O Príncipe Real é um local de eleição.
Na cidade interna, como chamam alguns arquitectos e urbanistas às zonas de desenvolvimento até ao início do século XX, é de certo das mais interessantes.
O Príncipe Real é um local de eleição por motivos variados, e é precisamente essa variedade que lhe confere interesse. Convivem vários de tipos de gente, moradores ou não, existe algum cosmopolitismo, o comércio tem a sua graça, e a atmosfera dada pela arquitectura é graciosa (aspecto de especial relevância dado o descalabro urbano de grande parte da cidade, entregue à desgovernação de uns e à … … , como lhe chamar?, cupidez de outros!).
Nos últimos anos, no jardim da zona que se mantém famoso e formoso embora já tenha visto melhores dias em termos de conservação e limpeza, têm sido organizadas feiras que trazem à zona novas pessoas. Falo da feira de rua de antiguidades e artesanato, em domingos e segundas-feiras para mim incertos porque nunca assento o dia na agenda, e uma venda de produtos agrícolas biológicos aos sábados de manhã.
As antiguidades interessam-me muito, e embora os produtos estejam muito vistos, encontra-se sempre alguma coisa de curioso para observar ou mesmo para comprar em meses de economia doméstica mais favorável. O artesanato parece-me desinteressante, mas eu e esta forma de arte nunca fomos muito amigos. O certo é que há legiões de compradores entusiasmados e não há nada melhor do que ver gente feliz a vender a bons preços e outros encantados por comprar prendas para a família e os amigos.
A feira dos sábados também tem fiéis, fiéis às origens anunciadas dos produtos. Eu não pertenço a essa tribo, sou pouco crente na bondade daquelas cenouras raquíticas, dos morangos que me parecem por vezes maracaté, e das batatinhas engelhadas. Quanto ao mel, já provei mas pareceu-me mesmo igual ao outro – e não sei como pode ser um mel mais biológico ou natural que o outro. Mas é engraçado ver os membros da congregação dos produtos naturais a comprarem couves e a metê-las no porta bagagens do VW Touareg. Ou do Renaut Clio, tanto faz, claro. E, confesso: também já tenho comprado uma lombarda ou outra, mais para não se dizer que os moradores não participam da vida do bairro. O importante é dar oportunidade a quem quer vender e comprar e não há dúvida que o objectivo está assegurado.
Recentemente abriu outra feira, algo mais selecta. Ou deverei dizer, antes, seleccionada…. Dois minutos e 150 metros abaixo do jardim, exactamente frente ao ilustre Tribunal Constitucional (belo palacete clássico, robusto nas formas, emoldurado por árvores de bom porte e jacarandás, e guardado por interessante portão), nasceu um novo mercado, que tem satisfeito com galhardia aquele princípio atrás enunciado: dar oportunidade a quem quer vender e comprar, não havendo também dúvida que o objectivo tem sido assegurado, graças a uma certa conjugação de factores.
Os produtos transaccionados neste novo e emergente mercado local não são para qualquer um, já que se trata de estupefacientes. Apesar disso, podem ser vendidos, trocados e sei lá mais o quê, bem como consumidos logo no local, com apreciável tranquilidade. É vê-los à noite de 5ª fª, ou aos domingos logo muito cedo e durante toda a manhã, naquele frenesim típico, os carros que passam e arrancam, as cumplicidades trocadas (ah, as almas humanas em acção!); os pequenos grupos; os pés encostados às paredes; por vezes é notório o vigia, em carro fixo à porta do bar frente ao tribunal, intimidando e fiscalizando o negócio (pois se as polícias não aprecem, alguém tem de olhar pelo cumprimento das suas regras), ou fazendo passagens qual ronda da autoridade; coitados, às vezes, alguns caem, droga a mais, misturas com álcool, são jovens, não pensam, o corpo é que paga – os moradores indirectamente também, mas são danos colaterais, quais detalhes insignificantes nas guerras do Bush.
Refira-se, aliás, que o ambiente fica fantástico, até porque ao contrário das duas feiras que tive o gosto de referir atrás, neste mercado existe música ambiente, com fortes decibéis e agreste batida nocturna (o facto de estarmos numa zona residencial e estarmos numa 5ª fª às 4h ou domingo de manhã são pequenos pormenores que não têm despertado o interesse das polícias[1] ou das autoridades municipais[2]) com origem no pólo agregador e simultaneamente difusor da dinâmica e pujança desta feira: o bar frente ao tribunal, cujo horário de funcionamento autorizado pela CML é das 09:00h às 04:00h – o facto de aos domingos abrirem em regime de after hours às 07:00h duas horas antes do permitido é outro pequeno pormenor que também não despertado o interesse das polícias1 ou das autoridades municipais2). Com a música ambiente assim tão alto, contrastando com a calma matinal de um domingo, sempre se gera um outro ambiente mais propício ao tráfico e consumo de drogas. Afinal, tudo se quer em ambiente próprio, e como este originalmente não era o mais acolhedor para o efeito, o espírito empreendedor – que tanta falta faz à cidade e ao País - tem resolvido a dificuldade.
Diga-se ainda que este mercado, também ao invés dos outros referidos, anima a economia: dá postos de trabalho a desempregados desqualificados e proporciona grande movimento a taxistas que, em dias difíceis como estes, têm montes de trabalho a levarem e trazerem pessoas para o bar. Não se pode pedir mais.
Tudo somado, são três feiras muito distintas que dão muita animação e personalidade ao Príncipe Real. O único problema é que indo para velho, tanta animação já me perturba um pouco. Mais do que duas feiras no local onde vivo é demais para mim. E como da última não penso comprar nada, eu ficava-me pelas duas primeiras.
Nuno Caiado
[1] Oficialmente, a PSP diz que na zona “
há polícia aos pontapés” (frase elucidativa e elegante dum Intendente, mesmo a dar com o charme do bairro); mas eu julgo que a expressão se deve ao espírito futebolístico da época e não deve ser tomada excessivamente a sério, aquilo era ele só a reinar, pois eu não vi assim tanta polícia aqui, com botas ou sem botas, e os traficantes e consumidores fazem a sua vida com a calma que a sua actividade lhes impõe, tal qual como nas outras duas feiras (embora nessas ocasionalmente apareça a polícia municipal). Por outro lado, e com a devida vénia a quem teve a ideia, eu acho que os polícias aqui são só actores contratados que, naturalmente, não estão autorizados a agirem por não serem polícias de verdade – pelo menos quando os chamamos eles não vêm, deve ser por isso…
[2] a expressão autoridades é meramente retórica, porque quem manda aqui ninguém sabe; a situação está em vias de ser corrigida, dentro em breve tudo ficará mais claro, sendo os traficantes, a malta da noite e os bares a mandarem na zona, pondo fim a um atribulado processo de delimitação de competências.