In Público, 11 Abril 2013. Por Cláudia Carvalho e Joana Amaral Cardoso
“O grande mentor ideológico de uma política de paisagem”, defensor do “espaço carregado de memórias”, o arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles é o Prémio Sir Geoffrey Jellicoe
O arquitecto nos jardins da Gulbankian
PEDRO VALDEZ
Um prémio que é “uma couraça” e que valida as propostas para resolver os “problemas que têm preenchido a minha vida e que eram entendidos como utopias” —
Gonçalo Ribeiro Telles recebeu ontem o maior reconhecimento internacional para um arquitecto paisagista, o prémio Sir Geoffrey Jellicoe, da Federação Internacional dos Arquitectos Paisagistas (IFLA). Uma consagração que o arquitecto considera ser agora uma defesa implícita das suas causas: a ecologia e o ordenamento do território.
Arquitecto, político e professor, Gonçalo Ribeiro Telles continua aos 90 anos a dar “reconhecimento público e internacional” à profissão de arquitecto paisagista em Portugal,
disse ontem em comunicado a Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas (APAP), responsável pela candidatura de Ribeiro Telles ao conceituado galardão. “São 70 anos
de carreira a lutar pela defesa da paisagem”, destaca ao PÚBLICO a vice-presidente da APAP, Margarida Cancela de Abreu, para quem esta distinção entregue em Auckland, na Nova Zelândia, surge num momento em que a profissão está a ser
relegada para segundo plano. “Isto vem dar-nos algum alento, estamos a ser subalternizados em relação a algumas leis, algumas das quais feitas por Ribeiro Telles enquanto ministro”, continua a arquitecta paisagista.
Ribeiro Telles é fundador da Reserva Ecológica Nacional (REN) e da Reserva Agrícola Nacional, criadas em 1983, quando era ministro de Estado e da Qualidade de Vida no Governo de Aliança Democrática, actos que o arquitecto considera serem os seus maiores contributos de carreira. Nomeadamente contra a transformação das florestas em espaços de monocultura para fins industriais — aquilo a que chama, em declarações ao PÚBLICO, a “eucaliptização do país” —, ou na sua defesa da manutenção da ligação da população à terra.
O arquitecto descreve Portugal como “uma paisagem policultural de grande valor e expressão”, mediterrânica, que sofreu “anos e anos de uniformização como se não houvesse uma história”. “Houve uma ocupação do território abusiva e uma degradação do solo para benefício da especulação urbana e das culturas extensivas.”
O filósofo e ambientalista Viriato Soromenho Marques lembra-se de ver Gonçalo Ribeiro Telles na televisão, em 1967, a falar sobre as cheias em Loures, que mataram 500 pessoas. Ribeiro Telles foi directo: na origem daquelas mortes estava a construção sobre um leito de cheias. “Era pouco habitual ouvir alguém fazer críticas na televisão naquela altura”, recorda Soromenho Marques.
A pertinência da distinção atribuída pela IFLA é grande para o professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sobretudo num momento de revisões legislativas à REN e de uma crise em que “estamos presos pelo estômago. Imagine-se a nossa capacidade negocial com a Alemanha se tivéssemos a capacidade de sustentar o país”. Isto porque Ribeiro Telles “defendeu sempre que o destino de Portugal em busca de um novo enquadramento estratégico na Europa dependia da nossa ligação ao território”, lembra Viriato Soromenho Marques, que remata: “O que é duradouro não é
o moderno, é o clássico - e Ribeiro Telles é um clássico”.
“Grande mentor ideológico”
O Jardim da Fundação Gulbenkian, em Lisboa (década de 1960, com António Viana Barreto, projecto que recebeu o Prémio Valmor 1975), o Jardim do Tanque Palácio de Mateus (1960), em Vila Real, a ideia de um Corredor Verde para a capital e o Jardim Amália Rodrigues (1996), no Parque Eduardo VII lisboeta, mas também a criação de hortas urbanas e os projectos dos vales de Alcântara e de Chelas, da Radial de Benfica e do Parque Periférico são algumas das obras de Gonçalo Ribeiro Telles.
Nascido em Lisboa em 1922, trabalhou na câmara da capital na década de 1950, tendo 30 anos depois sido vereador autárquico.
A obra arquitectónica de Ribeiro Telles está toda em Portugal e, por isso mesmo, a distinção com o prémio Sir Geoffrey Jellicoe perfilava-se como difícil. Esta foi a sua segunda candidatura ao galardão criado em 2004 como prémio quadrienal, passando em 2011 a anual. Ribeiro Telles sucede assim a Peter Walker (EUA), Bernard Lassus (França),
Cornelia Hahn Oberlander (Canadá) e Mihaly Mocsenyi (Hungria).
Em paralelo com a carreira de arquitecto, que arranca com a licenciatura em Engenharia Agrónoma no Instituto Superior de Agronomia em 1952, ano em que concluiu o Curso Livre de Arquitectura Paisagista, imediatamente após o 25 de Abril Ribeiro Telles integrou os primeiros três Governos provisórios como subsecretário de Estado do Ambiente. Já no I Governo Constitucional foi também secretário de Estado do Ambiente, além de ter sido fundador do Partido Popular
Monárquico e do Movimento Partido da Terra.
Em 2011, a Fundação Gulbenkian prestou-lhe homenagem com um colóquio para discutir o seu trabalho, ideias e legado, tendo como pano de fundo os jardins que desenhou com Viana Barreto e que, para Viriato Soromenho Marques, são “um capital activo” de que tanta gente diariamente usufrui. A arquitecta paisagista Aurora Carapinha, que organizou essa homenagem, enfatiza não só o valor profissional de Ribeiro Telles, mas também a sua “dimensão humanista, pela partilha
do conhecimento.”
Ribeiro Telles “é o grande mentor ideológico de toda uma política de paisagem”, que remonta aos anos 1960 e que se desenvolveu em Portugal mesmo antes de outros países, reitera Carapinha. Essa forma singular de olhar a paisagem procura “uma relação íntima entre a cultura e a natureza”. Também para a arquitecta paisagista Teresa Andresen, Ribeiro Telles “inovou no discurso político em Portugal, fazendo prevalecer os princípios da ecologia e do ordenamento do território”. Carapinha sublinha também “a introdução da ecologia, não de uma maneira fundamentalista, mas como um dos primeiros elementos-base do trabalho”. Conceitos como “biodiversidade”, “multifuncionalidade”, “equilíbrio”, “dinâmica” e “a noção de recurso finito” começaram a ser desenvolvidos muito cedo por Ribeiro Telles na sua prática profissional.
Espaços com memória
Teresa Andresen comissariou em 2003 a exposição
Do Estádio Nacional ao Jardim Gulbenkian. Francisco Caldeira Cabral e a primeira geração de arquitectos paisagistas (1940-1970), na Fundação Gulbenkian, quase um caminho entre Caldeira Cabral e Ribeiro Telles. Para João Gomes da Silva, separado por quatro décadas de Ribeiro Telles, foi mesmo o mentor do Corredor Verde de Lisboa quem “estabeleceu a disciplina da arquitectura paisagista em Portugal”. O co-autor do projecto de requalificação da Ribeira das Naus, na frente ribeirinha lisboeta, considera que Ribeiro Telles ”soube mostrar aos cidadãos como é importante olhar para o espaço onde habitamos”. Gomes da Silva mantém uma relação especial com Ribeiro Telles, com quem já trabalhou. “Há qualquer coisa dele que passou para mim.”
João Gomes da Silva fala de um “espaço carregado de memórias” que Ribeiro Telles sempre defendeu, exemplificando com a obra da Capela de São Jerónimo, em Belém. “É um projecto menos conhecido, mas que é notável pelo seu resulta do espacial e sentimental. Faz um eixo simbólico entre a capela, que era onde os navegadores rezavam antes de partirem, e a Torre de Belém, às portas do rio”, explica.
O prémio, sem valor pecuniário, chegou então dos antípodas, como descreveu Ribeiro Telles no texto de agradecimento do prémio, lido em Auckland pelo arquitecto paisagista Miguel Braula Reis, presidente da APAP, em sua representação.
Nesse texto, Ribeiro Telles recua à sua memória das viagens anuais de Lisboa a Coruche, todos os Natais, como uma experiência “omnipresente” na sua carreira, porque “ficava sempre espantado quando encontrava um mundo diferente daquela avenida axial e movimentada no centro da cidade”, a Avenida da Liberdade, onde estudava e brincava. O “apelo da quase ruralidade”, “o mistério do montado” fazem parte da paisagem a partir da qual aprendeu, escreve.
No mesmo texto, o arquitecto volta aos temas que lhe são próximos: a ideia de “paisagem global” que cunhou em 1990, à “modernidade como junção tanto de rural quanto de urbano”. E presta homenagem a Francisco Caldeira Cabral (1908-1992), o pioneiro da arquitectura paisagista em Portugal, de quem Ribeiro Telles “é um dos maiores discípulos”, segundo Teresa Andresen, para falar destes profissionais. Para ele, são os “mais bem formados” para “acender uma operação que materializa utilidade, estética e sustentabilidade, o que é o mesmo que dizer: cultura e vida”. No fundo, uma homenagem à sua profissão de “fabricantes de paisagem”.
com Isabel Salema