Primeiro que tudo: pensem no Plano B. Chego mesmo a pensar no Plano B antes do A. “E se isto não funciona?...”, “bem... avanço então por ali”. E não pensem que mesmo ao fim de quase 30 anos a ensinar filosofia não fico ocasionalmente “encravado” sem saber bem que direção tomar. Faz parte. A menos que optem pelo seguro que é chegar à sala e cumprir apenas com o plano, sem contarem que vocês são professores e professoras, sem contar sequer que amam aquilo que fazem, sem se emocionarem pelo facto de nós mesmos, que estamos na filosofia, por vezes nos aborrecermos com ela e sentimos o vazio que qualquer ser que se questione tem de sentir ocasionalmente. 

Então e o que fazer? E os exemplos? Está bem, está bem. Vamos a isso.

 

Exemplo 1: a gravidade é uma treta

Há uns anos entrei na sala de aula na primeira aula com um prato de plástico, a habitual garrafa de água e uma maça. Nunca tinha visto aqueles alunos na vida. Sem lhes dirigir a palavra, peguei no prato com uma mão e coloquei a maça bem no meio. Depois peguei com a outra mão na garrafa de água aberta e fui despejando água por cima da maçã, a ponto de a água transbordar a pequena beira do prato e cair ao chão. Os alunos pávidos a observar o que aquele doido estava a fazer. No final ouviram a minha voz pela primeira vez quando disse apenas uma frase: “Acho que acabei de provar que a terra é plana”. Foram vários os teens que irritados me contrariaram com os argumentos que conhecemos. “É a lei da gravidade?”E eu apenas fui colando questões: “O que é isso da lei da gravidade?”, “a lei da gravidade vê-se?”, “Mas como sabem que existe se nunca a viram?”, “como conseguem provar que existe tal lei?”, “porque acreditam nos cientistas e naquilo que vos disseram os professores?”, “porque não acreditam no que acabei de vos mostrar?”.




 

Exemplo 2: quando as cadeiras são cebolas

Estes exemplos não estão aqui expostos por ordem cronológica pois este da cadeira inventei-o logo a seguir ao estágio. Raramente repito os exemplos. A razão? Farto-me deles e deixo de lhes achar piada. Numa boa discussão eu próprio enquanto professor de filosofia devo, acho eu, manter uma boa dose de ingenuidade e uma ainda maior de ignorância. Afinal, quero expor problemas e não respostas a problemas. Quero, queremos, apenas mostrar que as coisas são um pouco mais difíceis do que pensamos. E o exemplo? Ah bom! Entro na sala e mais uma vez sem me apresentar e coloco uma cadeira vazia em cima da minha secretária e faço apenas uma questão: “O que é isto?”. Obviamente os alunos mais corajosos respondem que é uma cadeira. “Mas se lhe retirar as pernas continua a ser uma cadeira?”, “E se lhe retirar o encosto?”, “E se a deitar estragada ao lixo?”. Já estão a ver, não é? Já temos a pancadaria montada na sala de aula, pois neste momento já há divisões, aqueles que acham que a cadeira mesmo no lixo sem pernas e encosto continua a ser cadeira e aqueles que acham que a cadeira deixou de o ser para passar a ser lixo. Usei este exemplo durante uns bons anos e muitos eram os alunos que nunca esqueciam esta primeira aula. Mesmo aqueles que se entediaram com o programa que temos de seguir (eu próprio me entedio bastante), continuavam a manifestar respeito pela disciplina que transformava cadeiras em cebolas. Sim, pois, uma vez que a determinado momento eu convidava os alunos a chamarem cebolas às cadeiras e na aula seguinte a primeira coisa que lhes dizia era: “Vá, sentem-se nas cebolas que a aula já começou”.




 

Exemplo 3: o universo nunca existiu

Poderia aqui relatar muitos mais exemplos. Uns não me recordo, outros não são tão expressivos. Mas o professor é também um criador de conteúdos, um inventor de roupagens para os programas de ensino. Sem esta criatividade não sei como encarar o ensino senão como uma tarefa que se executa sem gosto. Na primeira aula levanto apenas uma questão “O que é que vos garante que o universo não começou a existir há 5 minutos?”. Espero que imaginem a perplexidade que se gera numa sala de aula com uma questão destas. 

 

O desafio principal

 

Todos os anos costumo pensar nos meus objetivos e quais os principais desafios. Embora compreenda costuma-me bastante chegar todo enérgico à escola e ter de enfrentar todo um lado menos positivo que se resume a burocracias enormes, reuniões fora de horas, problemas profissionais de toda a ordem, gente a queixar-se ao mesmo tempo que insiste que amam o que fazem, etc.. cada um é como cada qual. Da minha parte e com a experiência que já tenho sugiro que os professores façam este exercício que parece ingénuo, mas é de uma eficácia tremenda. Escrevem 2 ou 3 objetivos para o ano letivo. Devem ser coisas que não vos envolve apenas a vocês, mas ao mesmo tempo que possam contribuir para que algo mude. Por exemplo não adianta de nada pensar como objetivo “melhorar as políticas educativas”, pois isso não vai acontecer numa década que fará num ano. Mas pensem em objetivos como este “fazer com que o máximo de alunos do 10º ano goste da disciplina”. Não adianta de nada escreverem nos projetos docente coisas articuladas com o projeto educativo da escola se vocês não sentirem que é isso que desejam. E não há problema nisto, pois qualquer projeto educativo tem escrito aquilo que qualquer professor motivado deseja que é o sucesso dos alunos. 

Já trabalhei com os meus objetivos (sempre e apenas 2 ou 3) de várias maneiras. Já os escrevi e meti dentro de um envelope que abria no final do 1º e 2º período para pensar se os estava a cumprir ou não e no caso de não os cumprir o que podia mudar. Já os escrevi junto ao horário para os ler todos os dias. Já fiz muitos e variados testes e nem sempre funcionam. Por exemplo sinto que de alguma maneira o ano que passou ficou bastante aquém dos meus objetivos. Nunca revelei os objetivos publicamente, mas vou neste momento revelar um dos meus objetivos para este ano que serve aqui apenas como exemplo do que exponho: “Trabalhar o foco dos alunos”. Já li e reli dezenas de coisas, desde artigos a livros completos (quem me segue nas redes sociais sabe que o faço) sobre a desatenção, a falta de foco, etc. Isto ao mesmo tempo que sinto que as minhas palavras não conseguem atingir os coraçõezinhos dos adolescentes e lá habitarem mais que 2 ou 3 minutos. Até há uns anos eu sentia que ficava ali eco. Agora nem por isso. Este meu sentimento tem exigido de mim duas coisas principais: a primeira que me informe, lendo artigos da especialidade, procurando formação adequada. A segunda, uma autoanálise. Eu estou mais velho e naturalmente mais rotinado. Até que ponto eu mesmo estou num ponto de viragem e a minha rotina afeta a minha perceção da realidade? Não quero aqui fazer dissertações sobre o problema da falta de foco das novas gerações, mas é do que mais se fala. E honestamente eu já conheço o problema. Só me interessa, enquanto professor, ajudar a resolvê-lo. Não me sinto confortável com a ideia de chegar ao final do 1º período e nas reuniões atribuir classificações baixas com justificações como “eles não me ouvem”, “não conseguem estar atentos e quietos 5 minutos”. Isto é obviamente verdade. Só que tenho de ter a consciência que é com ele que vou ter de lidar. E claro que é também no seio da nossa comunidade de trabalho que devemos resolvê-lo pois ninguém o vai resolver isoladamente. Contudo, é um dos meus objetivos e o principal deste ano que agora se vai iniciar: trabalhar o foco. Até porque sendo que qualquer disciplina e aprendizagem exige foco, a filosofia neste aspeto tem uma característica especial: não sendo experimental só se faz com o cérebro. E um cérebro desfocado nada faz, muito menos pensar. E, sublinho, trabalharei com os meus colegas de escola, de grupo e conselhos de turma, para levar avante este meu objetivo. O caminho é longo e são 9 meses até ao parto. 

 

Espero que estas sugestões simples e exemplos possam ser sexy, que possam estimular para que o ano letivo seja especial, pois a vida tem mais sentido se ela tiver um propósito e ensinar é um propósito para quem gosta desta profissão. 

Bom ano a todos 


Nota: as imagens usadas foram geradas por IA

 

 

 

 

terça-feira, 4 de junho de 2024

O ministério da grelha, Citizen Kane e a Inteligência Artificial

Eu acredito que é melhor tentar compreender a vida do que fazer de conta que já a compreendemos porque temos uma grelha.

 

Parte I

Há muitos anos, nos primeiros da minha profissão vi, pela primeira vez um professor que levou um computador portátil para uma reunião de avaliação. Na altura um portátil era uma ferramenta rara e muito cara. Era uma altura que nem computadores pessoais os professores tinham em casa. Ao longo da reunião fui ficando fascinado com a competência e rigor que o professor parecia inculcar no seu trabalho. Ele já usava uma grelha que calculava todos os resultados e foi talvez a primeira vez na vida de professor que ouvi uma frase que viria a ouvir anos a fio até aos dias de hoje: “A grelha não deixa mentir”. Só que foi exatamente nessa reunião que percebi que a grelha pode mentir e muito. E percebi isso no final da reunião. Na verdade, eu apenas tinha um caderno de fichas com os dados dos alunos em que tirava notas ao longo do ano das suas avaliações e depois transformava aquilo tudo num número que seguia para a pauta final. A grelha do meu colega soou-me a algo bem mais profissional. Mas no final da reunião fiquei com uma sensação estranha de que o professor foi em muitas situações mais injusto que eu. Como podia tal aparência de rigor não passar apenas de uma jogada disso mesmo, aparência? Afinal, para que me serviria aquela grelha se no final eu não pudesse emitir um juízo para além do que lá estava? Recordo ter pensado isto segundo uma analogia que sempre me motivou, com o futebol. Muitas vezes o treinador escolhe um jogador pois é o que lhe inspira maior confiança para aquele jogo naquele lugar. E até falha a sua escolha. Ora, parece-me, ainda nos dias de hoje, que o professor também pode fazer parte da sua avaliação com um juízo semelhante. Não como uma aposta, pois o treinador se é bom também não escolhe como uma aposta de lotaria, mas como o resultado do seu bom senso, da sua intuição. Mas vamos tentar perceber como funciona a avaliação. Vejamos numa pirâmide:

 

 

 


 

 

 

 

Se observarmos no topo da pirâmide aparece o professor, que é também um critério para classificar e avaliar os alunos. A classificação resulta de escolha que o professor faz. Se o professor não fizer parte da pirâmide, então para que existem professores? Pode objetar-se que usar uma grelha também é resultado de uma escolha do professor e por isso nada há a contestar. Bem, mas o que quero aqui defender não é que não se use uma grelha, pois não concebo já uma avaliação sem o recurso a grelhas de registo. O problema reside numa questão anterior à grelha: afinal como aparecem aqueles valores na grelha? O aluno teve média 12 nos testes e a grelha não mente. Mas o que a grelha não diz – nem tem de dizer – é que por detrás daquelas notas estão escolhas, que são feitas pelos professores: os testes são mais difíceis ou fáceis? Seguem os modelos de exames ou não? São testes inclusivos ou não? Quantos testes foram feitos? O peso atribuído aos testes é adequado à realidade? Todas estas questões davam verdadeiras teses de doutoramento se levadas a sério. E é exatamente essa razão que me leva a pensar que os professores não trabalham para o Ministério da Grelha, mas antes para o Ministério da Educação. Vou repetir a palavra: Educação. (a palavra Educar vem do latim que significa “tirar para fora”, “direcionar para fora”) Classificar é apenas uma das maneiras de dar uma informação ao aluno, muitas vezes carregada de vieses e, no caso do secundário, que determina apenas o mercado de trabalho que se segue às escolhas dos cursos nas universidades. E isto obedece a coisas por vezes que parecem tão invisíveis como: sistema político, contexto social, etc. Nada disto impede que se usem critérios, grelhas, etc. só que temos de ter consciência da gigante grey area que existe nesta matéria. E se assim for, parece-me uma boa solução recorrer a Aristóteles. Aliás, Aristóteles deveria fazer parte da formação para se ser professor. Para quem não sabe, a ética de Aristóteles é baseada na virtude do carácter sendo que a virtude desagua sempre num lugar: o meio termo.

 

Parte II

Citizen Kane

Teria eu uns 17 anos quando vi pela primeira vez o brilhante filme de Orson Wells, Citizen Kane, ainda hoje considerado por alguns cinéfilos como o melhor filme de sempre (passe o exagero). O filme estarreceu-me. É um filme com uma dinâmica muito tipificada no cinema norte americano e narra a história de um menino, o Kane, proveniente de uma família muito pobre e que os pais se veem obrigados a entregar a uma instituição que pudesse educar a criança. Num dia de neve o Kane chora agarrado a um pequeno trenó de madeira enquanto os homens da instituição o forçam e o levam. A instituição faz de Kane o cidadão exemplar. E que cidadão é esse? É o do homem de sucesso. O homem que estudou e faz fortuna, o homem que se apaixona por uma mulher sem talento mas com pretensões a cantora lírica e manda construir uma ópera apenas para ela se mostrar ao público, enfim, o homem que tem o mundo a seus pés (este é mesmo o subtítulo do filme na versão portuguesa). Só que as cenas iniciais do filme exibem Kane, completamente só, no leito da morte, num hospital, agarrado a uma daquelas bolas de vidro com uma casinha e neve a cair se abanarmos a bola. E repete e enigmática palavra “Rosebud” umas quantas vezes. Imaginem, diabo seja surdo, o nosso Ronaldo no leito da morte e sussurrar uma palavra qualquer como “caracoleta” umas quantas vezes. É suposto que na hora da morte nos lembremos do que nos está mais próximo, que procuremos esse conforto para a nosso fim certo. E Ronaldo disse “caracoleta” e não “Giorgina” ou “Cristianinho”. Estão a imaginar a coisa? Todos entrariam numa corrida louca para tentar perceber quem é Caracoleta. Será uma mulher que amou secretamente? Seria o nome íntimo que daria a uma pessoa que ama? O mesmo aconteceu com Rosebud no filme de Wells. Quem era Rosebud? No final do filme aparece um dos criados do Kane, após a sua morte, a atirar para uma fogueira os pertences mais pessoais de Kane. E o filme termina quando atira o trenó dele de quando era criança. No meio do fogo que destruía o trenó consegue-se ler o que está escrito na madeira, “Rosebud”. Quando vi o filme, teria os meus 17 anos, percebi que a mensagem que ali poderia estar seria acerca do “significado”. Nós somos seres que atribuímos significado(s) às coisas e vivemos em função do que presumimos ou desejamos que as coisas signifiquem para nós. Quando, nós, professores, metemos uma nota numa pauta que é o resultado de uma conta numa grelha, qual é exatamente o significado que esperamos que os nossos alunos ali vejam? Que sonhos são criados e mortos numa grelha com números? Eu não tenho respostas a estas questões. Mas não interessa que as tenha. Interessa, isso sim, que se estas questões tiverem importância para nós, que pensemos nelas. Recentemente uma professora da Finlândia, que tem um sistema educativo famoso, falava-me da importância de sabermos conviver com a floresta. E eu fiquei a pensar nisso: como posso viver num ecossistema que desconheço quase por completo? Como poderia eu viver numa floresta apenas coberta de eucaliptos sem diversidade? E percebi que os meus alunos passam a sua vida escolar dentro de salas de aula fechados, sem ver a natureza, a trabalhar em função de resultados que aparecem nas grelhas. Será isto um exagero da minha parte? Vamos pensando.




 

Parte III

Gosto de fazer confissões públicas da minha vida pois a minha vida tem muitos aspetos que são e devem ser públicos. Vem isto a propósito que quem me conhece, até nas redes sociais, sabe bem que eu adoro tecnologia, mas não ligo nada a carros. Isto dá-me muito jeito, pois como até vivo numa ilha comprei o carro mais barato que encontrei novo, um Twingo bem engraçado de conduzir por sinal. E assim sobra-me algum dinheiro que invisto nos tablets, computadores, alexas da vida e outros brinquedos com os quais passo algum tempo. No seguimento disto percebe-se facilmente que eu adoro a inteligência artificial, ainda que considere que o seu estado de desenvolvimento está longe de ser aquilo que ela se poderá tornar um dia. No que ela se pode tornar é um assunto do reino da ficção científica e eu nem vou entrar muito por aí. Mas não deixo de imaginar contextos em que a IA faz as coisas por mim (já agora, engomar roupa dava-me jeito. Não que a engome, mas tenho de pagar a quem o faça). Gradualmente a IA pode começar a fazer tudo por mim. O ponto exagerado disto seria algo como a matrix em que estamos conectados à realidade ficcionada por chips eletrónicos (ainda que isto levante aqui questões filosóficas bem apetecíveis). A IA pode fazer muito por mim. Pode até substituir-me um dia como professor. Não é disto que a malta tem medo? Que percamos todos os nossos empregos? Para dizer a verdade não tenho medo da perda de empregos, pois acho que para isso arranjamos soluções que são boas e rápidas. O problema que para mim é aterrador é a perda de significado, é que todos passemos a viver a vida avaliada numa grelha, como o Kane e percamos o significado e a nossa capacidade de o tentar compreender. Se quiserem, o que mais temo é mesmo que percamos a capacidade de amar, pois não há amor que seja traduzível numa grelha. 


(imagem gerada por IA)


 

Este texto resultou na última aula que lecionei à minha turma 11º4, uma turma cheia de alunos talentosos, curiosos, bons estudantes, mas que eu senti muitas vezes que viram a sua vida atolada nas grelhas dos professores. E também senti a necessidade de numa última aula lhes falar de grelhas, do Orson Wells e IA. Foi talvez a aula mais livre do ano.  Eu acredito que é melhor tentar compreender a vida do que fazer de conta que já a compreendemos porque temos uma grelha. 

segunda-feira, 18 de março de 2024

Pequena introdução à lógica proposicional clássica

Inseri na secção "Videos" deste blogue uma nova aula, inicialmente gravada apenas para    os meus alunos, mas disponibilizada para    todos. 



Apontamentos sobre avaliação e classificação

O grande objetivo do ensino é que os alunos aprendam. E a aprendizagem implica a aquisição de ferramentas mais ou menos teóricas que lhes permitam ser autónomos. De uma maneira simples, mas não menos exata, é para isso que serve o ensino. Um exemplo: em filosofia trabalhamos filosofia da arte. Na filosofia da arte trabalhamos o problema de saber que propriedades (se é que as há) distinguem um objeto que consideramos de arte de um que não o é. No início do estudo é mais ou menos natural que o estudante resuma uma resposta com esta natureza: é arte aquilo que cada um considerar arte. Esta é uma posição subjetivista e nenhum aluno está impedido de defender uma posição subjetivista. Mas se após umas semanas a estudar teorias no final o aluno ainda assim considerar o mesmo sem pelo menos hesitar, talvez isso seja sintoma de que não progrediu em competências. O curioso é que isto pode acontecer – ainda que seja mais difícil – a alunos que fazem apenas copy paste e o sistema de ensino reconhece-os como excelentes alunos. Contudo é impossível progredir sem conhecer as teorias, mas o conhecimento das teorias não é suficiente já que é também necessário que se pense autonomamente sobre o que se estuda. O trabalho do professor é, naturalmente, inventariar processos para avaliar. No ensino secundário, com honrosas exceções, esta avaliação mede-se entre 70% a 90% com testes escritos. E nos testes escritos, de filosofia, ainda persiste uma percentagem muito grande para a resposta final onde se pede ao aluno que disserte autonomamente sobre o problema. E classifica-se assim o aluno. Os próprios manuais de ensino, os mais adotados, incluem testes com resposta de desenvolvimento que valem 5 valores em 20. Ora, vou aqui defender e tentar mostrar que isto é errado e um modo agressivo de fazer uma avaliação. Defendo isto porque dar uma percentagem de 25% da classificação num teste a uma tipologia de questão é apenas dar a vantagem a quem melhor se sai nessa tipologia de questões. O IAVE já se deu conta disso e uma questão de desenvolvimento vale apenas mais umas décimas que uma de escolha múltipla. Pela experiência que tenho, muitos professores acham isso apenas uma maneira de facilitar. E não é. Abundam estudos empíricos em avaliação que revelam que a maneira mais justa de avaliar é fazer uma distribuição equitativa pelas diferentes tipologias de questão. E o mesmo pelas várias tipologias de classificação de final de período, o que desde já chumbaria, suspeito, a maioria das escolas portuguesas quando colocam os testes no patamar dos 70% a 90%. Não vou tanto centrar-me nos critérios gerais, mas mais naquilo que vejo recorrentemente acontecer em testes. E assumo desde já ser um erro que testes valham mais que 50% da classificação final dos alunos. E o desempenho que um aluno pode ter no exame nunca se deveria medir pelo desempenho que tem ao longo do ano. Nem me parece ser um exercício muito difícil perceber que um aluno pode ter um excelente desempenho a trabalhar em projeto e um mau desempenho a fazer um exame. Ora se estivermos apenas a ver como objetivo que desempenho terá esse aluno no exame e o classificarmos tal como é feito num exame, apenas estamos a salvaguardar uma eventual imagem do professor e da escola para assegurar que a média interna iguala a média dos exames. Isto tem sido a pressão a que as escolas se sujeitam com os rankings. Defendo que as escolas deveriam reivindicar uma diversidade de avaliações. Pese embora, claro, qualquer profissional numa escola deseja um bom desempenho dos seus alunos em exames. Mas pode prepará-los para exames ao mesmo tempo que não sujeita os alunos a testes que são apenas modelos de exames. Isto, na minha opinião, distorce um pouco o ensino e torna-o bastante menos inclusivo. 

Vamos aos testes. Se um teste – no caso de filosofia – tem uma questão que vale 25% de todo o teste, está-se a privilegiar apenas os alunos que melhor desempenho tem nessa competência. No caso específico da filosofia a defesa é que o aluno de filosofia tem de saber interpretar e expor o que pensa em texto. E estiou de acordo com isso. Contudo nem todos os alunos de filosofia querem ser filósofos. Além disso abundam os filósofos que nem por isso são bons escritores e até se revela muito difícil compreender o que escreveram. É por isso que agradeço a Russell escrever tão claramente e nem por isso agradeço o tom metaforicamente embrulhado de um Nietzsche. Mas não é necessário ir tão longe. A questão a fazer é simples: poderá um aluno de filosofia responder pelo menos a 50% do teste sem por isso ser um grande escritor? E a resposta mais óbvia é sim. Isto porque a filosofia não resulta – sequer – de uma escolha do aluno no secundário. É uma disciplina que o aluno está sujeito obrigatoriamente nos cursos gerais. Por outro lado, se queremos dar uma real oportunidade aos alunos de se preparem para o exame, porque não, então, fazer testes cuja classificação é aproximadamente igual à dos exames? Fiquei tanto mais admirado quando  na ultima fornada de manuais escolares onde as propostas dos testes são feitos da maneira clássica onde ou se sabe escrever bem ou então é mais difícil uma excelente classificação. Pode-se até conceber um teste onde uma resposta de desenvolvimento tenha esse peso. Fazê-lo de maneira sistemática é excluir e não incluir, Mais radical que isto foram os meus primeiros anos de ensino nos quais os testes eram apenas 4 questões de desenvolvimento e cada uma valia 5 valores. Hoje olho para trás e penso em duas coisas: 1ª a quantidade de alunos que sofreram injustamente com esta forma de os classificar 2º que nesses tempos fazia algum sentido pois na verdade apenas os alunos com esse tipo de competência estavam no secundário. Mas sejamos justos: ensinar quem já vem ensinadinho de casa é fácil. Difícil é ensinar os outros, que são exatamente aqueles que dão sentido ao trabalho de um professor, os que não nos chegam às mãos com estas competências desenvolvidas.

Recentemente nas Olimpíadas de Filosofia, o professor Carlos Café foi convidado para “explicar” como se trabalha a classificar e avaliar com o PPF, Projeto Pessoal de Filosofia. Tenho relativo conhecimento de como se faz, até porque o Carlos Café faz questão de o divulgar de maneira intensiva nas suas redes sociais. A questão a colocar é: os alunos do professor Carlos Café e da escola onde trabalha aprendem menos filosofia e a filosofar que os outros porque não passam o ano focados em fazer testes para os preparar para exame nos quais tem de saber redigir uma resposta que vale 25% do total de um teste? E a resposta é: NÃO. São este tipo de exemplos que nos revelam que muitas vezes a maneira como estamos a avaliar e classificar servem mais os nossos interesses de professores e expõem também a nossa incapacidade de fazer aquilo que em educação deveria ser mais a regra: diversificar e arriscar. O primeiro passo é simples: acertem com os vossos alunos: vamos fazer um teste diferente do habitual. E surpreendam-se quando os melhores deixarem de o ser de maneira destacada porque outros começam a brilhar. Ou então nos vossos grupos de trabalho tenham a coragem de alterar as percentagens da avaliação. Há muitas maneiras de o fazer. Somos professores para encontrar as melhores maneiras. No exame já se faz. E nós achamos que o exame é que é mau.