O Expresso publica hoje, aqui, um artigo de opinião de José Sócrates.
Não é uma opinião inocente nem pessoalmente desinteressada, nem isso seria esperável da parte de quem enfrenta há mais de oito anos a justiça sem que a Justiça tenha sido até hoje capaz de o julgar.
Provavelmente, nunca o julgará: é a opinião de muitos portugueses (talvez, a esmagadora maioria), entre os quais me encontro, que o julgam na praça pública autor dos crimes de que é suspeito e que suspeitam que ele nunca virá a ser julgado.
O referido artigo, que transcrevo a seguir, é mais uma das muitas intervenções em que, honra lhe seja feita, desassombradamente, José Sócrates tem denunciado o jogo da cabra cega animado, em sessões quase contínuas, pela inqualificável actuação dos agentes da administração da justiça em Portugal, com especial destaque das intervenções públicas mediatizadas do Ministério Público, para gáudio dos media e da populaça.
Aquele PS no final do artigo é, assim o interpreto, duplamente intencional: pelo PS e pelo seu secretário-geral, primeiro-ministro, com quem Sócrates tem contas a ajustar e que nem a, muito provável prescrição por ultrapassagem de prazos em todos os processos que envolvem Sócrates, vai sanar, ainda que interesse a ambos.
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Sim, aquelas buscas* são um caso sério. Muito sério. A começar pelo que está mesmo à frente dos nossos olhos: o único crime que temos a certeza de ter sido cometido é o crime de violação do segredo de justiça. Um crime em direto na televisão. Um crime cuja especial gravidade consiste em ter sido praticado por agentes do Estado, aqueles a quem confiamos o cumprimento da lei – o polícia, o procurador ou o juiz.
Ninguém mais sabia. Assim começa o dia no prodigioso mundo do combate ao crime económico – cometendo um crime. Mais de cem agentes policiais envolvidos, dizem com orgulho. A desvalorização deste crime é um dos silêncios da conversa oficial sobre a atuação judicial. Ela tem sido habilidosamente promovida sob a alegação de que tem objetivos nobres e de que visa um respeitável interesse público. Na verdade, nem uma coisa nem a outra.
Nenhum interesse público justifica o crime e a violação da lei e nenhuma moral particular disfarça o que é: evidentemente, um abuso de poder. Os que dão estas informações aos jornalistas não são justiceiros, são criminosos. A espetacular ação judicial daquela manhã não decorreu sob o rigor do Estado de Direito, mas do arbítrio do Estado de exceção. E no Estado de exceção quem decide a exceção é o verdadeiro soberano. Mas há mais. Há também as buscas por motivos frívolos.
A operação escancara perante todos a costumeira e escandalosa prática de ordenar buscas exclusivamente destinadas ao espetáculo televisivo. Há muito que as invasões policiais do domicílio privado deixaram de ser decididas em função da utilidade para a investigação ou da necessidade de obter provas que, de outra forma, não se poderiam obter. Acompanhadas das câmaras de televisão, as buscas servem para ferir, para humilhar, para intimidar, para destruir a reputação dos visados. A câmara de televisão transforma-se assim no novo instrumento do poder estatal. O novo punhal do assassinato político. Nada disto é precipitação ou maluqueira. Não. Há um método e um propósito por detrás de tudo isto.
A tese é que o direito penal evolui por transgressões. Se violarmos as normas legais com frequência, elas passam a ser outras. Reescrevemos a lei, violando-a muitas vezes. Há muito que a separação de poderes está ameaçada, não por invasões do poder político no poder judicial, mas exatamente ao contrário – quem tem mandato apenas para aplicar a lei acha que chegou o momento de se substituir ao Parlamento para a mudar segundo a sua vontade e o seu interesse.
Tudo isso está a acontecer a uma velocidade assustadora. A ação judicial contemporânea foi lentamente transformando as buscas domiciliarias em ações rotineiras, como se o direito à inviolabilidade residencial constituísse agora uma garantia constitucional obsoleta e arcaica. As buscas sem fundamento sério são um dos mais sérios indicadores da deriva penal autoritária em desenvolvimento.
Finalmente, o motivo. O sério motivo.
Aparentemente, dizem os relatos, a ação policial, com tantos agentes, com procuradores no terreno e com a assinatura de juízes, destina-se a esclarecer a distinção legal entre atividade parlamentar e atividade partidária, questão que julgávamos reservada a quem tem falta de assunto para uma tese de doutoramento. Para os outros, para os que têm ainda alguma cultura democrática, parece óbvio que toda a atividade parlamentar é também atividade partidária, visto que os lugares do parlamento ainda são monopólio dos partidos e na medida em que só eles têm a prerrogativa de propor candidatos a sufrágio. Mas servirá a explicação de alguma coisa? Não me parece. No espaço televisivo basta pronunciar as palavras deputados e partidos para acabar de vez com a conversa e despertar a fúria da taverna. E eles contam com isso.
P.S. - As maravilhas que a ausência de rivalidade política é capaz de fazer. O que antes era “à justiça o que é da justiça” transformou-se subitamente em “julgamento de tabacaria”. Sempre esteve de acordo, faltou-lhe a coragem de o dizer. Ericeira, 16 de julho de 2023
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* Uma manhã no combate ao crime - aqui
O antigo primeiro-ministro escreve sobre a manhã de buscas à casa de Rui Rio: “A espetacular ação judicial daquela manhã não decorreu sob o rigor do Estado de Direito, mas do arbítrio do Estado de exceção. E no Estado de exceção quem decide a exceção é o verdadeiro soberano”