Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











Mostrar mensagens com a etiqueta Sudão. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Sudão. Mostrar todas as mensagens

sábado, outubro 22, 2011

DIGNIDADE (reportagem no Sudão)

sexta-feira, março 23, 2007

À la africaine...

pintura mural em Bondo, Congo Democrático, 1999
.
Angola está quase a ultrapassar a Nigéria como principal produtor de petróleo de África. Angola é uma potência regional emergente e isso sente-se nos países vizinhos. Foi Angola quem pôs Joseph e Laurent Kabila no poder, no Congo Democrático (que raio de designação para um país daqueles…) e que sustentou esse regime “dinástico”durante a guerra civil. Angola fez o mesmo no outro Congo plus petite, idem para o Zimbabwe. Angola não se inibe de provocar quedas de regimes que não lhe convenham. Foi o que fez com todos os que apoiavam Savimbi, só falhando o golpe de estado que preparou na Zâmbia.
Nos países onde a pressão da comunidade internacional consegue a realização de um simulacro de democracia, com eleições gerais mais ou menos livres e justas, os “cavalos” angolanos vencem sempre. Muitas vezes, os derrotados acabam por aceitar integrarem-se no sistema, talvez convencidos de que os deixarão comer na alta manjedoura do poder. Mas não. Há sempre um acidente comprometedor para futuros tão promissores… foi o que aconteceu com John Garang, no Sudão, é o que pode vir a acontecer com Jean Pierre Bemba no Congo, ou com Morgan Tsvangirai no Zimbabwe, se não se põem a pau.
A política africana é fascinante!

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Carta ao menino Jesus

"Meu querido Menino Jesus,
Quando era puto, ensinaram-me que és tu que trazes os presentes na noite de Natal. Depois apareceu esse velhote de barbas brancas vestido à Benfica – que mau gosto! – a distribuir as prendas. Não tenho nada contra ele, mas o pai-natal é cada um de nós, porque «é Natal quando cada um quiser».
O Natal é o teu dia de anos! Às vezes esquecemo-nos disso… Tem piada: fazes anos e dás os presentes. És bué fixe. Por isso é que resolvi escrever-te alguns pedidos.
Antes de mais, quero que abençoes a pessoa que está a ler esta carta. Sabes? Gosto muito dela. Enche-a da tua paz e deixa-lhe um 2007 cheio de bondade!
Depois, peço a tua bênção para as crianças do Mundo. O Evangelho conta que nasceste fora da cidade, entre os excluídos, e que foste refugiado no Egipto para escapar à violência invejosa de Herodes. Há milhões de menores traficados, escravizados, forçados a pegar em armas ou a entrar na prostituição. Nunca vão ser meninos! Cuida deles de uma forma especial. Sobretudo das crianças do Darfur, da Palestina, do Iraque que (sobre)vivem e crescem no meio da violência e da morte.
Recorda-te também das pessoas do Sul do Sudão. Andam ocupadas a reconstruir as vidas depois de 20 anos de guerra. Muitas sentem-se frustradas. Que ultrapassem o ódio e os desejos de vingança! E que os dirigentes usem os recursos humanos, económicos, naturais, sociais e culturais para o bem comum. Sabes? Aqui dizem que a sigla GoSS – Governo do Sul do Sudão em inglês – também quer dizer Government of Serf Service, Governo de Auto Abastecimento!
Abençoa a equipa que está a iniciar a Rede Católica de Rádio do Sudão. Ser boa notícia neste contexto é um desafio enorme. Dá-nos audácia e coragem. E um forte sentido de equipa.
Com a tua ajuda, que os vizinhos descubram que os amas através das missionárias e dos missionários que vivem no espaço chamado Comboni House.
Para mim, já me deste tanto que até tenho vergonha de te pedir mais. Deste-me esta vida linda, a minha família, os amigos, a família comboniana… Faz que me sinta feliz no calor e no pó desta cidade em ebulição. É pedir muito?
Ah! Não te preocupes. A minha casa não tem chaminé e eu não uso sapatos. Só sandálias! Por isso, deixa os presentes no corredor à porta do meu quarto!
Um xi-coração do teu mano Zé."

Carta escrita pelo meu amigo José Vieira que está no Sudão a fazer pela vida dos outros.

segunda-feira, setembro 18, 2006

As aparências iludem

Até pode parecer que ando a organizar a papelada da minha vida, mas não. Acontece que, volta e meia, remexo nas coisas e “descubro” velhos episódios…
Agora, encontrei o passepartout que o SPLA emitiu quando fui ao Sudão pela 2ª vez.
Estava num dossier, no meio de papelada diversa onde predominam documentos relacionados com a minha saída da SIC em 2003. Essa é uma outra história que vos contarei um dia destes…

O interessante sobre este documento do SPLA é o carimbo que o autentica. Em tinta roxa, certifica-se que o documento que me autorizava a viajar foi passado pelo Sudan Relief and Rehabilitation Association, uma ONG sedeada em Nairobi, no Quénia, que alegadamente se dedicava às crianças órfãs da guerra civil sudanesa. De facto, a sede da SRRA era a “embaixada” do SPLA no Quénia. Era, ainda, através desta ONG que o SPLA administrava boa parte do dinheiro doado pelos seus amigos ou aliados para a sustentação da guerra.Foi fácil obter este documento, sem o qual não teria conseguido viajar. Foi fácil porque quem solicitou a autorização foi a Igreja Católica, através da Diocese de Rumbek, uma cidade importante no sul do Sudão, cujo Bispo, um italiano, vivia refugiado em Nairobi.
Às vezes, encontramos apoios onde menos se espera, não é?

A segunda foto é um recuerdo dessa viagem. À minha direita está Dorinda Cunha, a heroína dessa história que contei num documentário intitulado "Missão Impossível", exibido na SIC, trabalho que mereceu o prémio Jornalismo Contra a Indiferença atribuído pela AMI.

quarta-feira, agosto 02, 2006

Sudão, história antiga

“Nós três fomos levados para esse lugar. Quando nos tiraram a venda dos olhos, estávamos numa sala com uma janela muito alta. Estava muito escuro. Nunca soubemos onde aquela casa ficava, mas era em Cartum. Ficámos lá três dias. Sempre em pé, durante esses três dias, com as mãos na parede, dia e noite na mesma posição”.
Acabaram de ler uma pequena parte de um extenso depoimento feito por Magok Gou Riak, no final de 2003, quando esteve em Lisboa para participar numa acção cívica (promovida pelos Missionários Combonianos) que pretendeu chamar a atenção para o genocídio que o governo do Sudão leva a efeito sobre as populações do centro e sul do país.
Fui eu quem propôs a realização da entrevista à direcção da TSF. Se não fosse assim, ninguém se lembraria de considerar o assunto relevante. A guerra civil sudanesa nunca foi assunto de primeira página nos media portugueses. Só depois de António Guterres ter sido nomeado Alto Comissário da ONU para os Refugiados alguns jornalistas portugueses foram até ao Sudão, mas sempre trataram o assunto pela rama e com pressa, como se tivessem medo de perder o avião de regresso e ficar ali no meio das pedras do deserto. Até então, não me lembro de algum outro repórter ter andado por lá, a não ser eu, perdoem-me a imodéstia… se é que é disso que se trata.
Quando Magok Gou Riak chegou a Lisboa, no final de 2003, eu já estava a trabalhar na TSF. Nenhuma televisão o entrevistou…
Do meu bloco de notas não consigo tirar muito “sumo” deste acontecimento. Preciso de excitar a memória… mas mostro-vos (na folha digitalizada) como iniciei esse trabalho… “torturado, espancado, obrigado a confessar culpas inventadas pelos torturadores, acabou com dentes e ossos quebrados. Os que resistem à islamização, não têm futuro no Sudão”…
Continua no próximo capítulo.

terça-feira, junho 27, 2006

Sudão, petróleo vermelho de sangue

Denudado, questionou-me assim, na caixa de comentário do texto de ontem: Carlos, tem a certeza de que os negócios do petróleo sudanês estão em mãos americanas? Eu não tenho a certeza, mas parece-me que não, pelo menos na sua maior parte. Se bem me recordo de uma notícia ouvida há tempos na BBC, o petróleo sudanês está, sobretudo, em mãos indianas. Os chineses parecem ter igualmente alguns interesses petrolíferos no Sudão, o que também não é de admirar.
Bom, escrevo de memória e, portanto, corro o risco de ser pouco rigoroso. Depois de ter sido interpelado por esta presumível imprecisão, fui verificar. Inseri duas palavras no motor de busca do Google: “Sudan oil”. Apareceu-me uma chuva de textos e uma catadupa de nomes de empresas petrolíferas, a saber:
1- ONGC Videsh, da Índia
2- CNPC, da China
3- Talisman Energy Inc., do Canadá
4- Petronas, da Malásia
5- Gulf Petroleum, do Qatar
6- IPC, da Suécia
7- OMV, da Áustria
8- Total/Fina/Elf, consórcio europeu
9- Royal Dutch, da Holanda
10- Shell, dos EUA
11- Chevron Oil Co., dos EUA
12- Arakis Energy Co., do Canadá

Ora, sabia que a Chevron e a Shell estavam no Sudão desde a década de 70, mais ou menos quando se reiniciou a guerra civil entre os do norte (arabizados) e os do sul (negros). E sabia que as empresas ocidentais tinham sido bastante criticadas pela opinião pública, devido a essa colaboração com o regime sudanês. Boa parte das receitas da exploração desse petróleo foi encaminhada para a compra de armas, o que significa que também as empresas de armamento ocidentais lucraram com a situação.

Aprendi, agora, que boa parte dos interesses ocidentais na exploração petrolífera no Sudão foi, realmente, adquirida pela CNPC da China.
O súbito desenvolvimento industrial chinês transformou uma sociedade rural num imenso consumidor de recursos naturais e, assim, a China virou-se para África, o continente onde esses recursos e a corrupção existem ainda em abundância.
A China e o Sudão são, hoje, fortes aliados comerciais e políticos. O Sudão é, de resto, beneficiário do maior investimento externo chinês, maior mesmo que o que está a ser realizado em Angola. Depois da Guerra Fria, África volta a estar no centro da disputa entre duas super-potências, desta vez com a China a substituir a extinta URSS no confronto com os EUA.
A China é o principal fornecedor de armas do Sudão (alguns exemplos estão patentes nas fotos deste texto). Há meia dúzia de anos atrás, o Sudão não tinha nenhum batalhão de blindados ou sequer mecanizado, não tinha aviação nem artilharia de longo alcance. Hoje, as forças armadas sudanesas dispõem de tanques, caças bombardeiros, helicópteros, lança mísseis e sei lá o que mais, tudo Made in China, como as t-shirts da Zara…

segunda-feira, junho 26, 2006

Sudão, o velhaco Omar

A primeira vez que entrei no Sudão foi, como já disse aqui antes, num voo clandestino entre a localidade queniana Lokichokio e uma pista improvisada algures nas Montanhas Nuba.
O voo era clandestino, porque estava proibido pelo governo sudanês que, já há anos, tinha o espaço aéreo fechado inclusivamente para voos humanitários.
Já naquela altura, em 1999, o governo sudanês proibira todas as agências humanitárias, mas todas mesmo, de actuarem nas Montanhas Nuba. Um governo que age assim, não se importa que o povo morra de fome, doença ou violência. A proibição decretada agora, para a região do Darfur, não é novidade, portanto. O pretexto de que as Nações Unidas transportaram um líder rebelde e que, com isso, teriam violado a soberania sudanesa, é mais uma vergonhosa chantagem de um governo que apenas pretende manipular politicamente os factos e usar as necessidades prementes do povo como moeda de troca.
É nojento que a ONU tenha de negociar com bandidos deste calibre e é nojento que a comunidade internacional reconheça a um governo destes qualquer tipo de legitimidade institucional.
Há no Darfur, segundo estimativas da ONU, mais de 2 milhões de refugiados, extremamente dependentes da ajuda humanitária. Podemos somar mais 1 milhão de Nubas e mais algumas largas centenas de milhar no sul do Sudão, e temos a maior crise humanitária em curso no Mundo a ser manipulada cinicamente por um poder enriquecido pelas expropriações dos territórios tradicionalmente pertença das comunidades tribais negras e pelos negócios do petróleo, nas mãos das empresas petrolíferas norte-americanas.
Porque será que impedir a ajuda humanitária a populações carentes não é crime? A decisão do velhaco Omar el Bashir provoca centenas de mortes por dia.

segunda-feira, junho 19, 2006

Ainda sobre os mais velhos

Em muitas sociedades indígenas, e mesmo em sociedades modernas mas pouco desenvolvidas em termos industriais, o papel dos velhos é da maior importância. Ninguém sabe mais do que eles. Pelo que tenho lido, mas também pelo que tenho assistido, a sobrevivência de muitos povos depende dos ensinamentos que os velhos transmitem. Talvez seja por isso que, em muitas dessas sociedades, a idade não tem importância. Tomei consciência disso mais do que uma vez. Por exemplo, quando estive com Dorinda Cunha, no sul do Sudão, a missionária serviu de intérprete nas entrevistas que fiz com a população de Marial Lou, a aldeia dinka onde Dorinda vivia e, numa dessas entrevistas, a dada altura perguntei à senhora com quem falávamos que idade ela tinha. Dorinda hesitou e não fez a pergunta. Virou-se para mim e disse: “Eles não sabem. Isso não tem importância nenhuma”.No sul do Sudão, importante era saber com alguns dias de antecedência quando ia chover, o tempo suficiente para preparar o chão e deitar-lhe as sementes, importante era, também, perceber a tempo quando algum animal estava doente de modo a evitar a contaminação da manada, importante era ter muitos filhos e saudáveis e saber cuidar deles e ensinar-lhes a conversar com os deuses, as marcações dos rituais, o manejar da AK-47. Tudo coisas que os velhos sabem melhor do que ninguém.
Só nas sociedades nómadas e nas industrializadas, os velhos se tornam empecilhos. Nos nómadas, porque não conseguem acompanhar o andamento do grupo. Nas industrializadas, porque convencionou-se que o tempo é dinheiro e, assim, como a maioria de nós não tem dinheiro, acabamos por não ter tempo para os nossos velhos. E porque pensamos que não temos nada para aprender com eles.

quarta-feira, maio 17, 2006

Os Nuba

As fotografias e o testemunho de António Cores, um espanhol que também andou pelas Montanhas Nuba.

terça-feira, maio 16, 2006

Carimbo = Poder

Testemunhei várias situações em que entidades não-estatais desempenhavam o papel do Estado. Quase sempre grupos rebeldes, mas nem sempre. Na Bósnia, por exemplo, foi um soldado norueguês quem me carimbou a vermelho no passaporte MAYBE AIRLINES.
Uma espécie de recuerdo que eles impunham a todos que chegavam a Sarajevo a bordo dos aviões militares. Na primeira vez que entrei no Sudão, tive de pedir um passepartout ao SPLA, Exército de Libertação dos Povos do Sudão. A “embaixada” funcionava em Nairobi, no Quénia, na sede de uma ONG que alegadamente tratava de ajuda humanitária nas zonas controladas pelos rebeldes sudaneses. Duas fotografias e um impresso em duplicado, tal qual nas representações oficiais dos Estados. O documento que vos mostro autorizava-me a viajar nas Montanhas Nuba, no Kordofan sul, por um período de três semanas a partir de 19 de Março de 99. Um carimbo azul e outro vermelho certificam o documento e oficializam a autorização. Estes rituais têm dois propósitos: arrecadar receitas e, principalmente, exercitar poder. Depois de emitidos, normalmente nunca nos pedem para exibir tais documentos. Talvez porque sem eles não poderíamos estar ali e porque a maioria das pessoas que nos poderiam pedir para ver a autorização não sabe ler.

quarta-feira, abril 26, 2006

Sudão, 2000. Dorinda (2)

Na aldeia de Marial Lou, Dorinda dedicava especial atenção a dois dos seus empreendimentos: o internato de raparigas e a cooperativa de mulheres. Numa sociedade tradicionalista como aquela (tribo Dinka), estas duas iniciativas eram revolucionárias. Na escola interna, as meninas estavam a salvo de hábitos milenares de submissão feminina à vontade dos homens. Entre estes povos sudaneses, casar uma filha aos 10 ou 12 anos não é nenhuma raridade. Tudo depende da riqueza do pretendente… das dezenas de meninas que viviam no internato, Dorinda tinha a secreta esperança de conseguir “desviar” duas ou três, as mais capazes intelectualmente, para continuarem os estudos no Quénia. Esta era a verdadeira revolução que Dorinda tinha em marcha, a mudança de mentalidades. Na cooperativa de mulheres, tecia-se a mesma “intriga”… as cooperantes foram recrutadas entre as mais pobres e as mais exploradas mulheres da aldeia. Uma delas era, mesmo, uma prisioneira de guerra. Era uma mulher de etnia Nuér, uma mulher soldado, capturada em combate pelos Dinka. Ao longo dos anos de cativeiro, aquela mulher tinha sido violada em todos os sentidos. Quando Dorinda deu por ela, morria de fome e de pancada. Ela e um filho ainda bebé… na cooperativa, as mulheres faziam roupa, com tecidos que Dorinda pedinchava no Quénia. Vendiam a roupa e o dinheiro dava-lhes não só capacidade de sobrevivência, como as tornava independentes dos homens. Muitas deixaram de ser vítimas da brutalidade com que habitualmente eram tratadas. Algumas até acabaram por expulsar os agressores de casa. Completamente revolucionário.

Dorinda Cunha está ao centro, na foto, entre mim e o Odácir Júnior, o repórter de imagem que trabalhou comigo no sul do Sudão. O outro branco é o padre John Pax, comboniano norte-americano.

domingo, abril 23, 2006

Sudão, 2000. Dorinda (1)

No interior da região do Alto Nilo, a missionária portuguesa Dorinda Cunha dedicava-se a salvar vidas. A acção decorria em Marial Lou, uma aldeia que não consta em qualquer mapa. A localidade tinha sido fundada apenas quatro anos antes, para servir de refúgio aos fugitivos dos ataques do exército governamental sudanês. Na época das chuvas, Marial Lou transformava-se numa ilha rodeada de pântanos. Durante meses, era um local inacessível. Estas condições geográficas, a localização incerta, mantinham Marial Lou a salvo da guerra, mas demasiado perto da miséria extrema… Dorinda falava perfeitamente o dialecto local. Só assim conseguia dinamizar grupos de pais para apoiar a construção da escola, só assim os conseguia convencer a não retirar as meninas da escola cedo demais, para as casar com o primeiro homem que aparecesse com dinheiro na mão, só assim conseguiu pôr de pé a fábrica de tijolos com que pretendia revolucionar a construção de habitações, só assim era possível viver no meio dos Dinka, um povo demasiado habituado à guerra. Uma mulher no meio dos guerreiros. Foi assim durante mais de 30 anos. A primeira missão de Dorinda Cunha foi no Norte do Sudão. Foi expulsa, quando o governo sudanês decretou a sharia e decidiu islamizar à força a maioria não-muçulmana dos habitantes do país. Expulsa do Norte, entrou clandestinamente no Sul e passou a viver com as comunidades católicas nas zonas controladas pela rebelião do SPLA.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Sudão, os Nuba (3)

Nas Montanhas Nuba, no Sudão, fui testemunha do milagre da multiplicação… das galinhas.
Num dos locais onde parámos para retemperar forças havia uma espécie de hospedaria. Era uma palhota de pau a pique, sem paredes. Tinha uns muros baixinhos que dividiam a casa nas várias salas. E tinha uma zona onde se cozinhava, numa fogueira de lenha.
Ficámos ali quase 24 horas. As bolhas nos pés estavam a matar-nos… De modo que vi aquela senhora cozinhar para muitas pessoas.

Vinham aos grupos familiares, era gente que se tinha deslocado da aldeia onde viviam até aquele mercado. Por causa da guerra, os Nuba não têm mercados junto às aldeias. Normalmente, os mercados ficam em locais equidistantes de várias povoações. Assim, tentam evitar grandes aglomerações de pessoas e limitam a tendência para a formação de grandes aglomerados habitacionais. Com esta medida, minimizam o efeito dos bombardeamentos aéreos governamentais. As pessoas, quando precisam de trocar produtos, deslocam-se a um desses locais. Não há dinheiro em circulação, de modo que é preciso carregar alguma coisa que valha para a troca com aquilo de que se necessita. Moeda forte, por lá, são “pepitas” de sal e roupa. O sal é raríssimo e chega em caravanas que conseguem furar o bloqueio que o exército do governo faz às Montanhas Nuba. A roupa, só mesmo a que chega nos voos clandestinos das ONG humanitárias ou do padre Renato Kizito.
Então, nessa hospedaria, a senhora tinha uma galinha, pronta a ser cozinhada. Vi essa galinha ser fervida umas 15 vezes, ao longo desse dia. A mulher, por cada fervura, juntava na panela umas verduras e sementes de sésamo. Servia o caldo, mas guardava a carne que, depois, voltava a ferver para os clientes seguintes. Por cada fervura, a galinha ia soltando alguma carne, até que desapareceu por completo. Mas, deste modo, uma galinha ajudou a alimentar dezenas de pessoas.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Maria Grazia

Recebi uma newsletter do Sindicato dos Jornalistas, onde se dá conta da preocupação que reina entre jornalistas de todo o Mundo, por causa do que está a acontecer com os jornalistas que estão a trabalhar no Iraque, nomeadamente em Bagdad. Segundo essa newsletter, “Bagdad é um dos locais onde nenhum jornalista pode sair em segurança para a rua, como o provam o assassinato recente de três profissionais da televisão iraquiana no mesmo bairro em que Jill Carroll foi sequestrada e o seu tradutor Allan Enwiyah morto”. Desde o início da guerra, já morreram mais de cem jornalistas no Iraque e muitos ficaram feridos (entre eles, a repórter da SIC, Maria João Ruela).
Este alerta fez-me pensar em Maria Grazia Cutuli, uma jornalista italiana que conheci no Sudão. Cruzamo-nos por uns breves três dias, numa aldeia no sul do Sudão. Ela trabalhava para o jornal Corriere della Sera, de Roma.
Em Outubro de 2001, no hall de um hotel em Peshawar, no Paquistão, estava ao telefone e foi ela quem primeiro me viu e me cumprimentou. Foi um encontro ainda mais rápido que o primeiro. Mas foi um momento alegre. Ela era assim, alegre e enérgica. No dia seguinte viajei para Rawalpindi e ela ficou por ali.
Semanas depois, em Novembro, Maria Grazia Cutuli entrou no Afeganistão e foi morta na estrada de Jalalabad para Kabul, por um bando de assaltantes. Tinha 39 anos. As fotos vieram publicadas em vários jornais italianos, quando se soube do sucedido… Com ela morreram outros três jornalistas de diferentes nacionalidades: Harry Burton, 33 anos, camera-man da Agência Reuters; Azizullah Haidari, 33 anos, afegão, repórter fotográfico da Agência Reuters ; Julio Fuentes, 46 anos, repórter espanhol do jornal El Mundo.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Sudão, os Nuba (2)

O avião era um Antonov russo. A bordo iam algumas toneladas de cereal e roupa velha, o contributo amealhado ao longo de meses de esforços do missionário Renato Kizito.
Estávamos no final de 1999, Kizito fazia a sua enésima incursão às Montanhas Nuba, no coração do Sudão.
Aquela era uma viagem proibida pelo governo em Kartum. Havia anos que todas as ONG de ajuda humanitária tinham sido expulsas das Montanhas Nuba. O governo não queria testemunhas dos métodos que usava para tentar vencer aquela guerra civil deflagrada 25 anos antes. Quase só o Comboniano Kizito teimava em desafiar a ordem estabelecida. Voámos 5 horas sobre o Sudão, desde o aérodromo de Lokichokio, no Norte do Quénia, até ao interior das Montanhas Nuba, em território controlado pela rebelião do Exército de Libertação do Povo do Sudão, o SPLA.
O esforço de Kizito é notável, assim como é notável a sua capacidade de organização. Centenas de mulheres esperavam o avião e a preciosa carga que transportava. Os sacos de sorgo e a roupa velha foram carregados na cabeça dessas mulheres, numa longa fila indiana, durante um dia inteiro de caminhada até à aldeia mais próxima. Kizito era o único branco que visitava aquele povo cercado no alto das montanhas pelo exército governamental. Ele ouvia as histórias da guerra e contava as suas histórias de esperança. E dizia àquelas pessoas que o futuro seria mais justo e pacífico. E embora condenasse a guerra, dizia-lhes que tinham direito a lutar pela liberdade.

Lembro-me de assistir às missas de domingo que Kizito celebrava num altar de pedra esculpido pela Natureza. Ele gostava de dizer a missa de noite, ao ar livre, iluminado por archotes e sob uma magnífica abóbada de estrelas. Mesmo para quem anda longe deste tipo de fé, eram momentos mágicos.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Sudão, os Nuba (1)

Lokichokio é uma aldeia com uma grande pista de aviação. Fica no norte do Quénia, mesmo em cima da linha de fronteira com o Sudão. Em Lokichokio, as ONG de ajuda humanitária e as agências de espionagem montaram uma enorme base para operações em toda a África Central. É de lá que partem voos humanitários que carregam comida, medicamentos e roupa para o Sudão, o Uganda, o “DR” Congo (ex-Zaire), a República Centro Africana (ex-Alto Volta), Somália, Etiópia, Eritreia… enfim, para essa enorme mancha de instabilidade, fome e miséria que é a África Central.
Das duas vezes que estive no Sudão, foi em Lokichokio que as viagens se iniciaram.

A primeira dessas viagens foi em 1999. Reportagem nas Montanhas Nuba sobre a situação humanitária em que vive o povo Nuba, que resiste ao genocídio perpretado pelo exército do governo sudanês. As Montanhas Nuba ficam na região chamada Kordofan, para nordeste do Darfur. Os Nuba vivem cercados nessas montanhas pelo exército. Ninguém entra, não se sai de lá, a não ser de avião, em voos clandestinos que as ONG arriscam. Foram quase 5 horas num velho teco-teco carregado de sacas com sorgo, a violar o espaço aéreo sudanês e a aterrar numa pista improvisada em local secreto (na foto) a que o piloto chamava Foxtrot, simplesmente.

AddThis

Bookmark and Share




Acerca de mim

A minha foto
Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média

Seguidores