Eu acredito que é melhor tentar compreender a vida do que fazer de conta que já a compreendemos porque temos uma grelha.
Parte I
Há muitos anos, nos primeiros da minha profissão vi, pela primeira vez um professor que levou um computador portátil para uma reunião de avaliação. Na altura um portátil era uma ferramenta rara e muito cara. Era uma altura que nem computadores pessoais os professores tinham em casa. Ao longo da reunião fui ficando fascinado com a competência e rigor que o professor parecia inculcar no seu trabalho. Ele já usava uma grelha que calculava todos os resultados e foi talvez a primeira vez na vida de professor que ouvi uma frase que viria a ouvir anos a fio até aos dias de hoje: “A grelha não deixa mentir”. Só que foi exatamente nessa reunião que percebi que a grelha pode mentir e muito. E percebi isso no final da reunião. Na verdade, eu apenas tinha um caderno de fichas com os dados dos alunos em que tirava notas ao longo do ano das suas avaliações e depois transformava aquilo tudo num número que seguia para a pauta final. A grelha do meu colega soou-me a algo bem mais profissional. Mas no final da reunião fiquei com uma sensação estranha de que o professor foi em muitas situações mais injusto que eu. Como podia tal aparência de rigor não passar apenas de uma jogada disso mesmo, aparência? Afinal, para que me serviria aquela grelha se no final eu não pudesse emitir um juízo para além do que lá estava? Recordo ter pensado isto segundo uma analogia que sempre me motivou, com o futebol. Muitas vezes o treinador escolhe um jogador pois é o que lhe inspira maior confiança para aquele jogo naquele lugar. E até falha a sua escolha. Ora, parece-me, ainda nos dias de hoje, que o professor também pode fazer parte da sua avaliação com um juízo semelhante. Não como uma aposta, pois o treinador se é bom também não escolhe como uma aposta de lotaria, mas como o resultado do seu bom senso, da sua intuição. Mas vamos tentar perceber como funciona a avaliação. Vejamos numa pirâmide:
Se observarmos no topo da pirâmide aparece o professor, que é também um critério para classificar e avaliar os alunos. A classificação resulta de escolha que o professor faz. Se o professor não fizer parte da pirâmide, então para que existem professores? Pode objetar-se que usar uma grelha também é resultado de uma escolha do professor e por isso nada há a contestar. Bem, mas o que quero aqui defender não é que não se use uma grelha, pois não concebo já uma avaliação sem o recurso a grelhas de registo. O problema reside numa questão anterior à grelha: afinal como aparecem aqueles valores na grelha? O aluno teve média 12 nos testes e a grelha não mente. Mas o que a grelha não diz – nem tem de dizer – é que por detrás daquelas notas estão escolhas, que são feitas pelos professores: os testes são mais difíceis ou fáceis? Seguem os modelos de exames ou não? São testes inclusivos ou não? Quantos testes foram feitos? O peso atribuído aos testes é adequado à realidade? Todas estas questões davam verdadeiras teses de doutoramento se levadas a sério. E é exatamente essa razão que me leva a pensar que os professores não trabalham para o Ministério da Grelha, mas antes para o Ministério da Educação. Vou repetir a palavra: Educação. (a palavra Educar vem do latim que significa “tirar para fora”, “direcionar para fora”) Classificar é apenas uma das maneiras de dar uma informação ao aluno, muitas vezes carregada de vieses e, no caso do secundário, que determina apenas o mercado de trabalho que se segue às escolhas dos cursos nas universidades. E isto obedece a coisas por vezes que parecem tão invisíveis como: sistema político, contexto social, etc. Nada disto impede que se usem critérios, grelhas, etc. só que temos de ter consciência da gigante grey area que existe nesta matéria. E se assim for, parece-me uma boa solução recorrer a Aristóteles. Aliás, Aristóteles deveria fazer parte da formação para se ser professor. Para quem não sabe, a ética de Aristóteles é baseada na virtude do carácter sendo que a virtude desagua sempre num lugar: o meio termo.
Parte II
Citizen Kane
Teria eu uns 17 anos quando vi pela primeira vez o brilhante filme de Orson Wells, Citizen Kane, ainda hoje considerado por alguns cinéfilos como o melhor filme de sempre (passe o exagero). O filme estarreceu-me. É um filme com uma dinâmica muito tipificada no cinema norte americano e narra a história de um menino, o Kane, proveniente de uma família muito pobre e que os pais se veem obrigados a entregar a uma instituição que pudesse educar a criança. Num dia de neve o Kane chora agarrado a um pequeno trenó de madeira enquanto os homens da instituição o forçam e o levam. A instituição faz de Kane o cidadão exemplar. E que cidadão é esse? É o do homem de sucesso. O homem que estudou e faz fortuna, o homem que se apaixona por uma mulher sem talento mas com pretensões a cantora lírica e manda construir uma ópera apenas para ela se mostrar ao público, enfim, o homem que tem o mundo a seus pés (este é mesmo o subtítulo do filme na versão portuguesa). Só que as cenas iniciais do filme exibem Kane, completamente só, no leito da morte, num hospital, agarrado a uma daquelas bolas de vidro com uma casinha e neve a cair se abanarmos a bola. E repete e enigmática palavra “Rosebud” umas quantas vezes. Imaginem, diabo seja surdo, o nosso Ronaldo no leito da morte e sussurrar uma palavra qualquer como “caracoleta” umas quantas vezes. É suposto que na hora da morte nos lembremos do que nos está mais próximo, que procuremos esse conforto para a nosso fim certo. E Ronaldo disse “caracoleta” e não “Giorgina” ou “Cristianinho”. Estão a imaginar a coisa? Todos entrariam numa corrida louca para tentar perceber quem é Caracoleta. Será uma mulher que amou secretamente? Seria o nome íntimo que daria a uma pessoa que ama? O mesmo aconteceu com Rosebud no filme de Wells. Quem era Rosebud? No final do filme aparece um dos criados do Kane, após a sua morte, a atirar para uma fogueira os pertences mais pessoais de Kane. E o filme termina quando atira o trenó dele de quando era criança. No meio do fogo que destruía o trenó consegue-se ler o que está escrito na madeira, “Rosebud”. Quando vi o filme, teria os meus 17 anos, percebi que a mensagem que ali poderia estar seria acerca do “significado”. Nós somos seres que atribuímos significado(s) às coisas e vivemos em função do que presumimos ou desejamos que as coisas signifiquem para nós. Quando, nós, professores, metemos uma nota numa pauta que é o resultado de uma conta numa grelha, qual é exatamente o significado que esperamos que os nossos alunos ali vejam? Que sonhos são criados e mortos numa grelha com números? Eu não tenho respostas a estas questões. Mas não interessa que as tenha. Interessa, isso sim, que se estas questões tiverem importância para nós, que pensemos nelas. Recentemente uma professora da Finlândia, que tem um sistema educativo famoso, falava-me da importância de sabermos conviver com a floresta. E eu fiquei a pensar nisso: como posso viver num ecossistema que desconheço quase por completo? Como poderia eu viver numa floresta apenas coberta de eucaliptos sem diversidade? E percebi que os meus alunos passam a sua vida escolar dentro de salas de aula fechados, sem ver a natureza, a trabalhar em função de resultados que aparecem nas grelhas. Será isto um exagero da minha parte? Vamos pensando.
Parte III
Gosto de fazer confissões públicas da minha vida pois a minha vida tem muitos aspetos que são e devem ser públicos. Vem isto a propósito que quem me conhece, até nas redes sociais, sabe bem que eu adoro tecnologia, mas não ligo nada a carros. Isto dá-me muito jeito, pois como até vivo numa ilha comprei o carro mais barato que encontrei novo, um Twingo bem engraçado de conduzir por sinal. E assim sobra-me algum dinheiro que invisto nos tablets, computadores, alexas da vida e outros brinquedos com os quais passo algum tempo. No seguimento disto percebe-se facilmente que eu adoro a inteligência artificial, ainda que considere que o seu estado de desenvolvimento está longe de ser aquilo que ela se poderá tornar um dia. No que ela se pode tornar é um assunto do reino da ficção científica e eu nem vou entrar muito por aí. Mas não deixo de imaginar contextos em que a IA faz as coisas por mim (já agora, engomar roupa dava-me jeito. Não que a engome, mas tenho de pagar a quem o faça). Gradualmente a IA pode começar a fazer tudo por mim. O ponto exagerado disto seria algo como a matrix em que estamos conectados à realidade ficcionada por chips eletrónicos (ainda que isto levante aqui questões filosóficas bem apetecíveis). A IA pode fazer muito por mim. Pode até substituir-me um dia como professor. Não é disto que a malta tem medo? Que percamos todos os nossos empregos? Para dizer a verdade não tenho medo da perda de empregos, pois acho que para isso arranjamos soluções que são boas e rápidas. O problema que para mim é aterrador é a perda de significado, é que todos passemos a viver a vida avaliada numa grelha, como o Kane e percamos o significado e a nossa capacidade de o tentar compreender. Se quiserem, o que mais temo é mesmo que percamos a capacidade de amar, pois não há amor que seja traduzível numa grelha.
Este texto resultou na última aula que lecionei à minha turma 11º4, uma turma cheia de alunos talentosos, curiosos, bons estudantes, mas que eu senti muitas vezes que viram a sua vida atolada nas grelhas dos professores. E também senti a necessidade de numa última aula lhes falar de grelhas, do Orson Wells e IA. Foi talvez a aula mais livre do ano. Eu acredito que é melhor tentar compreender a vida do que fazer de conta que já a compreendemos porque temos uma grelha.
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