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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

regressar.



Em 2002 estivemos em Avila, onde Tim foi fazer um curso de duas semanas. Durante o dia estava sozinha e percorria a cidade a pé, vezes sem conta. Um frio de rachar, na altura, estávamos a meio de Janeiro. Passei muito tempo a ler neste jardim, enquanto o sol tornava o permanecer no mesmo local, quieta, suportável e até algo prazeroso. Todos os dias saía do centro antigo da cidade, passava por baixo do arco da foto acima e chegava aquele canto que, durante aqueles dias, tomei para mim.
Numa daquelas noites de Janeiro vimos nevar durante uns 10 minutos. Foi a primeira vez que vi nevar. Uns momentos depois o telefone tocou. Era o meu mano a dizer que a nossa avó Guida havia partido para o Senhor. Senti que Deus tinha mandado a neve só para mim, naquela noite, momentos antes da notícia. No dia seguinte, fui ao habitual jardim, despedir-me. As montanhas no horizonte tinham os picos cobertos de branco, lembrando a realidade. Foi aqui que chorei, antes de ir apanhar o comboio Madrid- Lisboa e passar a noite em viagem, enquanto o Tim continuou no curso. Nesses dias estava ler o livro "Os anos que antecederam o Refúgio Secreto", da Corrie Ten Boom. Um livro de páginas marcadas pelo tempo, que descobrira uns meses antes em casa da minha avó. Na viagem relembrei que o crente é um cidadão dos céus e li que a tristeza que sentimos quando alguém parte é uma espécie de "egoísmo". Choramos pela saudade que nós sentimos, mas o crente que partiu está em perfeita alegria, está com Cristo e tal é muito, mas muito melhor. Alguém disse isto à Corrie quando esta pensava na perda do seu pai. A leitura do livro que pertencera à minha avó e que estava a ler no momento foram um bálsamo para mim, naqueles dias.
Regressar àquele jardim, sentar-me no banco, olhar as mesmas montanhas, sentir os olhos a encherem-se de água. Ficar em silêncio. Porque os locais onde vivemos momentos que definem algo marcam-nos para sempre. O Sammy percebeu e fez silêncio comigo. A avó da qual eu tanto falo, cuja fotografia habita na lareira da sala e a telefonia num móvel do corredor, que ele não chegou a conhecer. Nasceu no ano seguinte.
As montanhas estavam no mesmo lugar. Eu regressei diferente e com três filhos. A constante mudança e envelhecimento, o tempo diante de mim. E Deus. O Deus que não muda.

[foto acima tirada em 2002]


[foto acima de 2002]



[foto acima de 2002]


quinta-feira, 16 de junho de 2016

a barragem



O primeiro sinal em como estávamos perto do acampamento era chegar à barragem. O ritual era sempre o mesmo. Respirar o ar, olhar pela janela para ver se estava cheia ou não. Admirá-la com um sorriso feliz.
No tempo em que a ída à piscina de Ponte de Sor era coisa inexistente. Íamos três vezes por semana à barragem nas semanas de acampamento. Isto, se não contarmos com algumas escapadelas noturnas que aconteciam volta e meia. Malta rebelde, aquela. Os carros eram escassos. O caminho era feito a pé, entre cantorias, guitarradas e toalha em volta do pescoço e chinelos nos pés. Numa dessas caminhadas, caí em cima das amoras, após o primo João me fazer voar para cima delas numa brincadeira. Autch! O João Pedro marchava enquanto cantava "Ó meu sargento, ó meu sargento, p`ra esquerda, p`ra a direita, p`ra trás e p`ra frente!" Seguiamos-lhe o passo com entusiasmo. A paragem na fonte, escondida entre os arbustos, era quase obrigatória. Lá, bebíamos água, fazíamos rodas, cantávamos mais. Havia carros que faziam várias viagens. Os mais fortes íam o caminho todo a pé, com grande orgulho.
Às sextas feiras a ída para a barragem era um desafio maior. Passávamos o dia na "Shell". À hora do almoço abria-se o porta bagagem da carrinha e saltava o frango assado. Ao lanche, o pão com manteiga e os cantis azuis com água. Fazíamos fila, sempre com apetite. Juntávamo-nos na grande mesa de pedra, perto da fonte ou debaixo de uma árvore junto á água. À tarde cantávamos juntos. Nadava-se até à ilha. Alguns davam um salto às comportas. As idas à fonte sucediam-se. A rampa, onde tantas vezes estendíamos a toalha, parecia maior na altura. Jogava-se vollei e construíam-se pirâmides humanas dentro de água. Comprava-se gelados no café, de vez em quando. Alguns de nós fazíamos o caminho de volta a correr até ao ABS. Um dia, fiquei esquecida com mais 4 amigos. Os chinelos eram a menos e o chão escaldava. Rimos muito, enquanto os mesmos chinelos passavam ora por uns pés, ora por outros. Apanhámos boleia e chegámos inteiros. Uma aventura!
Foi no tempo em que os carros cabiam dentro dos muros do acampamento, os portões não existiam, a piscina não era um destino, andar a pé era um prazer necessário e todas as fontes jorravam água.



 



















[fotos acima tiradas no verão de 2015 e na primavera de 2016]

As que seguem, alguns anos antes.





terça-feira, 14 de junho de 2016

o ontem já era!

Nos dias de hoje podemos sair no bairro onde cresci de metro. Bem, não propriamente no meu bairro, mas perto, ao lado daquela que foi a minha escola secundária. Na zona onde os meus dias aconteciam, entre estudo, fotocópias, aulas, trabalhos de grupo, torneios de futebol, corridas, dança, almoços e conversas. Sigo a luz. Subo as escadas da boca do metro e chego à superfície. O cheiro é familiar e sinto quase esta ambiguidade de me sentir segura num bairro que tem fama contrária. O cenário, apesar das mudanças que o desenvolvimento e a Expo 98 levaram, continua a ser-me acolhedor. Os cafés continuam característicos, assim como as pessoas calorosas que me atendem. Há um conforto muito específico colado aos lugares e às pessoas com as quais crescemos, é a conclusão a que chego. Como se nos conseguissem amar de uma forma mais desinteressada ou natural. Se bem que isto do amor tem muitas vezes mais de escolha do que de natural.
O cheiro a relva cortada dança no ar juntamente com o calor. Cheira às tardes de primavera passadas na escola, debaixo dos pinheiros, à conversa, ao som das violas. Consigo ainda sentir os sonhos que pulsavam em cada um de nós na altura. Os dramas, a intensidade e, ao mesmo tempo, a simplicidade com que os dias eram vividos e o futuro se desenrolava à nossa frente. O presente que mostrava um mundo seguro naqueles que nos rodeavam e um futuro que lembrava que o mundo era enorme e nos esperava. Pensávamos que o percorreríamos todos juntos, na altura. A ingenuidade era grande.



Chego ao meu bairro. Quem viveu num sabe que a vida é feita em comunidade. Cresce-se em conjunto. Partilha-se os dias, as dores, as notícias, os medos e as alegrias. Compra-se o pão acompanhado e olha-se as estações mudarem com mais do que um par de olhos. O cão da vizinha é um pouco nosso também. As conquistas de um são celebradas em grande, por muitos. O mundo é um lugar menos solitário num bairro. Assim se espera.
Olho as árvores que agora se erguem altas, um pouco por todo o lado. Um espelho dos anos. Cruzo-me com pessoas que não conheço. As crianças já não brincam na rua. Os becos escondidos já não existem. Vejo adolescentes que ainda não eram nascidos quando eu lá morava e sinto o peso dos anos, como um filme a passar-me diante dos olhos. A maioria das caras já não são familiares e não deixa de ser esquisita esta coisa de reconhecermos um local como nosso, mas ele já não nos reconhecer a nós. As janelas avistam-se diferentes. Mudam-se as cortinas e as caras que espreitam. Não há amigos a chamar e a dizer adeus. Há amigos de outra gente. É outro pulsar que vai ao encontro do meu com cheiro a ontem. É possível cheirar a distância. Entranha-se devagar e espalha-se no sangue, anestesiando.



A minha praceta está envolvida num estranho silêncio. As janelas do 4ºandar permanecem fechadas, com as persianas corridas. Sinto-me menina por uns segundos. Desvio o olhar e agarro o presente. Sigo o meu caminho até à escola primária.



Sou rodeada por meninos e meninas com olhos cheios de esperança. Braços estendem-se com um sorriso franco. Após o recreio sentamo-nos debaixo da árvore que um dia já foi do meu tamanho. Olho para cima. A casa onde cresci ali ao lado. As janelas continuam fechadas. Desvio o olhar do passado e abro o livro.


quinta-feira, 7 de abril de 2016

de todas as árvores...

esta sempre trará consigo o cheiro doce de memórias sem fim.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Era uma vez um gato chamado Flippy...


O Tim chegou a casa dos pais com uma bola de pelo clara, enquanto festejávamos o aniversário da avó Josefina. Foi a festa dos miúdos! Assustadiço, escondeu-se de imediato. O Samuel deu-lhe o nome. Quando chegámos a nossa casa, escondeu-se novamente, nervoso com tanta agitação, andar de casa em casa o dia todo, viajar de carro. Corremos a casa toda e os possíveis esconderijos e fomos dormir sem saber dele. No dia seguinte, descobrimo-lo na biblioteca, na prateleira das bíblias. Gato sábio, pensámos. Refúgio certo. Nos primeiros dias era vê-lo a balançar nos cortinados, satisfeito. Desde logo percebemos que era um gato especial. Gostava de sonecas, sim, mas o que mais apreciava era estar onde os miúdos estavam ou, na falta deles, quando cresceram e começaram a ir à escola, ao pé de mim. A companhia sabia-lhe bem. Percorria a casa atrás do Marcos, quando este ainda só gatinhava. Permanecia junto deles nos momentos tranquilos e nas brincadeiras. De vez em quando um deles dava com ele uma cambalhota, entre outras coisas. Era sem dúvida o gato mais paciente e meigo que alguma vez conhecemos. Também era persistente. Se o tirava do meu colo, ele vinha, devagarinho, vezes sem conta até eu desistir e deixá-lo ficar aninhado. Ronronava durante as vacinas, sem se mexer. Dormia aos pés da nossa cama, muitas vezes em cima das nossas pernas. Passou pelas camas de todos nós, por épocas. Gostava de correr atrás das borboletas e de brincar com gafanhotos. Achava as sonecas ao sol deliciosas. Entrava no carro de qualquer pessoa e estava sempre pronto para subir para o colo de alguém que estivesse em nossa casa. Gostava dos dias de churrasco. Vigiava a grelha e o que saía dela atentamente. Era generoso com os gatos sem dono que vinham comer a nossa casa, afastando-se da taça da comida para deixar outro comer. Não foram poucas as vezes que tivemos de tirá-lo do telhado, por ter medo de descer. Ia e voltava a correr connosco quando íamos despejar o lixo. Ao fim do dia acompanhava-nos sempre a fechar as portadas. Levava-nos fielmente até à esquina da nossa rua sempre que íamos para a escola ou treinos. Quando chegávamos a casa vinha sempre ao portão receber-nos. Foi uma das coisas da qual mais senti falta, chegar a casa e não o ter a correr para nós.
Este gato ensinou-me a gostar de gatos. Desde que ele chegou que nenhum gato na rua me passa despercebido e passei-os a ver com olhos novos.
Era uma vez um gato chamado Flippy, o nosso gato.