Mostrar mensagens com a etiqueta Samuel Beckett. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Samuel Beckett. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Sátira de um exílio

A Ulisseia acaba de lançar no mercado nacional o primeiro livro da trilogia que finalizou a obra de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), escritor maldito pela sua associação ao governo fantoche do Regime de Vichy durante a ocupação alemã de parte da França entre 1940 e 1944 e pelas suas ideias marcadamente racistas, xenófobas e anti-semitas.
Trata-se de uma reedição há muito aguardada no mercado editorial português – o mesmo livro havia sido publicado pela Dom Quixote em 1992, sob o título De Castelo em Castelo, actualmente encontrava-se esgotado – que recebeu desta feita o título de Castelos Perigosos (D’un château l’autre, 1957).
Castelos Perigosos retrata, em forma de romance, escrito na primeira pessoa, o picaresco do exílio do autor entre 1944 e 1945 em Sigmaringen, no Estado Baden-Württemberg, no sudoeste da Alemanha, em companhia dos colaboracionistas do governo de Vichy, onde aquele tentava retomar o exercício da sua profissão de médico – Céline era Doutor em Medicina desde 1924, pela École de médecine de Rennes.
A trilogia completa-se com os romances Nord (1960) e Rigodon (1969; publicado postumamente), todos sob a chancela da Gallimard – romances ainda inéditos em Portugal, sabendo-se que, segundo a Ulisseia, a segunda obra da trilogia já se encontra no prelo (ou, pelo menos, na vizinhança da tipografia) sob o título Norte; esperando que a mesma editora venha a publicar num futuro próximo o terceiro volume, ampliando assim a sensatez demonstrada com a publicação dos dois primeiros.
Apesar da profunda náusea e do menosprezo que poderão assaltar a mente mais empedernida, pelo terrível passado panfletário que fizeram do autor um torcionário intelectual, associado a um dos regimes mais hediondos que a História da humanidade jamais conheceu, Céline é quase unanimemente considerado pela crítica e pelos seus pares como um dos melhores escritores franceses de todo o século XX; consideração que em muito contribuíram as suas duas primeiras e notáveis obras, ainda publicadas na era pré-Vichy: Viagem ao Fim da Noite (Voyage au bout de la nuit, 1932; ed. port. Ulisseia) e Morte a Crédito (Mort à crédit, 1936; ed. port. Assírio & Alvim).

Sem conseguir resistir à transcrição, deixo aqui ficar o primeiro e longo parágrafo da obra que deu origem a este texto:
«Para falar com franqueza, aqui entre nós, eu ainda acabo pior do que comecei… Oh! não comecei muito bem… nasci, repito, em Courbevoie, Sena… repito-o pela milésima vez… depois de muitas andanças chego ao fim da vida realmente muito mal… a idade, dir-me-á você… a idade!… pois claro!… com sessenta e três anos feitos, torna-se muito difícil refazer a vida… ganhar de novo clientela… aqui ou em qualquer outro sítio!… já me esquecia de lhe dizer!… sou médico… a clientela médica, e isto que fique entre nós, em confidência, não é apenas uma questão de ciência e de consciência… mas sim, em primeiro lugar, e acima de tudo, de encanto pessoal… encanto pessoal depois dos sessenta? com uma idade destas você ainda pode fazer de manequim no museu, de figura decorativa… talvez… e agradar a uns quantos excêntricos, curiosos de enigmas… e as senhoras? o velhote anda nos trinques, perfumado, pintado, laca no cabelo?… um espantalho! com clientela ou sem clientela, exercendo medicina ou não, ele provoca-lhes vómitos!… e se estiver podre de rico?… ainda vá!… é tolerado… hum! hum!… mas um velho de cabelos brancos e sem dinheiro?… ele que se vá embora! basta ouvir as clientes nos passeios, nas lojas… a falar de um jovem colega dele… “oh! sabe, minha senhora!… minha senhora!… que olhos! que olhos, aquele médico!… entendeu logo o meu caso!… e as gotas que ele me receitou! ao almoço e ao jantar!… que gotas!… este jovem médico é maravilhoso!…” mas espere a sua vez… espere até elas falarem de si!… “embirrento, desdentado, ignorante, corcunda, sempre a cuspinhar…” elas vingam-se de si!… a tagarelice das senhoras é soberana!… enquanto os homens parem as leis, as senhoras só se ocupam de coisas sérias: a Opinião Pública!… uma clientela médica é feita pelas senhoras!. .. não as tem do seu lado?… deite-se a afogar!… as suas senhoras são umas atrasadas mentais, umas idiotas de fugir?… tanto melhor! quanto mais tacanhas, casmurras e irredutivelmente estúpidas, mais soberanas elas são!… arrume a bata, e o resto!… o resto?… roubaram-me tudo em Montmartre!… tudo!… na rue Girardon!… repito-o e nunca o repetirei o bastante!… fazem de conta que não me ouvem… justamente as coisas que devem ouvir!… no entanto eu ponho os pontos nos ii… tudo!… uns indivíduos, libertadores e vingadores, entraram em minha casa por arrombamento, e levaram tudo para a Feira da Ladra!… tudo passado a patacos!… não estou a exagerar, tenho provas, testemunhas, nomes… todos os meus livros e os meus instrumentos, os meus móveis e os meus manuscritos!… a tralha toda!… não encontrei nada!… nem um lenço, nem uma cadeira!… até as paredes eles venderam!… a casa, tudo!… saldado!… metido ao bolso!… e ponto final! sei o que você pensa! estou a ouvi-lo!… é natural! oh! que isto não lhe acontecerá! que nada de semelhante lhe acontecerá! que tomou as devidas precauções!… que é tão comunista como qualquer milionário, tão poujadista como Poujade tão russo como todas as saladas, mais americano que Buffalo!… perfeitamente conluiado com tudo o que é importante, Loja, Célula, Sacristia, Ministério Público!… Vrunzês da nova vaga como ninguém!… o sentido da História passa-lhe pelo meio das nádegas!… irmão honorário?… claro!… criado de carrasco? veremos!… adulador da guilhotina?… he! he!»
Louis-Ferdinand Céline, Castelos Perigosos, pp. 7-8.
[Lisboa: Ulisseia, Setembro de 2008, 362 pp.; tradução de Clara Alvarez; obra original: D’un château l’autre, 1957].


Como dizia o MEC, por outras palavras, mas cujo sentido é o que se segue, se fôssemos a eliminar todos os livros de todos os autores com gigantescos esqueletos no armário – pederastas, nazis, estalinistas, assassinos, toxicómanos, bêbados, adúlteros, burlões, etc. – ficaríamos reduzidos às excepcionais obras de Samuel Beckett, que, segundo ele – e eu confirmo, por aquilo que conheço de um dos meus autores favoritos, residente no meu top-5 literário –, era um santo.
Entretanto, para quem já leu, vai lendo ou faz tenções de ler as obras fundamentais de Pound, Gorki, Bernard Shaw ou Jünger (para não sair da linha acusatória celiniana), este livro não irá legitimar, de forma alguma, a hediondez doutrinária perfilhada pelo autor francês.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

As Últimas

Samuel BeckettA American Book Review, tal como havia procedido há cerca de dois anos com a publicação das 100 melhores frases de abertura de romances, resolveu lançar mais um desafio, que, desta feita, culminou com a publicação no seu volume 29, n.º 2 do primeiro bimestre de 2008, após idêntico processo de escrutínio, The 100 Best Last Lines from Novels[ficheiro PDF, 225 Kb], ou seja, as 100 melhores frases de encerramento em romances.
Na altura da primeira listagem – a das frases de abertura – lancei aqui na blogosfera, utilizando para o efeito o meu antigo blogue residual Data, o desafio aos restantes companheiros de diferentes blogues que revelassem as frases de abertura – alargando o espectro para o formato conto ou novela, e até ensaio – que lhes havia ficado na retina para, desta forma, construirmos uma lista paralela em que o domínio anglo-saxónico da listagem original se esbatesse.
O desafio teve tanto de agradável como de trabalhoso, cuja recompensa maior esteve na colaboração de cerca de 22 bloggers que com as frases por mim seleccionadas se chegou a um
total de 47 (número primo)… porém, o filme, ou melhor o enredo repetiu-se, deixei a blogosfera, e o empreendimento ficou a meio – neste momento dado por definitivamente encerrado. Surgiram frases de obras de Machado de Assis, Juan Rulfo, Eduardo Mendonza, Thomas Bernhard, Eça de Queiroz, Sandor Márai, Francisco José Viegas, Guillermo Cabrera Infante, Peter Handke, Mário de Carvalho, e por aí fora.
Por outro lado, a colaboração blogosférica estendeu-se à própria lista da ABR, que esforçadamente se materializou em encontrar a tradução oficial portuguesa para as 100 frases originais em língua inglesa. Até nesse campo a reciprocidade foi proveitosa. Muitos foram os que recorrendo às suas bibliotecas, arriscaram a própria vida ao abrir os livros que, decerto, há muito já se encontravam sós perante a força da deterioração dos elementos, a apelar ao surgimento de algumas alergias fora de época: mais de metade das frases da lista inicial encontrou a devida correspondência com a nossa língua, e a grande parte delas que ficou por traduzir nada teve que ver com uma eventual falta de diligência, ficou, isso sim, a dever-se à sua não publicação no nosso inqualificável mercado editorial, decidindo-se não enveredar por uma tradução livre das mesmas. Assim, das dez primeiras apenas ficaram de fora as frases de abertura de Gravity’s Rainbow de Thomas Pynchon (frase 3.ª classificada) – obra que incompreensivelmente subsiste sem uma única edição portuguesa em 35 anos, apesar de existir a versão em português do Brasil da Cia. das Letras (O Arco-Íris da Gravidade, ed. 1998) – e James Joyce com a sua xaropada intraduzível em Finnegans Wake (7.ª classificada) – que me perdoem os joycianos ou aqueles que vislumbram nesta obra o apogeu do experimentalismo linguístico-literário.

Pela experiência do fatigante empreendimento metablogoliterário anterior, desta vez apenas irei deixar ficar a ligação para a lista completa e, porque não?, as três primeiras “últimas frases” (ou frases de encerramento) classificadas e devidamente traduzidas (tradução oficial).
Ao invés da listagem das 100 frases de abertura, a 1.ª classificada das melhores 100 frases de encerramento é daquelas que tenho a certeza de que quem leu a obra jamais deixou fugir da memória. Trata-se do remate do labiríntico O Inominável (L’Innomable, 1953), o terceiro livro da trilogia francesa do autor irlandês – pertencente ao meu Olimpo literário – Samuel Beckett, que se iniciou com Molloy (1951) e Malone está a morrer (Malone meurt, 1951). A 3.ª classificada pertence ao final angustiante de um dos livros da minha vida, cujo autor também convive, a empanturrar-se de ambrósia, no mesmo local com o atrás mencionado, Francis Scott Fitzgerald:

1. …you must go on, I can’t go on, I’ll go on.
«…tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar.»
Samuel Beckett, O Inominável

(Lisboa: Assírio & Alvim, Março de 2002, pág. 189; tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo; obra original: L’Innomable, 1953; obra traduzida citada em inglês: The Unnamable; trans. Samuel Beckett).


2. Who knows but that, on the lower frequencies, I speak for you?
«Quem sabe se, nas frequências mais baixas, não falo também por vós?»
Ralph Ellison, Homem Invisível

(Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Fevereiro de 2006, pág. 466; tradução de Salvato Telles de Menezes e Rui Andrade; obra original: Invisible Man, 1952).


3. So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past.
«Assim vamos teimando, proas contra a corrente, incessantemente cortando as águas, a caminho do passado.»
F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby

(Lisboa: Presença, 5.ª edição, Julho de 1997, pág. 202; tradução de José Rodrigues Miguéis; obra original: The Great Gatsby, 1925).


Antevisão do entretenimento que se segue e com hipótese imediata de aplicação: dentro de dois anos a American Book Review irá lançar a terceira iniciativa paraliterária do género, sob o título “100 Best Mid-Book Lines from Novels”. Neste caso, os autores e críticos literários convidados terão de proceder a um pequeno cálculo matemático antes de estabelecer o arrolamento de frases potencialmente candidatas às 100 melhores.

Um pequeno exemplo, com recurso ao único livro que neste momento estou a ler (e quase a acabar, anda Agathe pela montanha...):

  • Obra: O homem sem qualidades;
  • Autor: Robert Musil;
  • N.º de páginas: 843 (volume I) + 451 (volume II) – total de páginas (T): 1294;
  • Meio do livro (M): página 647 – encontrar a primeira frase inteira e transcrevê-la:
    «O rapaz levantou-se com cuidado e retirou com dificuldade uma grande flor de dentro do casaco.» (Dom Quixote, 1.ª edição, Mar/2008; trad. João Barrento).

Óbices (eventuais):

  • Se o número total de páginas for ímpar, ignorar as casas decimais do quociente (arredondar à unidade por defeito, ou seja, se T=1295; M=647,5; logo M1=647, seria a mesma frase neste caso);
  • Se a página encontrada estiver em branco, saltar para a primeira página que se segue com texto, claro;
  • Se se tratar de um livro de Sebald, Saramago ou, por exemplo, uma obra do escritor austríaco Thomas Bernhard, aconselha-se o uso do bom senso na escolha da frase que figurará entre vírgulas…

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Pitch&Putt Literário – Taça da Irlanda

Um trio irlandês. James Joyce (1882-1941), Samuel Beckett (1906-1989) e William Butler Yeats (1865-1939).
Joyce, frenético, intratável e grosseiramente palavroso, e Beckett, contemplativo, devaneante, suspenso no éter, esperam por Yeats para uma partida de Pitch&Putt.
Beckett espera, tranquilo, por… Godot. Segura na mão uma bola de golfe que metódica e parcimoniosamente muda de bolso, como as pedras de Molloy.
Estamos em Zurique, em 19 de Janeiro de 1922 (Beckett está aparentemente envelhecido para os seus quase 15 anos):



Pitch 'n' Putt with Beckett 'n' Joyce (2001, Bórd Scannán na hÉireann), realizado por Donald Clarke

Yes,… I’ll… play.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Achado

Há dias assim, de sorte, Dias Felizes onde o acaso, nas suas impenetráveis digressões, resolve bafejar-nos com algo de importante, não apenas na dimensão da coisa, mas também nos pequenos nadas que para nós tudo parece significar.
Estou numa semana da sorte, nuns casos apenas resultado da recompensa do duro trabalho que implica a luta pela vida, noutros é a mera providência, entendida aqui como a aleatoriedade da espuma dos dias, daquilo que fica depois da tenebrosa agitação da simples pretensão pela sobrevivência.

Ontem, a sorte estabeleceu um pacto comigo – o tal que vinha pedindo e ia perdendo no momento da firma –, apenas exigindo como recompensa o fruto do meu esforço que se ia fundindo no desespero dos longos dias em branco, paradoxalmente manchados no mais negro dos matizes: a sombra do desassossego.
Hoje, o tal pequeno nada que tudo significa: Samuel Beckett, o meu sumo-sacerdote na liturgia das palavras, o fiel reprodutor em letras e gestos do negrume da natureza humana; os últimos trabalhos condensados numa pequena encadernação, em edição bilingue, com tradução de Miguel Esteves Cardoso.
Repousava na estante, encafuado numa vulgar embalagem de plástico, entre Watt e Molloy, ou seria Murphy? Talvez Malone

Wortstward Ho, 1983 (Pioravante marche)
Stirrings Still, 1988 (Sobressaltos)
What is the Word, 1988 (Que palavra será)

Excerto:
«Uma noite estava ele sentado à mesa dele com a cabeça entre as mãos quando se viu a si mesmo a levantar-se e a ir-se. Uma noite ou um dia. Pois quando se apagou a luz dele não ficou na escuridão
Abertura de “Sobressaltos” de Samuel Beckett (trad. MEC)

Referência bibliográfica:
Samuel Beckett, Últimos trabalhos de. Lisboa: Assírio & Alvim / Independente / Miguel Esteves Cardoso, 1996 (edição bilingue), 63 pp.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Minimalismos

Ou serviços mínimos? Ou simples aporia?

Estou cansado da inacção de tudo querer fazer.

«Mahood. E se afinal fôssemos apenas um, como ele quer, apesar das minhas recusas? E se eu tivesse passado pelos sítios por onde, segundo ele, passei, em vez de ter ficado aqui, tentando aproveitar-me da sua ausência para arrumar o meu caso? Que faz Mahood aqui, no meu país, como é que ele passa por aqui? Cá estou eu lançado numa história inútil, cá estamos nós frente a frente, eu e Mahood, se é que somos dois, como eu digo. Não o vi, não o vejo. Ele disse-me como é, como sou, todos me disseram, deve fazer parte das suas atribuições. Não basta que eu saiba o que faço, também tenho de saber como sou.»
Samuel Beckett, O Inominável (pág. 43)
(Lisboa: Assírio & Alvim, Março de 2002, 189 pp.; tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo; obra original: L’Innomable, 1953)

Ou será Basile? Se já foi Murphy, Molloy ou Malone? Ou até terá sido a dupla Mercier & Camier?
O que interessa à história? Um nome? Quem? Sem perguntar a mim mesmo!

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Desassossego

O Génio escreveu:
«With never a word exchanged they grew to be as one.»

Samuel Beckett's Ohio Impromptu (1980)



Blue Angel Films & Tyrone Productions - 2001
para
BBC / Channel 4 Television Corporation

Leitor: Jeremy Irons
Ouvinte: Jeremy Irons

Realização: Charles Sturridge

Sem mais comentários.