Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?

Fernando Pessoa



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2 de fev. de 2010

Brita Seifert

 

O Verbo No Infinito


Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito…


Vinicius de Moraes


Brita Seifert

 

Poética I


De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.


Vinicius de Moraes

Brita Seifert

 


Anfiguri


Aquilo que eu ouso
Não é o que quero
Eu quero o repouso
Do que não espero.

Não quero o que tenho
Pelo que custou
Não sei de onde venho
Sei para onde vou.

Homem, sou a fera
Poeta, sou um louco
Amante, sou pai.

Vida, quem me dera…
Amor, dura pouco…
Poesia, ai!…


Vinicius de Moraes


Brita Seifert

 


BARCAROLA


Parti-me, trágico, ao meio
De mim mesmo, na paixão.
A amiga mostrou-me o seio
Como uma consolação.

Dormi-lhe no peito frio
De um sono sem sonhos, mas
A carne no desvario
Da manhã, roubou-me a paz.

Fugi, temeroso, ao gesto
Do seu receio modesto
E cálido; enfim, depois

Pensando a vida adiante
Vi o remorso distante
Desse crime de nós dois.


Vinicius de Moraes


Brita Seifert

 

UM BEIJO


Um minuto o nosso beijo
Um só minuto; no entanto
Nesse minuto de beijo
Quantos segundos de espanto!
Quantas mães e esposas loucas
Pelo drama de um momento
Quantos milhares de bocas
Uivando de sofrimento!
Quantas crianças nascendo
Para morrer em seguida
Quanta carne se rompendo
Quanta morte pela vida!
Quantos adeuses efêmeros
Tornados o último adeus
Quantas tíbias, quantos fêmures
Quanta loucura de Deus!
Que mundo de mal-amadas
Com as esperanças perdidas
Que cardume de afogadas
Que pomar de suicidas!
Que mar de entranhas correndo
De corpos desfalecidos
Que choque de trens horrendo
Quantos mortos e feridos!
Que dízima de doentes
Recebendo extrema-unção
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração!
Quanto cadáver sozinho
Em mesa de necrotério
Quanta morte sem carinho
Quanto canhenho funéreo!
Que plantel de prisioneiros
Tendo as unhas arrancadas
Quantos beijos derradeiros
Quantos mortos nas estradas!
Que safra de uxoricidas
A bala, a punhal, a mão
Quantas mulheres batidas
Quantos dentes pelo chão!
Que monte de nascituros
Atirados nos baldios
Quantos fetos nos monturos
Quanta placenta nos rios!
Quantos mortos pela frente
Quantos mortos à traição
Quantos mortos de repente
Quantos mortos sem razão!
Quanto câncer sub-reptício
Cujo amanhã será tarde
Quanta tara, quanto vício
Quanto enfarte de miocárdio
Quanto medo, quanto pranto
Quanta paixão, quanto luto!…
Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto:
Desse beijo de um minuto
Mas que cria, em seu transporte
De um minuto, a eternidade
E a vida, de tanta morte.


Vinicius de Moraes


Brita Seifert

 

IMITAÇÃO DE RILKE


Alguém que me espia do fundo da noite
Com olhos imóveis na noite
Me quer.

Alguém que e espia do fundo da noite
 (Mulher que me ama, perdida na noite?)
Me chama.

Alguém que me espia do fundo da noite
 (És tu, Poesia, velando na noite?)
Me quer.

Alguém que me espia do fundo da noite
 (Também chega a morte dos ermos da noite…)
Quem é?


Vinicius de Moraes

Brita Seifert




SONETO DA MADRUGADA


Pensar que já vivi à sombra escura
Desse ideal de dor, triste ideal
Que acima das paixões do bem e do mal
Colocava a paixão da criatura!

Pensar que essa paixão, flor de amargura
Foi uma desventura sem igual
Uma incapacidade de ternura
Nunca simples e nunca natural!

Pensar que a vida se houve de tal sorte
Com tal zelo e tão íntimo sentido
Que em mim a vida renasceu da morte!

Hoje me libertei, povo oprimido
E por ti viverei meu ódio forte
Nesse misterioso amor perdido


Vinicius de Moraes