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quarta-feira, 26 de maio de 2010

Rui Flaubert Santos

Fui alertado, enfim, para um momento televisivo único, na óptica dos interesses do Rui Santos, designadamente, o Rui Santos citou Gustave Flaubert a propósito das recentes vitórias de José Mourinho. O acontecimento desportivo do ano em Portugal foi forjado em directo na bigorna da erudição, para a meia dúzia de pessoas (não contando com o Barbas, o Diabo de Gaia, o Advogado Incendiário e o Lampião de Canelas, estes últimos vulgarmente conhecidos por Pragal Colaço e Ricardo Costa, respectivamente) que ainda aguenta assistir a 23 segundos consecutivos daquele programa que vai para o ar na Benfica TV2… perdão, na SIC-Notícias todos os domingos à noite. O assunto, que decerto proveio de uma inspiração oracular, era o tal treinador bicampeão por um clube português – presidido por essa pessoa desprezível e monstruosa, chamada de Pinto da Costa –, vencedor do campeonato e da Liga dos Campeões logo, contra a óptica dos interesses dos invejosos, no ano da “fruta” e do “café com leite”, 2004 – ainda houve tempo, enfim, na óptica dos interesses da hermenêutica comportamental, designadamente de classificar de folclóricas (!?) as vitórias de Mourinho no FC Porto. Aquela, enfim, cabeça...
Na óptica dos interesses de Flaubert, eu estaria designadamente preocupado, porque, “ai, ai, ai” (1.ª andamento, adágio), “ai, ai, ai” (2.º andamento, andante con grazia ed intimissimo), “ai, ai, ai” (3.º andamento, vivace giocoso), o paradigma da verdade literária eclipsou-se na óptica dos interesses da verdade, ela mesma, para o paradigma da “verdade desportiva”, aquilo que, na óptica dos meus interesses (os dele), apelido de verdade encarnada ou, nomeadamente, enfim, entunelada.
Mais grave ainda, o enfarpelado da brilhantina do comentário desportivo nacional, cita-se a ele próprio para citar o eminente escritor francês oitocentista. Ou seja, na óptica dos interesses do ego, dele próprio, escreveu um livro (o que por si só já é de levar às lágrimas pelo choque – ele escreve! Na óptica dos interesses de John Carpenter quando realizou em 1988, nomeadamente, enfim, Eles Vivem) que contém uma citação, designada, nomeada e efectivamente do autor natural de Rouen retirada de… o Citador. Senão, experimentem perguntar-lhe de que obra, opúsculo, panfleto, ou até de que pedaço de papel higiénico manuscrito, retirou ele (o Rui na óptica dos interesses dos Santos) a seguinte frase, de uma originalidade inigualável (pelo menos a costureira Alice de Caneças, a tal Lili, recita-as de sua lavra):

«Para se ter talento é necessário estarmos convencidos de que o temos.»

O que no caso do citador em segunda mão em apreço, não é, designada e manifestamente, suficiente, na óptica dos seus interesses, por muito incomensurável que, enfim, fosse o seu convencimento.
Ver aqui, na óptica dos vossos interesses: os 90 minutos completos (sacrificai-vos, designadamente, ó vítimas da fome), ou, enfim, designadamente ligar-se ao minuto 6 mais 15 segundos (nota de tristeza: termina, enfim, aos 6 minutos e 38 segundos).
E logo hoje, que se comemoram os 6 anos dos feitos heróicos que culminaram no Estado da Renânia do Norte-Vestfália, em Gelsenkirchen.
Nota: este artigo foi elaborado, enfim, na óptica dos interesses do novo acordo ortográfico-gramatical rui-santês (em vigor por decreto balsemónico todos os domingos das 23 às 24 horas, designadamente no canal 5 da TV Cabo).

domingo, 23 de novembro de 2008

Realismo e a visão cinemática

I

«Ao sabor do acaso, subia o Quartier Latin, habitualmente tão tumultuoso, mas deserto naquela época, porque os estudantes tinham partido para casa da família. Os grandes muros das escolas, como que alongados pelo silêncio, tinham um aspecto ainda mais taciturno; ouviam-se todas as espécies de ruídos calmos, batimentos de asas nas gaiolas, o fragor de um torno, o martelo de um sapateiro; e os vendedores de roupa, no meio das ruas, interrogavam com o olhar cada janela, inutilmente. No fundo dos cafés solitários, a mulher que atendia ao balcão bocejava entre as garrafas cheias; os jornais permaneciam arrumados na mesa dos reservados de leitura; na oficina das engomadeiras, as roupas estremeciam sob as lufadas do vento tépido. De vez em quando, detinha-se diante da montra de um alfarrabista; um ónibus, que descia roçando o passeio, fazia-o voltar-se; e, chegado em frente do Luxembourg, não ia mais além.»
Gustave Flaubert, A Educação Sentimental, p. 59.
[Lisboa: Relógio D’Água, Outubro de 2008, 367 pp.; tradução de João Costa; obra original: L’Éducation sentimentale, 1869.]


II

«Isto foi publicado em 1869, mas podia ter surgido em 1969; muitos romancistas soam essencialmente ao mesmo. Flaubert parece perscrutar as ruas de uma forma indiferente, como uma câmara. Enquanto assistimos a um filme não somos capazes de determinar aquilo que foi excluído, aquilo que ficou de fora das margens do enquadramento da câmara, da mesma maneira que não somos capazes de assinalar o que Flaubert decidiu não assinalar. E já não reparamos que aquilo que ele escolheu não foi, como é óbvio, casualmente procurado mas ferozmente bem escolhido, em que cada pormenor é quase coalhado no seu soro de escolhimento. Quão soberba e magnificamente isolados estão estes pormenores – a mulher a bocejar, os jornais, por ler, arrumados, as roupas a estremecer ao vento tépido.»
James Wood, How Fiction Works, p. 33. [tradução: AMC]
[London: Jonathan Cape, 2008, 194 pp.]

Nota: uma vez mais, apesar da promessa de não intervenção autoral no domingo das citações, vejo-me obrigado a deixar umas pequenas anotações para, lá está, dar o devido enquadramento, de natureza não especulativa – senão largava-as tout court –, àquilo que acima foi reproduzido.
James Wood é um admirador confesso de Flaubert, atribuindo-lhe a paternidade do realismo literário e o papel de precursor da narrativa moderna – assim como João Baptista para os vários cristos (os ungidos da modernidade), sem, no entanto perder a cabeça por uma Salomé… não, esse foi o pai do Eterno Retorno… [passagem bem demonstrativa da precariedade humorística que atravessa este blogue].
Para além das longas divagações woodianas sobre o uso e abuso do “discurso indirecto livre”, uma marca distintiva em Flaubert e em Henry James, o crítico britânico fica fascinado pela forma como o escritor francês trabalha a sua narrativa em torno da invisibilidade autoral, ou do processo em que as palavras do protagonista parecem cortar o cordão umbilical que o liga ao criador, actuando com vida própria, semelhante à vida, criando no leitor uma espécie de assombro. Nas palavras de Flaubert, retiradas do livro de Wood (p. 34,; tradução: AMC):

«Um autor no seu trabalho tem de ser como Deus no universo, presente em todo a parte e visível em nenhuma.»

Anotação à nota anterior: este capítulo do livro de Wood é verdadeiramente uma delícia para quem gosta e se interessa por Literatura (palavra intencionalmente grafada desta forma), principalmente com a riqueza dos exemplos reveladores, não só de trabalho árduo (investigação), mas sobretudo de uma memória e de uma erudição ímpares. A seguir, ainda neste registo, faz-se a comparação entre o famoso poema de Auden perante a observação do picaresco quadro de Brueghel, A Queda de Ícaro; a atitude de Andrómaca perante a recentíssima morte de Heitor, o seu marido, no Canto XXII da Ilíada; o famoso traveling narrativo de McEwan em Expiação, quando Robbie deambula no cenário de devastação na praia de Dunquerque.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Marías, Feira do Livro, Literatura e Truculência

Terminou a 78.ª edição da Feira do Livro do Porto (FLP). Ao que se vai ouvindo e lendo, este foi mesmo o último ano em que o Pavilhão Rosa Mota recebeu o evento organizado pela APEL, finalmente, digo eu, dados o desconforto e a vetustez do layout. O Rosa Mota entrará num longo processo de obras de restauro e o nosso inefável Presidente da Câmara há muito que havia manifestado a sua vontade de trazer a feira para o coração da cidade (cuidado com os mal-entendidos): para a agora despida e matizada a Porto antracite Avenida dos Aliados – a ver vamos, se as incómodas e frequentes chuvas que em finais de Maio soem brindar a Invicta não irão estragar um evento que requer conforto e tempo seco para ter algum êxito.

Como o Francisco já escreveu, na sua bem descrita visão romântica da feira do livro, o sal do evento – visão de alguma forma repisada pelo Eduardo, quando este se referia ao espavento da tal empresa-colosso (à medida lusa) do meio editorial que, de forma heteróclita apenas dispunha das novidades e dos últimos livros publicados – manifesta-se no vasculhamento dos restos de colecção, dos fundos editoriais, há muito afastados, por razões economicistas, dos escaparates das principais livrarias, com preços de saldo, por vezes com capas já amarelecidas pelo tempo e pela resistência da letra impressa à fúria impiedosa dos elementos, que um mau armazenamento ousou debilitar.

[Curiosamente, há um odor típico que me ficou gravado na memória, endurecido pelos incontáveis anos de visita à FLP em espaço fechado: o único e inexpugnável cheiro a bafio que emana dos livros expostos no stand da editora Livros do Brasil, alguns com lombadas esfareladas, transmitindo a sensação de comovente fragilidade e de ruína iminente assim que manuseados; e sempre os mesmos autores: Irving Wallace, Daphne du Maurier, Norman Mailer, Thomas Mann (há anos sem os esgotadíssimos A Montanha Mágica e Os Buddenbrook), Pearl S. Buck, John Steinbeck (agora em fase de renovação), etc.]

Este ano, desloquei-me por diversas vezes à FLP à procura dos tais fundos editoriais que o recente movimento de fusões e aquisições de editoras permitiu que se fossem adensando nas caves das distribuidoras fortemente representadas no local.
A sede de arrancar aquele livro que durante um ano fica em lista de espera numa livraria, para depois ser anunciado como “fora de stock” – e este é um dos pontos a melhorar na relação entre editores, livreiros e leitores, ou seja, no tempo infindo que se espera por um livro raro que eventualmente reside numa qualquer cave de livros espalhada pelo país –, assim como a impossibilidade de visitar determinado stand dado o aglomerado de gente que se postava sem qualquer tipo de delicadeza a olhar para os títulos sem os folhear, como se esperassem por uma mensagem vinda do seu interior materializada no colorido do seu frontispício, fizeram que me deslocasse umas 7 ou 8 vezes ao dito recinto de exposição.

Javier MaríasUm dos títulos que adquiri, já no final dos dias e por apenas 5 euros, no pavilhão da Relógio D’Água, foi a colectânea de ensaios Literatura e Fantasma do escritor madrileno Javier Marías (n. 1951) – livro editado originalmente em 1993 sob o título Literatura y fantasma pela editora espanhola Siruela, e publicada entre nós em Novembro de 1998, com tradução do próprio Francisco Vale, sem a enorme ampliação sofrida pela obra em 2001, quando a editora espanhola Alfaguara lhe acrescentou mais 37 textos, aos 35 publicados em 1993 (que na versão portuguesa inclui ainda mais seis sobre “Mulheres Fugitivas”, incluídos na antologia Vidas Escritas de 1992).
Conheço pouco da obra de ficção do autor madrileno. Todavia, conheço o suficiente dos seus escritos dispersos, por vezes reunidos em livros, e as suas crónicas no El País e, sobretudo, o seu portentoso romance, galardoado em 1997 com milionário prémio IMPAC, Coração Tão Branco (Corazón tan blanco, 1992) – até hoje o único escritor espanhol a receber o prémio, desde a sua fundação em 1996 (correndo estas linhas o sério o risco de ficarem de súbito desactualizadas se, amanhã, Javier Cercas for o contemplado com o IMPAC de 2008).
Àquele romance pertence uma das mais inesquecíveis frases de abertura de uma obra de ficção (elas não me largam, já sabem):

«Não quis saber, mas soube, que uma das meninas, quando já não era menina e não havia muito tempo que tinha regressado da sua viagem de lua-de-mel, entrou na casa de banho, pôs-se em frente do espelho, abriu a blusa, tirou o soutien e procurou o coração com a ponta da pistola do seu próprio pai, que estava na sala de jantar com parte da família e três convidados.»
Javier Marías, Coração tão Branco, pág. 11.
(Lisboa: Relógio D’Água, 1994, 295 pp.; tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra; obra original: Corazón tan blanco, 1992).


Cheguei a casa e ia folheando o livro que acabara de comprar, e detive-me num texto curto, ocupa pouco mais de uma página, que Marías escreveu para o El País de 19 de Outubro de 1991: “Contra a truculência”. E, de repente, recordei-me do que eu próprio havia escrito no meu anterior blogue – com o título sugestivo “Repugnância” – sobre o mais recente filme de Tim Burton, o realizador norte-americano incensado pelos intelectuais da crítica cinematográfica.
Marías discorre sobre a descrição da violência e do horror na literatura, estendendo-a também ao cinema

«O mal é que à quinta ou vigésima, se a descrição continua a ser mediana ou demasiado explícita, a tensão perde-se e o efeito desvanece-se, mesmo que o aspecto mais selvagem das coisas haja aumentado. […] Nabokov dizia que “na arte mais elevada e na ciência pura o pormenor é tudo”, e não se referia precisamente à morosidade descritiva, mas ao clarão visual, analógico, verbal ou de memória provocados no leitor por um sinal vermelho, um vislumbre, um instante.» (pág. 112)

Marías relembra Psico (Psycho, 1960) do mestre Hitchcock e a eterna cena da banheira, o pânico do entrevisto, do não explícito, para no campo da literatura referir logo a seguir:

«A frase que maior horror me causou em literatura não está em Lovecraft, mas em Flaubert: no final de Madame Bovary, com ela já morta e no caixão, enquanto várias personagens lhe cingem uma coroa, Flaubert diz: “Foi necessário erguer-lhe um pouco a cabeça, e então uma onda de líquidos negros saiu, como um vómito, da sua boca.”» (pág. 113)

Depois refere Faulkner, que em Santuário (Sanctuary, 1931) usou a expressão deste mesmo horror para descrever uma situação nauseante:

«Cheira a negro, pensou Benbow; cheira àquela substância negra que saiu da boca de Madame Bovary e caiu sobre o seu véu nupcial.» (pág. 113)

E acrescenta: «Duvido que alguém, mesmo o próprio Faulkner, conseguisse com uma frase menos sóbria a façanha de fazer sentir um tão hediondo cheiro.»

Sim, é verdade. Na minha juventude fui um admirador de Carpenter e de alguns dos seus colegas e discípulos desse subgénero fílmico. Mas quem via Carpenter sabia ao que ia, da mesma forma que hoje, quem lê, perde tempo e gasta dinheiro com Palahniuk já deveria saber ao que vai. A mim chegou-me vez e meia... É puro lixo sensacionalista.

Referência bibliográfica:
Javier Marías
, Literatura e Fantasma. Lisboa: Relógio D’Água, Novembro de 1998, 295 pp.; tradução de Francisco Vale; obra original: Literatura y fantasma, 1993.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Sitiado

Março de 1857, Gustave Flaubert (1821-1880), escritor, epítome do movimento realista francês do século XIX e herdeiro do romantismo de Stendhal (1783-1842), de Chateaubriand (1768-1848), de Balzac (1799-1850) e do romantismo poético de Charles Baudelaire (1821-1867) – embora esta corrente artística se houvesse, desde logo, manifestado com mais acuidade no século anterior e predominantemente nas literaturas inglesa e alemã –, inicia a extensa pesquisa bibliográfica – baseada, no essencial, nas obras do historiador e geógrafo grego Políbio (circa 203-120 a.C.) – para o romance que se seguirá ao escandaloso, para a época, e talvez a sua obra mais famosa a par de Educação Sentimental (1869), Madame Bovary (1857) – publicado pela primeira vez em fascículos em 1856 –, assim como ao encerramento, por absolvição, do processo judicial que lhe foi movido em França, sob a acusação de obscenidade e de atentado à moral e aos bons costumes.
Este será o segundo romance do autor, integrando a inovadora corrente francesa do realismo histórico e que se centrará no Império Cartaginês do século III a.C., após o decurso da I Guerra Púnica (de 264 a 241 a.C.) travada com o expansionista Império Romano pelo domínio das ilhas e das regiões costeiras do Mediterrâneo. A sua escrita termina em Junho de 1862, cinco anos após o seu início, o que demonstra à saciedade o afamado perfeccionismo estético do escritor natural de Ruão, igualável ao do seu mais jovem coetâneo, e seu admirador confesso, Henry James (1843-1916).
Para além do laborioso trabalho de recolha de fontes históricas, em 1858 Flaubert desloca-se, numa longa viagem e em plena fase de escrita do seu romance, às regiões do norte de África, onde outrora se situou a cidade-estado de Cartago – a cerca de 20 km a Leste de Tunes, capital da Tunísia –, o centro nevrálgico do Império Cartaginês.

Salammbô é uma personagem ficcional, filha de Amílcar Barca, general e comandante das tropas cartaginesas e pai de uma das figuras mais marcantes da antiguidade clássica, Aníbal Barca – protagonista da II Guerra Púnica com Roma (218-202 a.C.), nascido na Península Ibérica, local que despoleta o conflito.
Após a oclusão da I Guerra Púnica, os mercenários – os bárbaros – que auxiliaram Cartago contra Roma no conflito – entre os quais se contam os lusitanos, para além dos líbios e dos númidas, entre outros – e regressados da ilhas mediterrânicas onde combateram, retiram-se das muralhas da cidade sob a promessa do Conselho da República, extremamente debilitada, que os seus soldos iriam ser pagos assim que estes encetassem a viagem de regresso às suas terras.
O romance inicia-se com uma monumental orgia, nos jardins de Amílcar – ausente na Sicília – e que assinala o fim das hostilidades:

«Os soldados que este [Amílcar] comandara na Sicília organizavam um grande festim para celebrar o aniversário da batalha de Éryx e, como o dono da casa estava ausente e eram muitos, comiam e bebiam em completa liberdade.» (pág. 11).

É no primeiro capítulo que, no meio da exaustiva descrição da babilónia de povos, de línguas e dos comportamentos bárbaros de tão heterogéneo grupo, começam a surgir os protagonistas da obra que se divide entre a descrição histórica e um romance de fundo, de contornos cómicos e insólitos, entre o guerreiro líbio Mathô e a virgem Salammbô, filha de Amílcar guardada no seu palácio. Narr’Havas o traiçoeiro Príncipe da Numídia, Espêndio o perspicaz e agitador escravo grego de Mathô, Amílcar Barca o sufeta dos mares de Cartago, Hanão o sufeta da terras e herói da I Guerra Púnica, Gisgão o infeliz general cartaginês que se encarregou da promessa dos pagamentos aos mercenários.
A revolta dos mercenários perante o incumprimento de Cartago irá servir de base ao romance até à sua conclusão, assim como o estranho roubo do véu, Zaimph, da deusa Tanit, a Lua e deusa da fecundidade, cuja ausência é entendida como um presságio do enfraquecimento de Cartago, que poderá levar à extinção do império.

Salammbô estende-se por quinze capítulos, relatando ao detalhe as atrocidades das guerras da antiguidade clássica. Segundo alguns críticos e estudiosos de obra de Flaubert, Salammbô é entendida como uma alegoria para as atrocidades que se iam perpetrando em nome do poder absoluto e da glória dos povos e das civilizações em pleno século XIX – não nos podemos esquecer que a queda de Napoleão Bonaparte apenas havia ocorrido em 1814-15, ou seja, poucas décadas antes da publicação do romance, e que no momento eclodia a bárbara Guerra da Secessão americana (1861-1865).
Para além disso, o que mais fascina em Salammbô é a consciencialização da intemporalidade da crueldade imanente ao ser humano que se manifesta, servindo-se de meios que foram evoluindo, pela atrocidade das inumeráveis batalhas, do fratricídio sem fim que Flaubert quis testemunhar vinte séculos após o surgimento da guerra de Cartago contra os mercenários que, poucos anos antes, haviam apoiado a república do norte de África contra os romanos.
Faça-se uma extrapolação das barbaridades relatadas na obra para os dias de hoje e verificaremos que os vícios da humanidade, como a corrupção, a cupidez, a intolerância e a traição, estão presentes, como um espectro que é transversal à obra. Vícios que, de uma forma implacável, acompanharam e irão acompanhar a espécie humana durante séculos, até à sua profetizada auto-extinção, o Dia do Juízo onde os réus serão, porventura, declarados como contumazes, ao arrepio do anunciado na Sagradas Escrituras.

Salammbô é uma obra fascinante, um tratado de História – que na época em que foi publicada provocou uma autêntica febre cartaginesa na França novecentista – e simultaneamente um minucioso mapa psicossocial do comportamento humano perante a diferença entre povos, raças, religiões e culturas.
O romance requer alguma parcimónia e um ritmo pausado de leitura, não só pelos nomes estranhos que pululam ao longo da primeira metade da obra, como pela opção da editora em incluir as notas do tradutor no final da narrativa, como, também, pela delicadeza de alguns pormenores que a sua não leitura, para um leitor zeloso, decerto implicará o recuo de umas páginas para retomar o encadeamento da narrativa, ou, quiçá, poderá obrigar a um torturante retrocesso de um capítulo inteiro.

Uma obra genial e sobretudo intemporal, características que a tornaram um “clássico da Literatura”:
Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Gustave Flaubert, Salammbô. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Março de 2007, 275 pp. (tradução de Pedro Tamen; obra original: Salammbô, 1862)


Notas:

  1. A edição portuguesa da Relógio D’Água inclui no final uma carta enviada por Flaubert ao escritor e crítico francês Sainte-Beuve, como resposta aos três longos artigos publicados por este último no Nouveaux lundis em Dezembro de 1862, extremamente corrosivos e críticos da obra. Inclui uma pequena nota final de tréguas redigida por Sainte-Beuve no dia de Natal desse ano.
  2. Para ler as críticas de Sainte-Beuve, assim como os dois textos encarniçados escritos pelo arqueólogo e conservador do Museu do Louvre Guillaume Froehner e publicados na Revue contemporaine em Dezembro de 1862 e Janeiro de 1863, respectivamente, assim como as respostas de Flaubert, consultar esta página da Web.

sábado, 5 de maio de 2007

Auto...

«O risco profissional a longo prazo de fazermos espectáculo de nós próprios consiste em, a dada altura, também comprarmos o bilhete.»

Uns são auto-indulgentes, outros auto-referenciais, outros ainda auto-iludidos e a nova estirpe, que brotou da terra como um géiser incontinente – que metáfora tão fraquinha, a roçar os limites do irrepreensivelmente deplorável (lá está!) –, os autodepreciadores.

Eu explico (soberba, aí vem a auto-referência). Terminada a leitura de Salammbô de Flaubert – mais tarde colocarei aqui a minha avaliação (auto-ilusão, ou seja, megalomania, com laivos de alguma histrionia…) –, pronto para regressar a mais umas linhas – poucas, talvez mais um artigo – do Caranguejo de Eco e para escolher o próximo livro que nos próximos tempos me acompanhará nas noites em que o buliçoso mulherio que comigo reparte o lar estiver, justa e convenientemente, a dormir a sono solto.
Segui o critério – sempre a postos para uma pequena derrogação – e percorri as lombadas do cemitério dos livros não lidos – dava um bom título! – peguei em DeLillo – não, o próprio, que, para além de não gostar de andar com desconhecidos ao colo, julgo eu deambula no momento pelos subúrbios de Nova Iorque – Cosmópolis, para finalmente poder imolar-me numa troca de mimos literários com o Rogério. No entanto, numa espécie de epifania arcangélica, uma lombada em tons de ciano, com letras impressas a negro encimadas pelo logótipo da Teorema, fez-me recuar e reflectir sobre o motivo daquela, em concreto, estar postada ao lado das lombadas dos “não lidos”.
Auto-expliquei-me: com o excepcional ano editorial de 2005 em Portugal, lembro-me que para não ter de rogar a um deus desconhecido que os dias tivessem 48 horas, deixei o último romance de Bret Easton Ellis, Lunar Park, no triste recanto do olvido este tempo todo, ofuscado por outros, porventura menores, não lhe havendo servido de nada a grossa lombada fosforescente que ampara as cerca de 420 páginas.
Bom, a triste conclusão: a tal epifania levou-me finalmente à sua desfloração (outra bela metáfora!)

Enfim, termino com o belo início autobiográfico do livro que não tem uma abertura. Ou melhor, até tem e para não recorrer a uma auto-referência sobre as frases de abertura, aqui fica:

«“Fazes uma esplêndida imitação de ti próprio.”
«Esta é a primeira linha de
Lunar Park e, na sua brevidade e simplicidade, deveria ser um regresso à forma, um eco, da linha de abertura do meu romance de estreia, Menos Que Zero.
«“As pessoas têm medo de se fundir nas auto-estradas de Los Angeles.”
«Desde então, as frases de abertura dos meus romances – por mais bem compostas que fossem – tinham-se tornado demasiado complexas e ornamentadas, carregadas de uma ênfase pesada e inútil nos pormenores.
» (pág. 9)

Ah, é verdade! A citação inicial pertence, segundo BEE – olha, o Abelha! – (epígrafe, pág. 7) ao romance de 1978 Panama do escritor norte-americano Thomas McGuane, considerado como o mais autobiográfico do autor... autor.

Referência bibliográfica:
Brest Easton Ellis, Lunar Park. Lisboa: Teorema, 1.ª edição, Outubro de 2005, 413 pp. (tradução de Maria Augusta Júdice; obra original: Lunar Park, 2005).

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Cartago


(carregar na imagem para ampliar)

Para aqueles que, como eu, aproveitaram a recente edição da Relógio D’Água, com tradução de Pedro Tamen, para se iniciarem, através da leitura, no romance histórico Salammbô de Gustave Flaubert, originalmente publicado em 1862, aqui deixo ficar um precioso auxiliar – ver imagem acima – para a tarefa mental de situar as cidades cartaginesas do século III a.C. mencionadas no livro, e para entender os limites até aos quais se estendia o Império de Cartago após o fim da primeira das três Guerras Púnicas com Roma, época em que decorre a acção da fabulosa narrativa:

«Era em Megara, subúrbio de Cartago, nos Jardins de Amílcar.»
Gustave Flaubert, Salammbô, pág. 11 (Relógio D’Água, 2007).

terça-feira, 10 de abril de 2007

Ainda o Mestre

Henry JamesHá cerca de um mês dava aqui a notícia que, finalmente, o romance The Master do autor irlandês Colm Tóibín havia sido editado em português de Portugal.
O suplemento Ípsilon do jornal
Público dava-lhe destaque através de um excelente artigo assinado por Luís Miguel Queirós que dava conta, entre muitos outros assuntos, da febre jamesiana que assolou os espíritos literários de autores de língua inglesa. Entre eles contava-se David Lodge com o seu romance Autor, Autor – a exultação do público que clama pela presença do autor da peça em palco para uma ovação –, prontamente editado em Portugal pelas mãos das Edições Asa e que, havendo-me recordado da ocasião – e julgo não estar enganado –, mereceu a presença do escritor britânico por terras lusas para a apresentação do livro.
Devidamente apetrechado da minha oneomania literária – conceito aprofundado, com rigor científico, pela revista Certa dos hipermercados Continente [verídico, aparte a cientificidade] – lá adquiri o exemplar de Lodge que abri para de súbito fechar. Pareceu-me grotesca uma primeira parte, com pouco mais de quarenta páginas, recheada de diálogos e de coloquialismos da criadagem quando o tema central abordava precisamente o epítome da estética literária e do bom gosto, mesmo que a intenção de Lodge fosse o da destrinça de grandezas pela justaposição de hierarquias ou o do mero confronto de estilos.
Assim que saiu O Mestre, retomei o que abandonara havia pouco mais de um ano, o romance de David Lodge. E não me enganei por muito, apesar da, prognosticada por mim, inversão nas restantes três partes, mas:

«Henry levantou-se da cama e esvaziou copiosamente a bexiga para um bacio. Ao arrumá-lo de novo na mesa-de-cabeceira sentiu, como sempre uma leve pontada de remorso por dar à criada a tarefa de o despejar (…)» (pág. 240)

Para mais adiante referir, após James, ansioso, haver encontrado o anúncio no jornal sobre a estreia para essa noite da sua peça Guy Domville:

«Aguardou, esperançado, algum movimento intestinal que pudesse pressagiar evacuação, mas não recebeu essa graça.» (pág. 244)

Lodge dessacraliza o mito, como para satisfazer a curiosidade escatológica de um público voyeurista, sedento pela revelação de pormenores sórdidos das figuras públicas mesmo que mortas e enterradas há quase uma centena de anos. É nisto que a obra de Lodge, apesar de versar sobre a mesma matéria, se situa nos antípodas do romance de Tóibín.
Em suma, sobre Henry James, apetece-me ironizar, parece que Lodge escreveu para a TV Guia e Tóibín para a Yale Review.

Apesar de tudo, isso não pretende significar que Autor, Autor não tenha os seus méritos. Julgo até que, na íntegra, consegue alcançar os seus objectivos, não conferindo, de forma propositada, juízo de valor algum ao próprio autor, o que em certas situações empresta um carácter mais informativo à biografia romanceada. Como exemplo, deixo aqui ficar este episódio delicioso, apesar de ser susceptível de encerrar uma aparência, de certa forma, mórbida, que retrata o processo de escrita de uma carta pela mão de Henry, que irá ser enviada ao seu irmão mais velho, William, a viver nos Estados Unidos, relatando os últimos minutos de vida da irmã Alice na sua casa em Londres:

«Nesse momento, e de uma forma estranha, difusa e comovente, o rosto dela pareceu tornar-se mais claro. Fui abrir a janela, para deixar entrar um pouco mais de luz da tarde (era um domingo luminoso, agradável e silencioso), e quando voltei para junto do leito ela [Alice James] tinha exalado o seu último suspiro.» Leu o parágrafo outra vez, riscou o lugar-comum «último suspiro» e substituiu-o por «o suspiro a que mais nenhum se seguiu». (pág. 169)

Henry, o esteta, revela-se até nestes momentos de infortúnio.
A propósito da culpa e do remorso sentidos pela morte da sua querida amiga Constance Fenimore Woolson, Henry lembrou-se das palavras de acusação escritas pela mãe de Flaubert numa carta que endereçou ao próprio filho e que este lhe contou, em tom de piada, num encontro de escritores na sua casa em Paris:

«A tua mania das frases secou-te o coração» (pág. 236).

Referência bibliográfica:
David Lodge, Autor, Autor. Porto: Asa, 1.ª edição, Novembro de 2005, 426 pp. (tradução de Ana Maria Chaves; obra original: Author, Author, 2004).

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Amiguismos?

John Banville recenseia o último romance de Martin Amis, House of Meetings, no Volume 54(3), de Março deste ano, da The New York Review of Books.

Nesta obra, Amis retrata o horror dos Gulags estalinistas pelos olhos de um ex-exilado russo, agora octogenário, milionário e a residir nos Estados Unidos, que decide, no fim da sua vida, viajar até ao local onde despendeu catorze tenebrosos anos da sua juventude na companhia do seu meio-irmão, e viu e sofreu as mais bárbaras atrocidades do regime comunista soviético. Pelo meio vagueia o espectro de uma paixão de ambos pela mesma mulher, uma garbosa judia que mais tarde será a mulher do seu irmão e que esteve na origem da prisão arbitrária deste e na consequente deportação para os campos da Sibéria, havendo sido acusado de exultar a América quando, numa fila de uma cafetaria, este se referia à mulher da sua vida a quem atribuiu o nome de código “America”. (Para mais informações, ler a recensão)

A sinopse é sugestiva. Martin Amis há muito que, por mérito próprio, dispensa quaisquer apresentações. A recensão do ilustre Banville deixou-me uma enorme expectativa da real qualidade da obra. E depois, há todo aquele delicioso jogo de “quem influencia/influenciou a escrita do autor” que, pelos escritores referenciados, enredam de forma inapelável um apaixonado pela Literatura com os seus mais insignes autores: Amis é um admirador de Vladimir Nabokov, que todavia foi influenciado no início dos anos 80 por Saul Bellow, que por sua vez procurou ser um Gustave Flaubert americano até ter escrito As Aventuras de Augie March,... and so forth

Banville termina com uma pequena queixa, se é que, como ele diz, se trata mesmo de uma queixa:

«House of Meetings is a rich mixture, all the richer for being so determinedly compressed. In fewer than 250 taut but wonderfully allusive, powerful pages Amis has painted an impressively broad canvas, and achieved a telling depth of perspective. The first-person voice here possesses an authority that is new in Amis's work. It is as if in all of his books he has been preparing for this one. In his depiction of a nation stumbling, terrified and terrifying, through rivers of its own, self-spilt blood, he delivers a judgment upon a time—our time— the spectacle of which, if it had been but glimpsed by the great figures of the Enlightenment on whose reasonings and hopes the modern world is founded, would have struck them silent with horror. Stalin and Stalin's Russia have provided Martin Amis with a subject worthy of his vision of a world which, as Joseph de Maistre has it, is "nothing but an immense altar on which every living thing must be immolated without end, without restraint, without respite, until the consummation of the world, until the extinction of evil, until the death of death,"[10] and in which, in the cruelest of Wildean ironies, the victims of tyranny survive to become tyrants in their turn, destroying even those whom they love most dearly. It is a bleak vision, assuredly, yet as always in the case of a true work of art, our encounter with Amis's dystopia is ultimately invigorating.»

(nota: olha quem fala! O tal que escreveu uma obra-prima, vencedora do Booker, com cerca de 200 páginas na versão original inglesa – na portuguesa conta com 176 páginas.)