quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Palavras afloram

 

 
 












Palavras libélulas
borboletas
grilos
traças
corvos azuis
passam por mim,
e me atravessam.
_ Não pertencem ao presente,
são ancestrais.
Minh´ alma sopra.
_ Anteriores á linguagem? Pergunto,
e a alma me responde:
_De onde o tempo não importa,
talvez, quem sabe,
de um espaço-tempo sem palavras ?
Escutando minha alma que se fez palavras,
apesar de negá-las,
aquelas animais descansam em meus ombros,
frágeis pássaros quebradiços.
Transformada em árvore,
rezei a um deus desconhecido:
_ Fiquem comigo,  lhes imploro!
Me acompanhem,
me dêm o tempo de compreender.
Ao perceber o fervor do meu espanto
fugiram assustadas,
não mais me rodearam a quebra mar,
nem dançaram à luz de meu olhar.
Mas outras chegaram fortes e palpáveis,
na verdade frágeis coriscos em noite de verão.
Frágeis e fortes,
criando não um momento fauna-flora,
me tornando  libélulas
borboletas
grilos
traças
corvos azuis.
Multipla, animais e árvore recebo o que me vem,
e o deus desconhecido
aflora em mim.



 

 

domingo, 4 de novembro de 2012

 
A comadre

Moema Borges e sua horda de afilhados e afilhadas, para ela, reis e rainhas. E suas comadres, cada qual intimamente ligada e se sentindo única. E ao mesmo tempo se reunindo umas às outras, se tornando amigas, aglutinadas em torno da comadre Moema. Até merece inventar uma etiologia para a palavra “comadre”: “co-madre(s): mulheres sendo mães juntas, dividindo, trocando, compartilhando experiências, no gerúndio”. As comadres da Moema, uma confraria, a irmandade feminina amando crianças, meninada bonita que crescia conosco e aos nossos olhos, festa barulhenta e divertida. “Comadre”, certamente, também é simbólico, como tudo o que diz respeito ao humano. Não importa quem Moema batizou. Em torno dela se reuniram mulheres, homens e crianças, pessoas de diferentes credos, crenças, idades e etnias, tribo a qual tantos pertencemos. Se batismo tem o sentido de iniciação, Moema iniciadora amorosa, incentivadora nunca autoritária, propiciava.
Na verdade, cada pessoa das famílias de quem Moema se aproximava a queria, e com ela usufruiu. Tão amada, muitos de nossos jovens a quiseram madrinha de casamento, e ela subiu a muitos altares. Em cada encontro abria o sorriso de olhos verdes e os braços aconchegantes, dizendo: “Coooooomaaaaaadre”. Ou, “Amiiigaaaaaaaaaa”. Ou “Queeeeeeriiiiiiiidaaaaaaa”.
Aprendi tanto com ela! Cada dia uma novidade, algumas pragmáticas, outras sonhadoras. No nosso caso, duas arianas tão diferentes, e tão parecidas. Nossas mães, o mesmo nome, Mariinha. Nossos filhos regulando em idade. Deliciosa contadora de histórias. Em uma delas, a sua avó, recém-parturiente, amamentando sua criança. A avó morava “na Fazenda”. Diferentemente dos outros filhos, aquele bebê passava fome, o leite da mãe não o sustentava. Chorava, e a mãe não sabendo o que fazer, chorava também. Um dia, acharam a jiboia que morava no teto, e na calada da noite descia sorrateira, para sugar o leite da mulher adormecida. Alguém matou a cobra, e rasgada sua barriga o leite ainda fresco escorreu, nem tempo de talhar. Contei à comadre que esta história ganhou mundo e virou lenda, pois, primeiro soube dela através do meu avô, quando pequena. Aquela mulher com sua criança, e aquela cobra, povoam ainda hoje meu imaginário.
Irmãs não consanguíneas, eleição mútua, linhagem espiritual que se vive e não se explica, também discordávamos, no trocar ideias, no teimar. Afinal, arianas, né? Nossa concepção de vida e mundo, esta sim, da mesma cosmologia. Em determinado momento no campo dos debates começávamos a rir uma da outra, e cada qual de si, “Nooossaa Senhoora!” Nunca nos despedimos sem imaginar e combinar o próximo encontro.
Feminina e original, a comadre gostava de se vestir. Nunca escondeu procedências e endereços, dava-os de bandeja, e seus fornecedores e fornecedoras passavam a fazer parte da tribo de amigos, do bando. Na cozinha arrasava, em pouco tempo a mesa era um banquete, fosse comida goiana-mineira, ou das mais sofisticadas, lanches, almoços, jantares. Inventava doces, compotas de frutas, bolos tortas, biscoitos. Chamava de “comida de Deus”. Em meio ás delícias culinárias, correram saraus literários e de artes em geral, ela nos cercava de beleza. Arquitetou a reforma do apartamento em que moramos hoje, o compadre dela e eu. Adorou nos ter na Avenida Paulista. Bastava um telefonema para combinar o que fazer: um filme na Reserva? Um café na Cultura? Passar na Fnac? Na Martins Fontes? Tomar o metrô e comprar o pão dos beneditinos? E lá íamos braços dados falando e rindo de qualquer bobagem, tecendo sociologias do povo que cruzava conosco, do que nos cercava, filosofando. Tecelãs, tramando e urdindo, e nos sentindo parte das horas, das pessoas e dos acontecimentos. Vivas na vida, lúdicas, e levando viver muito a sério, vivíamos no tempo. Não é possível falar da Moema no geral, e tenho certeza, cada amiga, amigo, comadre ou compadre, terá infinitas lembranças e histórias para contar. E os afilhados e afilhadas? Nossa Moema de Freitas Borges continua em cada um de nós.