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terça-feira, 30 de novembro de 2010

Os preços

Já aqui tenho elogiado algumas editoras que têm vindo a recuperar os grandes nomes da literatura universal, editando as suas obras até hoje inéditas em Portugal (ou caídas no olvido rumo aos alfarrabistas há dezenas de anos). Por mera preguiça, não fui verificar os meus escassamente incontáveis textos anteriores, e já não sei se a Ulisseia, agora chancela do grupo editorial Babel de Paulo Teixeira Pinto, já foi vítima dos meus elogios ou agraciada com a minha descomprometida verrina. Todavia, recorro à depauperada memória mais fresca para informar que a dita já foi objecto sacrificial por louvor aquando da publicação recente do Ham on Rye de Bukowski, com tradução do meu amigo invisível (apenas blogosférico) Manuel A. Domingos – o problema da coisa, isolamo-nos atrás destes muros cintilantes de cristais líquidos, e cremos que somos imensamente apreciados e até populares, apesar de o infalível contador não deixar a sombra de uma dúvida.
Volto à Ulisseia, trazendo-a ao pelourinho do aplauso pelas obras entretanto publicadas, com especial destaque do viciante deleite que retiro da leitura lenta e cuidada, quase como um meticuloso exercício de degustação, de Break It Down – Demolição da autora norte-americana Lydia Davis – a “ex” do Paul Auster, a sua companheira de viagem em tradução por França no início dos anos 70 do século passado (não sei se, com ele, ficou a conhecer o mestre Beckett), compartilhadora da fome que o judeu de Newark descreve nos suas memórias, e mulher entre 1974 e 1978, mãe do agora atinado (creio eu) Daniel Auster –, com uma tradução, que até chateia pela irrepreensibilidade, pelo nosso guardião do universo borgiano, José Mário Silva. [Frontispício da obra, acima reproduzido.]
De minha parte, enquanto leitor passivo – de nenhuma forma participante na elaboração da política editorial da referida editora –, espero que se continue a traduzir a obra desta autora, até há bem pouco tempo passível de ser conotada (e luso-conjecturada) com a mulher do intangível criador de vestuário desportivo, com lojas abertas ao público. E, como refere José Luís Peixoto no prefácio a este livro de histórias breves quando refere a tradução, também eu sou defensor do primeiro lado [cf. subcapítulo ‘Prefácio’ do “Prefácio”, de Break It Down – Demolição], e apugilista dessa prática (pronto a defender a ideia num ringue de boxe à laia de um Mailer a levar uns ganchos mortíferos de Vidal – e não me enganei, e até faço um apelo à Porto Editora para que na próxima revisão do seu dicionário introduza o vocábulo tão ouvido nas tertúlias erudito-futebolísticas deste país), que afinal é bem mais habitual em Portugal.
Gostaria de ter terminado o texto no parágrafo anterior, mas o título impede-me, apenas por uma questão de pudor (prefiro-o, neste caso, à honra): duzentas e cinco páginas impressas em edição brochada custam dezanove euros e cinquenta cêntimos – dezanove cêntimos a folha impressa. Considero um verdadeiro exagero e abstenho-me de enquadrar a questão na conjuntura socioeconómica do país (pois bem, acabei de o fazer). Aliás, sem ter feito uma exaustiva análise comparada, a generalidade dos livros da Babel merecem que os preços sejam sovados…
Máxima surfista modificada e aumentada: destruam os preços e não os livros (e a carteira de quem os compra).

sábado, 6 de novembro de 2010

Um Passo

Por muito lixo traduzido que continue a proliferar pelos escaparates das livrarias portuguesas, é inegável, sem necessidade de recorrer a métodos econométricos para confirmar a hipótese, que o mercado editorial português tem melhorado significativamente no que se refere à publicação de títulos de autores estrangeiros há muito consagrados na literatura universal. Não associo, contudo, este fenómeno de melhoria à concentração de inúmeras editoras em grandes grupos económicos – aliás, seguir por esse caminho, como justificativa, poderia redundar na mais acerba das minhas críticas em forma de texto, apresentando alguns exemplos de casas editoriais, outrora respeitadas, que de momento pouco produzem e que, ao invés de expandir a sua carteira de obras literárias, têm deixado cair ao nível extremo da indigência os direitos de publicação que possuem dos seus mais eminentes autores e limitam-se a republicar, com um restyling, as obras que já, por vezes há décadas, dispunham no seus stocks livreiros.
Por diversas vezes salientei aqui o fantástico trabalho da neófita Ahab, do trabalho da Quetzal em trazer as obras de ficção nunca antes publicadas no nosso país de figuras de topo da literatura mundial, do exercício da liberdade editorial como política de excelência da Antígona, mas há mais. Já temos neste país imediatista, e citando apenas alguns nomes que agora vêem a luz do dia em português de Portugal: Bukowski, Pynchon, Fante, Gaddis, Denis Johnson ou Cheever. Foram editadas algumas (ainda não todas) das obras mais marcantes de Hamsun, DeLillo, Bellow ou Updike. Faltam muitos outros, mas porventura não convém ralhar nesta casa de pobre (talvez não consiga evitar) – as migalhas já são substanciais, estão, por isso, em vias de mudar de denotação.
O pouco do muito que falta – «não está traduzido em português. Este artigo é uma ternurenta forma de pressão (de que estão à espera, miseráveis?)», Rui Catalão na Ípsilon referindo-se à não edição em Portugal do glorificado segundo e último romance (completo) escrito pelo tristemente desaparecido David Foster Wallace – já poderá ser objecto de comemoração, mas sem excessos para que não prolifere a tradução asinina, traidora e mesmo até assassina da arte literária, potenciados pela pressa da corrida ao escaparate. E não é só DFW, autores como Norman Rush, Malamud, Vollmann, Matthiessen ou Barthelme continuam sem ver a luz do dia na literata Lusitânia, e o que dizer então de Henry James, Thomas Hardy, de Willa Cather ou de George Eliot?
Bom, mas uma excelente notícia surgiu esta semana, materializada no livro publicado pela Ulisseia que é representado pela imagem que adorna este texto. Mais um magnífico pequeno passo que vai engrandecendo aos poucos a nossa parca bibliografia em português de obras consagradas de autores estrangeiros – com a tradução a cargo de um bukowskiano indefectível que muito aprecio e que atesta a qualidade do trabalho realizado: Manuel A. Domingos.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Sátira de um exílio

A Ulisseia acaba de lançar no mercado nacional o primeiro livro da trilogia que finalizou a obra de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), escritor maldito pela sua associação ao governo fantoche do Regime de Vichy durante a ocupação alemã de parte da França entre 1940 e 1944 e pelas suas ideias marcadamente racistas, xenófobas e anti-semitas.
Trata-se de uma reedição há muito aguardada no mercado editorial português – o mesmo livro havia sido publicado pela Dom Quixote em 1992, sob o título De Castelo em Castelo, actualmente encontrava-se esgotado – que recebeu desta feita o título de Castelos Perigosos (D’un château l’autre, 1957).
Castelos Perigosos retrata, em forma de romance, escrito na primeira pessoa, o picaresco do exílio do autor entre 1944 e 1945 em Sigmaringen, no Estado Baden-Württemberg, no sudoeste da Alemanha, em companhia dos colaboracionistas do governo de Vichy, onde aquele tentava retomar o exercício da sua profissão de médico – Céline era Doutor em Medicina desde 1924, pela École de médecine de Rennes.
A trilogia completa-se com os romances Nord (1960) e Rigodon (1969; publicado postumamente), todos sob a chancela da Gallimard – romances ainda inéditos em Portugal, sabendo-se que, segundo a Ulisseia, a segunda obra da trilogia já se encontra no prelo (ou, pelo menos, na vizinhança da tipografia) sob o título Norte; esperando que a mesma editora venha a publicar num futuro próximo o terceiro volume, ampliando assim a sensatez demonstrada com a publicação dos dois primeiros.
Apesar da profunda náusea e do menosprezo que poderão assaltar a mente mais empedernida, pelo terrível passado panfletário que fizeram do autor um torcionário intelectual, associado a um dos regimes mais hediondos que a História da humanidade jamais conheceu, Céline é quase unanimemente considerado pela crítica e pelos seus pares como um dos melhores escritores franceses de todo o século XX; consideração que em muito contribuíram as suas duas primeiras e notáveis obras, ainda publicadas na era pré-Vichy: Viagem ao Fim da Noite (Voyage au bout de la nuit, 1932; ed. port. Ulisseia) e Morte a Crédito (Mort à crédit, 1936; ed. port. Assírio & Alvim).

Sem conseguir resistir à transcrição, deixo aqui ficar o primeiro e longo parágrafo da obra que deu origem a este texto:
«Para falar com franqueza, aqui entre nós, eu ainda acabo pior do que comecei… Oh! não comecei muito bem… nasci, repito, em Courbevoie, Sena… repito-o pela milésima vez… depois de muitas andanças chego ao fim da vida realmente muito mal… a idade, dir-me-á você… a idade!… pois claro!… com sessenta e três anos feitos, torna-se muito difícil refazer a vida… ganhar de novo clientela… aqui ou em qualquer outro sítio!… já me esquecia de lhe dizer!… sou médico… a clientela médica, e isto que fique entre nós, em confidência, não é apenas uma questão de ciência e de consciência… mas sim, em primeiro lugar, e acima de tudo, de encanto pessoal… encanto pessoal depois dos sessenta? com uma idade destas você ainda pode fazer de manequim no museu, de figura decorativa… talvez… e agradar a uns quantos excêntricos, curiosos de enigmas… e as senhoras? o velhote anda nos trinques, perfumado, pintado, laca no cabelo?… um espantalho! com clientela ou sem clientela, exercendo medicina ou não, ele provoca-lhes vómitos!… e se estiver podre de rico?… ainda vá!… é tolerado… hum! hum!… mas um velho de cabelos brancos e sem dinheiro?… ele que se vá embora! basta ouvir as clientes nos passeios, nas lojas… a falar de um jovem colega dele… “oh! sabe, minha senhora!… minha senhora!… que olhos! que olhos, aquele médico!… entendeu logo o meu caso!… e as gotas que ele me receitou! ao almoço e ao jantar!… que gotas!… este jovem médico é maravilhoso!…” mas espere a sua vez… espere até elas falarem de si!… “embirrento, desdentado, ignorante, corcunda, sempre a cuspinhar…” elas vingam-se de si!… a tagarelice das senhoras é soberana!… enquanto os homens parem as leis, as senhoras só se ocupam de coisas sérias: a Opinião Pública!… uma clientela médica é feita pelas senhoras!. .. não as tem do seu lado?… deite-se a afogar!… as suas senhoras são umas atrasadas mentais, umas idiotas de fugir?… tanto melhor! quanto mais tacanhas, casmurras e irredutivelmente estúpidas, mais soberanas elas são!… arrume a bata, e o resto!… o resto?… roubaram-me tudo em Montmartre!… tudo!… na rue Girardon!… repito-o e nunca o repetirei o bastante!… fazem de conta que não me ouvem… justamente as coisas que devem ouvir!… no entanto eu ponho os pontos nos ii… tudo!… uns indivíduos, libertadores e vingadores, entraram em minha casa por arrombamento, e levaram tudo para a Feira da Ladra!… tudo passado a patacos!… não estou a exagerar, tenho provas, testemunhas, nomes… todos os meus livros e os meus instrumentos, os meus móveis e os meus manuscritos!… a tralha toda!… não encontrei nada!… nem um lenço, nem uma cadeira!… até as paredes eles venderam!… a casa, tudo!… saldado!… metido ao bolso!… e ponto final! sei o que você pensa! estou a ouvi-lo!… é natural! oh! que isto não lhe acontecerá! que nada de semelhante lhe acontecerá! que tomou as devidas precauções!… que é tão comunista como qualquer milionário, tão poujadista como Poujade tão russo como todas as saladas, mais americano que Buffalo!… perfeitamente conluiado com tudo o que é importante, Loja, Célula, Sacristia, Ministério Público!… Vrunzês da nova vaga como ninguém!… o sentido da História passa-lhe pelo meio das nádegas!… irmão honorário?… claro!… criado de carrasco? veremos!… adulador da guilhotina?… he! he!»
Louis-Ferdinand Céline, Castelos Perigosos, pp. 7-8.
[Lisboa: Ulisseia, Setembro de 2008, 362 pp.; tradução de Clara Alvarez; obra original: D’un château l’autre, 1957].


Como dizia o MEC, por outras palavras, mas cujo sentido é o que se segue, se fôssemos a eliminar todos os livros de todos os autores com gigantescos esqueletos no armário – pederastas, nazis, estalinistas, assassinos, toxicómanos, bêbados, adúlteros, burlões, etc. – ficaríamos reduzidos às excepcionais obras de Samuel Beckett, que, segundo ele – e eu confirmo, por aquilo que conheço de um dos meus autores favoritos, residente no meu top-5 literário –, era um santo.
Entretanto, para quem já leu, vai lendo ou faz tenções de ler as obras fundamentais de Pound, Gorki, Bernard Shaw ou Jünger (para não sair da linha acusatória celiniana), este livro não irá legitimar, de forma alguma, a hediondez doutrinária perfilhada pelo autor francês.