No alto da minha contemplação, voltei trinta anos no tempo. Voltei à idade dos meus filhos hoje, 11 anos. Tirei algumas fotos e passei a refletir sobre a situação daquelas crianças, preservando uma brincadeira antiga, o gude, em meio a uma selva de pedras, asfalto e cimento.
Há trinta anos, quando era moleque, adorava jogar gude, assim como soltar pipa, peão, descer a rua com carrinho de rodas de rolimã, bater uma ‘pelada’ com bola de capotão ou dente-de-leite, jogar futebol de botão, queimada, garrafão e, claro, brincar de salada de frutas, que eu não era bobo e aproveitava pra arrancar uns beijinhos e uns abraços bem dados nas meninas da rua.
Enfim, mas todas essas e outras brincadeiras eram brincadas ao ar livre, em espaços abertos, campos de grama, barro ou areia, longe de carros, caminhões e gente apressada. E ninguém se preocupava em acabar logo a brincadeira pra voltar rápido pra casa e enfiar a cara em um computador ou videogame pra buscar diversão virtual ou ‘encontrar’ os amigos no Facebook, Orkut, salas de bate-papo ou no Second Life, My Life e outras bizarrices disfarçadas de suprassumos tecnológicos da modernidade.
Hoje, em nossa cidades, a infância está imprensada nos poucos espaços livres para lazer que gestores públicos descompromissados e irresponsáveis e construtoras gananciosas deixaram paras as nossas crianças. Dei um giro mental ao longo do local em que estava – na parte central do bairro Suíssa, e percebi que a razão para aqueles garotos estarem jogando ali, no cantinho da rua, presos entre a calçada e os carros, era porque não tinham pra onde ir. Todos os espaços de campos públicos foram tomados por casas e edifícios. A grande área verde e o maior espaço aberto ainda restante, a pouco mais de 100 metros de onde estavam, era cercada por altos muros e arames farpados, e ostentava placas ameaçadoras: ATENÇÃO! ÁREA DO EXÉRCITO. Quem ousaria entrar?

Vejo hoje meus filhos, por exemplo, na mesma situação. Moram em condomínio de apartamentos, onde as maiores áreas de escape para as suas diversões e traquinagens são uma piscina e um parquinho com chão de cimento e ardósia (caiu, lascou-se!). Não há uma quadra de esportes ou um espaço mais amplo de areia ou grama para brincarem, até porque os moradores optaram por ampliar ao máximo o número de vagas no estacionamento para seus segundos e até terceiros carros. Carros merecem mais espaços que gente. E é assim que a maioria das pessoas pensa.
Quando vemos nossos filhos viciados em computadores e televisão, apaixonados por brinquedos eletrônicos, celulares com MP3 e jogos, ou o último game da moda, tendemos a acreditar que é coisa desta geração, que é normal, que ficamos ultrapassados porque em nosso tempo era a pipa de papel, linha e bambu, feita por nós mesmos, que nos deixava felizes, ou o peão de madeira trabalhada, com um prego afixado na ponta e um barbante, e que nos bastava pra passar deliciosas tardes de disputas no chão duro e acrobacias com o bicho girando a mil por hora.
Não é verdade. Nem estamos ultrapassados, nem estes e outros brinquedos rústicos estão. Faça o teste. Eu já fiz. Certa vez, comprei uma pipa à moda antiga e fui soltar com meus filhos na praia; eles adoraram e se divertiram um bocado. Outro dia desencavei o meu velho ioiô – umas das raras coisas que guardei da infância, assim como alguns botões de mesa e alguns poucos selos do Brasil e do mundo – do meio das minhas tranqueiras e arrisquei umas manobras (e até que me saí bem). Eles ficaram doidinhos da silva, encantados com aquele brinquedo simples, entremeado a um barbante, girando e girando, permitindo muitas manobras diferentes (punch, volta ao mundo, cachorrinho, pulando a cerca, Torre Eiffel...); nos divertimos pra valer.
Então, não subestimemos esses brinquedos ou a simplicidade de brincar com uma criança num espaço descente, soltando uma pipa, um peão ou batendo uma bolinha com ela. Tampouco ignoremos o fato de que estamos, na verdade, empurrando nossas crianças para a televisão, o videogame e a realidade virtual dos computadores, ora porque não arrumamos tempo pra curtir a vida com eles de forma simples e rústica , ora porque não cobramos efetivamente dos gestores de nossas cidades que repensem – e muito – o modo como estão rateando os nossos espaços urbanos, deixando quase sem áreas de lazer as nossas crianças, sufocando suas infâncias. As prioridades, como se sabe, são a especulação imobiliária e ruas, avenidas e estacionamentos para os automóveis.
E os projetos de socialização, onde estão? Os projetos de resgate dos jogos e brincadeiras coletivas, colônias de férias, incentivos às práticas esportivas e oficinas de cultura popular, onde crianças possam fazer seus próprios brinquedos e com eles de divertirem? Em nada disso nossos gestores públicos pensam. Ganham suas eleições, mas se perdem nas mesmices de governos conservadores e insossos, que mais ajudam a embrutecer as pessoas que outra coisa.
E assim nossas crianças vão crescendo, em meio ao asfalto, ao cimento e aos carros, e tendo que se virar pra achar espaços onde minimamente possam exercitar o direito de serem o que realmente são: crianças. Começo a achar que tive muita sorte ao ter nascido há quatro décadas, quando dinheiro e modernidades não eram coisas tão importantes para um menino ou menina. Importante mesmo era ter espaço pra brincar, improvisar bastante nas brincadeiras, viver e ser feliz.