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sábado, 14 de julho de 2012

O crime organizado pelos banqueiros

Por Mauro Santayana

A invenção da moeda, contemporânea à do Estado, foi um dos maiores lampejos da inteligência humana. A primeira raiz indoeuropéia de moeda é “men”, associada aos movimentos da alma na mente, que chegou às línguas modernas pelo verbo sânscrito mányate (ele pensa). Sem essa invenção, que permite a troca de bens de natureza e valores diferentes, não teria havido a civilização que conhecemos.

A construção das sociedades e sua organização em estados se fizeram sobre essa convenção, que se funda estritamente na boa fé de todos que dela se servem. Os estados, sempre foram os principais emissores de moeda. A moeda, em si mesma, é neutra, mas, desde que surgiu, passou a ser também servidora dos maiores vícios humanos. Com a moeda, vale repetir o lugar comum, cresceram a cobiça, a luxúria, a avareza – e os banqueiros.

A moeda, ou os valores monetários, mal ou bem, estavam sob o controle dos Estados emitentes, que se responsabilizavam pelo seu valor de face, mediante metais nobres ou estoques de grãos. Nos tempos modernos, no entanto, a sua garantia é apenas virtual. Os convênios internacionais se amarram a um pacto já desfeito, o Acordo de Bretton Woods, de 1944. A ruptura do contrato foi ato unilateral dos Estados Unidos, sob a presidência Nixon, ao negar a conversibilidade em ouro do dólar, moeda de referência internacional pelo Acordo.

Essa decisão marca o surgimento de uma nova era, em que o valor da moeda não se relaciona com nada de sólido. Os bancos, ao administrá-la, deveriam conduzir-se de forma a merecer a confiança absoluta dos depositantes e dos acionistas, e assegurar essa mesma confiabilidade às suas operações de crédito. O papel social dos bancos é o de afastar os usurários e agiotas do mercado do dinheiro. Mas não é desta forma que têm agido, sobretudo nestes nossos tempos de desmantelamento dos estados.Hoje, não há diferença entre um Shylock shakespereano e qualquer dirigente dos grandes bancos.

Na Inglaterra, o escândalo do Barclays, que se confessou o primeiro banco responsável pela manipulação da taxa Libor, provocou o espanto da opinião pública, mas não dos meios financeiros que não só conheciam o deslize, como dele se beneficiavam.

Segundo noticiou ontem El Pais, os dois grandes executivos da Novagalícia, surgida da incorporação de duas instituições oficiais da província galega – a NovaCaixa e a Caixa Galícia – e colocada sob o controle de Madri em setembro do ano passado, pediram desculpas aos seus clientes, por ter a instituição agido mal. Entre outros de seus malfeitos, esteve o de enganar pequenos investidores mal informados, entre eles alguns analfabetos, com aplicações de alto risco, ou seja, ancoradas em débitos podres, as famosas subprimes, adquiridas dos bancos maiores que operam no mercado imobiliário do mundo inteiro.

Além disso, os antigos responsáveis por esses desvios, deixaram seus cargos percebendo indenizações altíssimas. E os novos administradores tiveram sua remuneração reduzida, por serem as antigas absolutamente irracionais. Com todas essas desculpas, a Novagalícia quer uma injeção de seis bilhões de euros, a fim de regularizar a sua situação.

Este jornal reproduziu, ontem, artigo de The Economist, a propósito da manipulação da taxa Libor, por parte do Barclays, e disse, com a autoridade de uma revista que sempre esteve associada à City, que não há mais confiança nos maiores bancos, do mundo, como o Citigroup, o J.P.Morgan, a União de Bancos Suíços, o Deutschebank e o HSBC. Executivos desses bancos, de Wall Street a Tóquio, estão envolvidos na grande manipulação sobre uma movimentação financeira total de 800 trilhões de dólares.

Para entender a extensão da falcatrua, o PIB mundial do ano passado foi calculado em cerca de 70 trilhões de dólares, menos de dez por cento do dinheiro que circulou escorado na taxa manipulada pelos grandes bancos. A Libor, sendo a taxa usada nas operações interbancárias, serve de referência para todas as operações do mercado financeiro.

O mundo se tornou propriedade dos banqueiros. Os trabalhadores produzem para os banqueiros, que controlam os governos. E quando, no desvario de sua carência de ética, e falta de inteligência, os bancos investem na ganância dos derivativos e outras operações de saqueio, são os que trabalham, como empregados ou empreendedores honrados, que pagam. É assim que estão pagando os povos da Grécia, da Espanha, de Portugal, da Grã Bretanha, e do mundo inteiro, mediante o arrocho e o corte das despesas sociais, pelos governos vassalos, alem do desemprego, dos despejos inesperados, das doenças e do desespero, a fim de que os bancos e os banqueiros se safem.

Se os governantes do mundo inteiro fossem realmente honrados, seria a hora de decidirem, sumariamente, pela estatização dos bancos e o indiciamento dos principais executivos da banca mundial. Eles são os grandes terroristas de nosso tempo. É de se esperar que venham a conhecer a cadeia, como a está conhecendo Bernard Madoff. Entre o criador do índice Nasdaq e os dirigentes do Goldman Sachs e seus pares, não há qualquer diferença moral.

Os terroristas comuns matam dezenas ou centenas de cada vez. Os banqueiros são responsáveis pela morte de milhões de seres humanos, todos os anos, sem correr qualquer risco pessoal. E ainda recebem bônus milionários.

A invenção da moeda, contemporânea à do Estado, foi um dos maiores lampejos da inteligência humana. A primeira raiz indoeuropéia de moeda é “men”, associada aos movimentos da alma na mente, que chegou às línguas modernas pelo verbo sânscrito mányate (ele pensa). Sem essa invenção, que permite a troca de bens de natureza e valores diferentes, não teria havido a civilização que conhecemos.

A construção das sociedades e sua organização em estados se fizeram sobre essa convenção, que se funda estritamente na boa fé de todos que dela se servem. Os estados, sempre foram os principais emissores de moeda. A moeda, em si mesma, é neutra, mas, desde que surgiu, passou a ser também servidora dos maiores vícios humanos. Com a moeda, vale repetir o lugar comum, cresceram a cobiça, a luxúria, a avareza – e os banqueiros.

A moeda, ou os valores monetários, mal ou bem, estavam sob o controle dos Estados emitentes, que se responsabilizavam pelo seu valor de face, mediante metais nobres ou estoques de grãos. Nos tempos modernos, no entanto, a sua garantia é apenas virtual. Os convênios internacionais se amarram a um pacto já desfeito, o Acordo de Bretton Woods, de 1944. A ruptura do contrato foi ato unilateral dos Estados Unidos, sob a presidência Nixon, ao negar a conversibilidade em ouro do dólar, moeda de referência internacional pelo Acordo.

Essa decisão marca o surgimento de uma nova era, em que o valor da moeda não se relaciona com nada de sólido. Os bancos, ao administrá-la, deveriam conduzir-se de forma a merecer a confiança absoluta dos depositantes e dos acionistas, e assegurar essa mesma confiabilidade às suas operações de crédito. O papel social dos bancos é o de afastar os usurários e agiotas do mercado do dinheiro. Mas não é desta forma que têm agido, sobretudo nestes nossos tempos de desmantelamento dos estados.Hoje, não há diferença entre um Shylock shakespereano e qualquer dirigente dos grandes bancos.

Na Inglaterra, o escândalo do Barclays, que se confessou o primeiro banco responsável pela manipulação da taxa Libor, provocou o espanto da opinião pública, mas não dos meios financeiros que não só conheciam o deslize, como dele se beneficiavam.

Segundo noticiou ontem El Pais, os dois grandes executivos da Novagalícia, surgida da incorporação de duas instituições oficiais da província galega – a NovaCaixa e a Caixa Galícia – e colocada sob o controle de Madri em setembro do ano passado, pediram desculpas aos seus clientes, por ter a instituição agido mal. Entre outros de seus malfeitos, esteve o de enganar pequenos investidores mal informados, entre eles alguns analfabetos, com aplicações de alto risco, ou seja, ancoradas em débitos podres, as famosas subprimes, adquiridas dos bancos maiores que operam no mercado imobiliário do mundo inteiro.

Além disso, os antigos responsáveis por esses desvios, deixaram seus cargos percebendo indenizações altíssimas. E os novos administradores tiveram sua remuneração reduzida, por serem as antigas absolutamente irracionais. Com todas essas desculpas, a Novagalícia quer uma injeção de seis bilhões de euros, a fim de regularizar a sua situação.

Este jornal reproduziu, ontem, artigo de The Economist, a propósito da manipulação da taxa Libor, por parte do Barclays, e disse, com a autoridade de uma revista que sempre esteve associada à City, que não há mais confiança nos maiores bancos, do mundo, como o Citigroup, o J.P.Morgan, a União de Bancos Suíços, o Deutschebank e o HSBC. Executivos desses bancos, de Wall Street a Tóquio, estão envolvidos na grande manipulação sobre uma movimentação financeira total de 800 trilhões de dólares.

Para entender a extensão da falcatrua, o PIB mundial do ano passado foi calculado em cerca de 70 trilhões de dólares, menos de dez por cento do dinheiro que circulou escorado na taxa manipulada pelos grandes bancos. A Libor, sendo a taxa usada nas operações interbancárias, serve de referência para todas as operações do mercado financeiro.

O mundo se tornou propriedade dos banqueiros. Os trabalhadores produzem para os banqueiros, que controlam os governos. E quando, no desvario de sua carência de ética, e falta de inteligência, os bancos investem na ganância dos derivativos e outras operações de saqueio, são os que trabalham, como empregados ou empreendedores honrados, que pagam. É assim que estão pagando os povos da Grécia, da Espanha, de Portugal, da Grã Bretanha, e do mundo inteiro, mediante o arrocho e o corte das despesas sociais, pelos governos vassalos, alem do desemprego, dos despejos inesperados, das doenças e do desespero, a fim de que os bancos e os banqueiros se safem.

Se os governantes do mundo inteiro fossem realmente honrados, seria a hora de decidirem, sumariamente, pela estatização dos bancos e o indiciamento dos principais executivos da banca mundial. Eles são os grandes terroristas de nosso tempo. É de se esperar que venham a conhecer a cadeia, como a está conhecendo Bernard Madoff. Entre o criador do índice Nasdaq e os dirigentes do Goldman Sachs e seus pares, não há qualquer diferença moral.

Os terroristas comuns matam dezenas ou centenas de cada vez. Os banqueiros são responsáveis pela morte de milhões de seres humanos, todos os anos, sem correr qualquer risco pessoal. E ainda recebem bônus milionários.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Surpresa no Paraguai: é possível reverter o golpe

Há resistência social no país e isolamento internacional dos golpistas. Aos poucos, desvenda-se trama que levou à quebra da legalidade

Por Antonio Martins

Nas primeiras horas de domingo, o presidente eleito pelos paraguaios, Fernando Lugo, abandonou a postura de resignação que mantinha desde sexta-feira, quando deposto, e tomou uma atitude que pode mudar o futuro imediato do país. Lugo dirigiu-se à rua Alberdi, no centro de Assunção, onde centenas de manifestantes haviam ocupado a TV Pública, em protesto contra ameaças de censura. Dirigiu-se a eles e à imprensa internacional sem meias palavras: “Sem dúvidas, foi um golpe. Um golpe parlamentar contra a cidadania e a democracia, e isso precisa ser denunciado aos quatro ventos”.

Precedida de intensa movimentação social e diplomática, a fala desfez a aparência de “normalidade” com que contavam os golpistas e seus apoiadores locais e externos – Estados Unidos e Vaticano, em especial. Está gerando uma reação em cadeia de resistências sociais e diplomáticas cujos lances mais recentes são a exclusão do “presidente” golpista do Mercosul e da Unasul (domingo à tarde) e a formação de um governo paralelo liderado por Lugo (esta manhã, em Assunção). Caso se mantenha, este processo pode reverter o golpe de Estado e colocar em novo patamar o que alguns chamam de “nova independência” sul-americana. Os fatos decisivos estão se produzindo neste início de semana: aos poucos, torna-se possível desvendá-los e romper a cortina de silêncio que os jornais comerciais brasileiros insistem em manter sobre o episódio.

A resistência avança explorando o calcanhar-de-aquiles dos golpistas: “como careciam de causas racionais que justificassem uma medida tão extrema, optaram por praticá-la com máxima pressa, explica, no jornal paraguaio Última Hora o analista político Alfredo Boccia. Ele prossegue: “O libelo acusatório causa vergonha alheia, de tão ridículo: não cuidaram das mínimas formalidades legais e atropelaram o respeito aos prazos de defesa”.
Lugo estava no Brasil, participando da Rio+20, quando a Câmara dos Deputados abriu, na quinta-feira, o “processo” que levaria a sua “cassação”. Washington Uranga, colunista do Página 12 argentino, conta: os opositores aproveitaram-se da ausência para concretizar finalmente uma ameaça que fizeram “em 23 ocasiões anteriores, pelos mais diversos motivos”. E mais: “a maioria destas manobras foi facilitada pelo próprio vice-presidente Federico Franco. (…) Sabendo que contava com os votos próprios [do Partido Liberal] mais os do Partido Colorado, em várias ocasiões o vice foi até a sede do governo para ameaçar Lugo e tentar extorqui-lo com a ameaça de juízo político, apenas para obter benefícios econômicos para si mesmo…”

Vinte e quatro horas depois, o Legislativo, que sempre bloqueou todas as iniciativas apresentadas por Lugo (da reforma agrária à nomeação de embaixadores), decretava seu impeachment por ampla maioria (39 x 4). A flagrante ilegalidade da aventura foi destacada pelo chanceler argentino Héctor Timerman, em entrevista ao Página 12: “Praticaram uma execução sumária. Darem duas horas de defesa a um presidente democraticamente eleito – um tempo menor que o se concede a quem recorre de uma multa por avançar um sinal vermelho”.

Mas quem dava respaldo aos aventureiros? “É muito provável que o pequeno Paraguai se dispusesse a confrontar as regras do Mercosul e da Unasul, entrando em conflito com seus dois vizinhos, se não contasse com o estímulo e proteção do governo norteamericano”, sugere o economista Flávio Lyra, num texto que Outras Palavras publica hoje. Na mesma entrevista ao Página 12, um relato do chanceler argentino confirma esta impressão. Timerman estava em Assunção nas horas que antecederam o golpe. Havia voado para lá com uma delegação de colegas da Unasul, alarmados pela perspectiva de deposição do presidente eleito. Reporta, em detalhes, as insistentes tentativas de diálogo dirigidas pelos diplomatas à oposição paraguaia – e a soberba com que foram rechaçadas. Eis um dos trechos: “Às 11h45 [de sexta-feira], faltavam 15 minutos para o começo do julgamento. Disse-lhes: ‘Senhores, virão épocas muito duras para o Paraguai, porque nós teremos de aplicar a cláusula democrática’. Não pareceu comovê-los em nada”. 

No final da tarde de sexta, Lugo estava deposto. Quase sincronicamente, em Washington, o porta-voz do Departamento de Estado para a América Latina, Darla Jordan, emitia nota que se calava diante do ataque à democracia, mas pedia “calma e responsabilidade” aos paraguaios… Ao contrário do que se informou no sábado, porém, a Casa Branca ainda não reconheceu oficialmente o novo “governo” paraguaio. Já o Vaticano e os bispos – que exercem forte influência, num país católico e conservador – foram menos sutis. Na quinta-feira, uma comitiva episcopal tentou, sem sucesso, convencer Lugo a renunciar. No domingo, o núncio apostólico Eliseo Ariotti, representante oficial do Papa no Paraguai, afirmou, a respeito da deposição do presidente: “alegra-me muito que o povo simples e todas as autoridades tenham pensado no bem do país”. Como se o grotesco da declaração fosse pouco, anunciou que celebraria uma missa na catedral “pela paz”. Na cerimônia, ofereceu pessoalmente a comunhão ao golpista (foto).


* * *

A primeira atitude de Lugo, após a deposição, foi conformar-se. Débil no Parlamento desde o início de seu governo, o presidente também viveu, ao longo do mandato, uma série de desencontros com os movimentos sociais. Houve erros de parte a parte, consideram Emir Sader  (em Carta Maior) e Santiago O’Donnel (em Página 12): o presidente não cumpriu a maior parte de seu programa; os movimentos não compreenderam que, sem apoiá-lo, ele não teria força para executar as reformas propostas. 

Por paradoxo, talvez o golpe tenha produzido uma aproximação necessária. A partir da noite de sábado, a TV Pública, criada por Lugo em 2011, converteu-se num centro da resistência popular. Centenas de manifestantes acorreram à rua Alberdi, assim que surgiram sinais de que o governo ilegítimo pretendia censurá-la. O Página 12 narra: naquela mesma noite, grupos de jovens construíram duas barricadas nas ruas de acesso. O cineasta Marcelo Martinessi, diretor nomeado pelo presidente eleito, alegrou-se: “as pessoas estão tomando este projeto como seu”. Um microfone foi estendido aos manifestantes: a resistência já tinha um canal para ir ao ar. 


Na manhã de domingo, Lugo compareceria ao local, para sua fala emblemática. Horas depois, os ativistas já eram milhares. Foram eles que rapidamente restabeleceram, à tarde, o fornecimento de energia e recolocaram a emissora no ar, depois de um corte executado pela agência nacional de eletricidade.

Os fatos vêm se acelerando desde então. Formou-se  uma Frente pela Defesa da Democracia no Paraguai. Mais tarde, ainda no domingo, Lugo deu novo passo e anunciou a formação de um governo paralelo, composto por seus ministros e com primeira reunião marcada para esta manhã. A edição desta manhã de Pagina 12 estampa uma entrevista  em que confirma “já começamos a resistência pacífica. (…) Já surgem manifestações de cidadãs e cidadãos. (…) O repúdio [ao golpe] crescerá”. O jornal confirma: estão programadas para hoje manifestações diante dos edifícios públicos e interrupção do trânsito em avenidas estradas.

Ao contrário do que ocorreu em tantos precedentes históricos, os governos da América do Sul parecem dispostos a reagir ao golpe. O envio de uma delegação de chanceleres a Assunção pode ser mais que um gesto simbólico. Ainda no sábado, convocou-se uma reunião de emergência do Mercosul, em Córdoba (Argentina), a partir da próxima quinta-feira. No domingo, anunciou-se que Fernando Lugo – e não o governo instituído por golpe – será recebido como representante do Paraguai. Num primeiro sinal de vacilação, Federico Franco, o presidente instituído pelo golpe, anunciou que pediria ao homem que depôs para “atenuar as tensões desencadeadas na América Latina”. Foi, evidentemente, rechaçado por Lugo.

Desde sexta-feira, os países da América do Sul estão retirando seus embaixadores de Assunção, em protesto contra o golpe de Estado. Há dois anos, na resistência ao golpe de Estado praticado em Honduras, o Brasil jogou papel destacado. Desta vez, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, parece ter assumido este papel. Foi ela quem tomou a iniciativa, ainda na sexta-feira, de retirar seu embaixador de Assunção, “até o restabelecimento da ordem democrática”. Nos dias seguintes, o gesto seria seguido por Bolívia, Brasil, Equador, Uruguai e Venezuela. Nas últimas horas, aderiram ao movimento Colômbia e México, o que parece indicar uma tendência isolamento dos Estados Unidos. A própria Organização dos Estados Americanos, em outras épocas dominada por Washington está agora questionando a legitimidade da deposição de Lugo.

* * *
Ninguém é capaz de dizer, a esta altura, qual será o desfecho dos acontecimentos. Mas é evidente que uma sequência tão impressionante de fatos novos, cheia de surpresas, num país vizinho ao Brasil, seria um tema jornalístico de relevância máxima. A mídia brasileira, porém, trata-o de forma modorrenta e burocrática. Na maior parte das publicações, o Paraguai esteve nas manchetes apenas quando Lugo foi afastado. Ao contrário da imprensa argentina, nenhuma publicação ousou usar a palavra golpe.

No momento em que este texto é concluído, a manchete  da Folha de S.Paulo, em sua edição online, destaca as declarações do “chanceler” (do governo golpista paraguaio, que se queixa de ter sido afastado “sem defesa” da reunião do Mercosul… Por sugestiva coincidência,O Globo e Estado de S.Paulo, embora menos discretos, ocultam a série de reviravoltas em Assunção para destacar o mesmo personagem… Já o UOL, também do grupo Folha, enviou por algum motivo o repórter Guilherme Balza à capital paraguaia – mas tem relegado a segundo plano as ótimas matérias produzidas por ele (como este vídeo)…

O rápido surgimento de um movimento de resistência no Paraguai – e em especial o fato emblemático de ele ter por centro a TV Pública – revelam: talvez, também no Paraguai, a sociedade já seja capaz de superar as velhas formas de controle da informação e seus laços com os antigos donos do poder…


Matéria originalmente publicada no site Outras Palavras

domingo, 8 de maio de 2011

Carta de um Nobel da Paz a Barack Obama

Por Adolfo Pérez Esquivel

Estimado Barack, ao dirigir-te esta carta o faço fraternalmente para, ao mesmo tempo, expressar-te a preocupação e indignação de ver como a destruição e a morte semeada em vários países, em nome da “liberdade e da democracia”, duas palavras prostituídas e esvaziadas de conteúdo, termina justificando o assassinato e é festejada como se tratasse de um acontecimento desportivo.

Indignação pela atitude de setores da população dos Estados Unidos, de chefes de Estado europeus e de outros países que saíram a apoiar o assassinato de Bin Laden, ordenado por teu governo e tua complacência em nome de uma suposta justiça. Não procuraram detê-lo e julgá-lo pelos crimes supostamente cometidos, o que gera maior dúvida: o objetivo foi assassiná-lo.

Os mortos não falam e o medo do justiçado, que poderia dizer coisas inconvenientes para os EUA, resultou no assassinato e na tentativa de assegurar que “morto o cão, terminou a raiva”, sem levar em conta que não fazem outra coisa que incrementá-la.

Quando te outorgaram o Prêmio Nobel da Paz, do qual somos depositários, te enviei uma carta que dizia: “Barack, me surpreendeu muito que tenham te outorgado o Nobel da Paz, mas agora que o recebeu deve colocá-lo a serviço da paz entre os povos; tens toda a possibilidade de fazê-lo, de terminar as guerras e começar a reverter a situação que viveu teu país e o mundo”.

No entanto, ao invés disso, você incrementou o ódio e traiu os princípios assumidos na campanha eleitoral frente ao teu povo, como terminar com as guerras no Afeganistão e no Iraque e fechar as prisões em Guantánamo e Abu Graib no Iraque. Não fez nada disso. Pelo contrário, decidiu começar outra guerra contra a Líbia, apoiada pela OTAM e por uma vergonhosa resolução das Nações Unidas. Esse alto organismo, apequenado e sem pensamento próprio, perdeu o rumo e está submetido às veleidades e interesses das potências dominantes.

A base fundacional da ONU é a defesa e promoção da paz e da dignidade entre os povos. Seu preâmbulo diz: “Nós os povos do mundo...”, hoje ausentes deste alto organismo.

Quero recordar um místico e mestre que tem uma grande influência em minha vida, o monge trapense da Abadia de Getsemani, em Kentucky, Tomás Merton, que diz: “a maior necessidade de nosso tempo é limpar a enorme massa de lixo mental e emocional que entope nossas mentes e converte toda vida política e social em uma enfermidade de massas. Sem essa limpeza doméstica não podemos começar a ver. E se não vemos não podemos pensar”.

Você era muito jovem, Barack, durante a guerra do Vietnã e talvez não lembre a luta do povo norteamericano para opor-se à guerra. Os mortos, feridos e mutilados no Vietnã até o dia de hoje sofrem as consequências dessa guerra.

Tomás Merton dizia, frente a um carimbo do Correio que acabava de chegar, “The U.S. Army, key to Peace” (O Exército dos EUA, chave da paz): “Nenhum exército é chave da paz. Nenhuma nação tem a chave de nada que não seja a guerra. O poder não tem nada a ver com paz. Quanto mais os homens aumentam o poder militar, mais violam e destroem a paz”.
Acompanhei e compartilhei com os veteranos da guerra do Vietnã, em particular Brian Wilson e seus companheiros que foram vítimas dessa guerra e de todas as guerras.

A vida tem esse não sei o quê do imprevisto e surpreendente fragrância e beleza que Deus nos deu para toda a humanidade e que devemos proteger para deixar às gerações futuras uma vida mais justa e fraterna, reestabelecendo o equilíbrio com a Mãe Terra.

Se não reagirmos para mudar a situação atual de soberba suicida que está arrastando os povos a abismos profundos onde morre a esperança, será difícil sair e ver a luz; a humanidade merece um destino melhor. Você sabe que a esperança é como o lótus que cresce no barro e floresce em todo seu esplendor mostrando sua beleza.

Leopoldo Marechal, esse grande escritor argentino, dizia que: “do labirinto, se sai por cima”.

E creio, Barack, que depois de seguir tua rota errando caminhos, você se encontra em um labirinto sem poder encontrar a saída e te enterra cada vez mais na violência, na incerteza, devorado pelo poder da dominação, arrastado pelas grandes corporações, pelo complexo industrial militar, e acredita ter todo o poder e que o mundo está aos pés dos EUA porque impõem a força das armas e invade países com total impunidade. É uma realidade dolorosa, mas também existe a resistência dos povos que não claudicam frente aos poderosos.

As atrocidades cometidas por teu país no mundo são tão grandes que dariam assunto para muita conversa. Isso é um desafio para os historiadores que deverão investigar e saber dos comportamentos, políticas, grandezas e mesquinharias que levaram os EUA á monocultura das mentes que não permite ver outras realidades.

A Bin Laden, suposto autor ideológico do ataque às torres gêmeas, o identificam como o Satã encarnado que aterrorizava o mundo e a propaganda do teu governo o apontava como “o eixo do mal”. Isso serviu de pretexto para declarar as guerras desejadas que o complexo industrial militar necessitava para vender seus produtos de morte.

Você sabe que investigadores do trágico 11 de setembro assinalam que o atentado teve muito de “auto golpe”, como o avião contra o Pentágono e o esvaziamento prévios de escritórios das torres; atentado que deu motivo para desatar a guerra contra o Iraque e o Afeganistão, argumentando com a mentira e a soberba do poder que estão fazendo isso para salvar o povo, em nome da “liberdade e defesa da democracia”, com o cinismo de dizer que a morte de mulheres e crianças são “danos colaterais”. Vivi isso no Iraque, em Bagdá, com os bombardeios na cidade, no hospital pediátrico e no refúgio de crianças que foram vítimas desses “danos colaterais”.

A palavra é esvaziada de valores e conteúdo, razão pela qual chamas o assassinato de “morte” e que, por fim, os EUA “mataram” Bin Laden. Não trato de justificá-lo sob nenhum conceito, sou contra todas as formas de terrorismo, desde a praticada por esses grupos armados até o terrorismo de Estado que o teu país exerce em diversas partes do mundo apoiando ditadores, impondo bases militares e intervenção armada, exercendo a violência para manter-se pelo terror no eixo do poder mundial. Há um só eixo do mal? Como o chamarias?

Será que é por esse motivo que o povo dos EUA vive com tanto medo de represálias daqueles que chamam de “eixo do mal”? É simplismo e hipocrisia querer justificar o injustificável.

A Paz é uma dinâmica de vida nas relações entre as pessoas e os povos; é um desafio à consciência da humanidade, seu caminho é trabalhoso, cotidiano e portador de esperança, onde os povos são construtores de sua própria vida e de sua própria história. A Paz não é dada de presente, ela se constrói e isso é o que te falta meu caro, coragem para assumir a responsabilidade histórica com teu povo e a humanidade.

Não podes viver no labirinto do medo e da dominação daqueles que governam os EUA, desconhecendo os tratados internacionais, os pactos e protocolos, de governos que assinam, mas não ratificam nada e não cumprem nenhum dos acordos, mas pretendem falar em nome da liberdade e do direito. Como pode falar de Paz se não quer assumir nenhum compromisso, a não ser com os interesses de teu país?

Como pode falar da liberdade quanto tem na prisão pessoas inocentes em Guantánamo, nos EUA e nas prisões do Iraque, como a de Abu Graib e do Afeganistão?

Como pode falar de direitos humanos e da dignidade dos povos quando viola ambos permanentemente e bloqueia quem não compartilha tua ideologia, obrigando-o a suportar teus abusos?

Como pode enviar forças militares ao Haiti, depois do terremoto devastador, e não ajuda humanitária a esse povo sofrido?

Como pode falar de liberdade quando massacra povos no Oriente Médio e propaga guerras e tortura, em conflitos intermináveis que sangram palestinos e israelenses?

Barack, olha para cima de teu labirinto e poderá encontrar a estrela para te guiar, ainda que saiba que nunca poderá alcançá-la, como bem diz Eduardo Galeano. Busca a coerência entre o que diz e faz, essa é a única forma de não perder o rumo. É um desafio da vida.

O Nobel da Paz é um instrumento ao serviço dos povos, nunca para a vaidade pessoal.

Te desejo muita força e esperança e esperamos que tenha a coragem de corrigir o caminho e encontrar a sabedoria da Paz.

Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz 1980.


Buenos Aires, 5 de maio de 2011


Do sítio Carta Maior

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Uma nova ordem mundial?

Muito bom artigo do teólogo Leonardo Boff, que transcrevo logo abaixo. As rebeliões populares no mundo árabe não ficarão restritas àquele canto do mundo... já se estendem a outros rincões... do primeiro mundo! É uma nova ordem mundial que começa a tomar corpo até mesmo dentro dos EUA e de países da rica Europa! Parece que os trabalhadores, sejam eles da Tunísia ou da Grécia , sejam eles de Madrid ou Wisconsin, estão cansados de sustentar calados um sistema que só faz historicamente expropriar em favor dos ricos (que ficam cada vez mais ricos), dos grandes bancos globais e dos especuladores sanguessugas.

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O mesmo mundo, a mesma dor


Por Leonardo Boff


A globalização trouxe uma externalidade, quer dizer, um efeito não desejado e incômodo para o sistema de poder imperante, fundado no individualismo: a conexão de todos com todos, de sorte que os problemas de um povo se tornam significativos para outros em sitação semelhante. Então se estabelecem laços de solidariedade e surge uma comunidade de destino.

É o que está ocorrendo com os levantes populares, mormente animados por jovens universitários, seja no mundo árabe seja em nove estados do Meio Oeste norte-americano começando por Wisconsin. Estes levantes nos EUA quase não repercutiram em nossa imprensa, pois, não interessa a ela mostrar a vulnerabiliade da potência central em franca decadência. Um jovem egípcio levanta um cartaz que diz:”o Egito apoia os trabalhadores de Wisconsin: o mesmo mundo, a mesma dor”. Como num eco, um estudante universitário estadounidense, voltando da guerra do Iraque levanta o seu cartaz com os dizeres:”Fui ao Iraque e voltei à minha casa no Egito”. Quer dizer, quer participar de manifestações nos EUA semelhantes aquelas no Egito, na Líbia, na Tunísia, na Síria e no Yemen.
Quem imaginaria que em Madison, capital de Wisconsin, com 250.000 habitantes, conhecesse uma manifestação de 100.000 pessoas vindas de outras cidades norte-americanas para protestar contra medidas tomadas pela governador que atam as mãos dos sindicatos nas negociações, aumenta os impostos da saúde e diminui as pensões? O mesmo ocorreu em Michigan onde o governador conseguiu fazer aprovar pelo parlamento estadual, uma esdrúxula lei que lhe permitiu nomear uma empresa ou um executivo com o poder de governar todo o aparato do governo estadual. Isentou em 86% o imposto das empresas e aumentou em 31% aquele dos contribuintes pessoais. Tudo isso porque os assaltantes de Wall Street além de saquearam as pensões e as economias da população, quebraram os planejamentos financeiros dos Estados. E a população mais vulnerável é obrigada a pagar as contas feitas por aqueles ladrões do mercado especulativo que mereciam estar na cadeia por falcatruas contra a economia mundial.

Conseguiram para eles uma concentração de riqueza como nunca vista antes. Segundo Michael Moore, o famoso cineasta, em seu discurso em apoio aos manifestantes em Wisconsin: atualmente 400 norte-amerianos tem a mesma quantia de dinheiro que a metade da população dos EUA. Enquanto um sobre três trabalhadores ganha 8 dólares/hora (antes era 10/hora), os executivos das empresas ganham 11.000 dólares/hora sem contar benefícios e gratificações. Há um despertar democrático nos EUA que vem de baixo. Já não se aceita esta vergonhosa disparidade. Condenam os custos das duas guerras, praticamente perdidas, contra o Iraque e o Afeganistão, que são tão altos a ponto de levarem ao sucateamento das escolas, dos hospitais, do transporte público e de outros serviços sociais. Há 50 milhões sem nenhum seguro de saúde e 45 mil morrem anualmente por não haver agenda para um diagnóstico ou tratamento.

O mundo árabe está vivendo uma modernidade tardia, aquela que sempre propugnou pelos direitos humanos, pela cidadania e pela democracia. Como a maioria dos paises é riquísima em petróleo, o sangue que faz funcionar o sistema moderno, as potências ocidentais toleravam e até apoiavam os governos ditatoriais e tirânicos. O que interessava a elas não era o respeito à dignidade das pessoas e a busca de formas democráticas de participação. Mas pura e simplesmente o petróleo. Ocorre que os meios modernos de comunicação digital e o crescimento da consciência mundial, em parte favorecida e tornada visível pelos vários Forums Sociais Mundiais e Regionais, acenderam a chama da democracia e das liberdades.

Uma vez despertada, a consciência da liberdade jamais poderá ser sufocada. Os tiranos podem fazer os súditos cantarem hinos à liberdade mas estes sabem o que querem. Querem eles mesmos buscar a liberdade que nunca é concedida mas sempre conquistada mediante um penoso processo de libertação. Agora é hora e a vez dos árabes.