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15/12/2013

CANTIGUINHA




Brota esta lágrima e cai.
Vem de mim, mas não é minha.
Percebe-se que caminha,
sem que se saiba aonde vai.
 
Parece angústia espremida
de meu negro coração
- pelos meus olhos fugida
e quebrada em minha mão.
 
Mas é rio, mais profundo,
sem nascimento e sem fim,
que, atravessando este mundo,
passou por dentro de mim.
 
Cecília Meireles
In Vaga Música
tela Christian Schloe

13/02/2012

BORBOLETA VIOLENTA



Não penseis que seja do tempo ou do vento ou da chuva:
nada disso -  os jasmins caídos
foram destroçados por uma só borboleta.

Chegou como um invasor, grande, amarela, poderosa,
assaltou com avidez as flores tranquilas,
brancas em seu leito verde,
deixou-as cair, passou adiante,
saciou-se com desespero,
voou para longe,
desapareceu por outros jardins,
deixou despregadas as pequenas corolas
que rolaram como estrelas
e aí estão perfeitas e brancas, sem saberem que já estão mortas.

Tudo isso para nós foi um brevíssimo instante:
não sei, no tempo das borboletas e das flores,
no alto relógio de Deus.

Cecília Meireles
In Palavras e Pétalas
foto por

21/04/2011

ROMANCE XI OU DO PUNHAL E DA FLOR


















Rezando estava a donzela,
rezando diante do altar.
E como a viam mirada
pelo Ouvidor Bacelar!
Foi pela Semana Santa.
E era sagrado o lugar.

Muito se esquecem os homens,
quando se encantam de amor.
Mirava em sonho a donzela
o enamorado Ouvidor.
E em linguagem de amoroso
arremessou-lhe uma flor.

Caiu-lhe a rosa no colo.
Girou malícia pelo ar.
Vem, raivoso, Felisberto,
seu parente protestar.
E era na Semana Santa.
E estavam diante do altar.

Mui formosa era a donzela.
E mui formosa era a flor.
Mas sempre vai desventura
onde formosura for.
Vede que punhal rebrilha
na mão do contratador

Sobe pela rua a tropa
que já se mandou chamar.
E era  à saída da igreja,
depois do ofício acabar.
Vede a mão que há pouco esteve
contrita, diante do altar!

Num botão revala o ferro:
e assim se salva o Ouvidor.
Todo o Tejuco murmura
- uns por ódio, uns por amor.
Subir um punhal nos ares,
por ter descido uma flor!

Cecília Meireles
In Romanceiro da Inconfidência
foto por Orange Leaf   

03/02/2011

10




















Em colcha florida
me deitei.
Pássaros pintados
escutei.
Grinaldas nos ares
completei.

Da morte e da vida
me lembrei.
Dias acabados
lamentei.

(Flores singulares
não bordei.
A canção trazida
não cantei.

Naveguei tormentas pelos quatro lados.
Não as amansei!
Ó grinaldas, flores, pássaros pintados,
como dormirei?)

Cecília Meireles
In Metal Rosicler
foto de   dubbelt_halvslag no Flickr

XXIV



















Não digas.Este que me deu corpo é meu Pai.
Esta que me deu corpo é minha Mãe.
Muitos mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram
Em espírito.
E esses foram sem número.
Sem nome.
De todos os tempos.
Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje .
Todos os que já viveram.
E andam fazendo-te dia a dia
Os de hoje, os de amanhã.
E os homens, e as coisas todas silenciosas.
A tua extensão prolonga-se em todos os sentidos.
O teu mundo não tem pólos.
E tu és o próprio mundo.

Cecília Meireles
In Cânticos
foto de a dubbelt_halvslag no Flickr

19/12/2010

EPIGRAMA 2



















És precária e veloz, Felicidade.
Custa a vir, e quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.

Cecília Meireles
In Viagem
foto de Cap001 no Flickr

LEMBRANÇA RURAL


                                           
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
A encosta barrenta aceita o frio, toda nua.
Carros de bois, falas ao vento, braços, foices.
Os passarinhos bebem do céu pingos de chuva.

Casebres caindo, na erma tarde. Nem existem
na história do mundo. Sentam-se à porta as mães descalças.
É tão profundo, o campo, que ninguém chega a ver que é triste.
A roupa da noite esconde tudo, quando passa...

Flores molhadas. Última abelha. Nuvens gordas.
Vestidos vermelhos, muito longe, dançam nas cercas.
Cigarra escondida, ensaiando na sombra rumores de bronze.
Debaixo da ponte, a água suspira, presa...

Vontade de ficar neste sossego toda a vida:
bom para ver de frente os olhos turvos das palavras,
para andar à toa, falando sozinha,
enquanto as formigas caminham nas árvores...

Cecília Meireles
In Vaga Música


PONTE






















Frágil ponte:
arco-íris, teia
de aranha,gaze
de água, espuma,
nuvem, luar.
Quase nada:
quase
a morte.

Por ela passeia,
passeia,
sem esperança nenhuma,
meu desejo de te amar.

Céu que miro?
- alta neblina.
Longo horizonte
- mas só de mar.

E esta ponte
que se arqueia
como um suspiro
- tênue renda cristalina -
será possível que transporte
a algum lugar?

Por ela passeia,
passeia
meu desejo de te amar.

Em franjas de areia,
chegada do fundo
lânguido do mundo,
às vezes, uma sereia
vem cantar.
E em seu canto te nomeia.

Por isso, a ponte se alteia,
e para longe se lança,
nessa frágil teia
- invisível, fina
renda cristalina
que a morte balança,
torna a balançar...

(Por ela passeia
meu desejo de te amar.)

Cecília Meireles
In Vaga Música
tela de Claude Monet, 1899

EMBALO
























Adormeço em ti minha vida,
-  flor de sombra e de solidão  -
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão

Adormeço  em ti minha vida,
imóvel na noite, e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós.

Nós! - E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza.

Cecília Meireles
In Vaga Musica
foto de claudio.marcio2

TARDIO CANTO



















Canta o meu nome agreste,
cheio de espinhos
o nome que me deste,
quando andei nos teus caminhos.

Canta esse nome amargo,
hoje perdido,
no tempo largo,
sem mais nenhum sentido.

Como esperei teu canto,
noites e dias!
Necessitava tanto!
Tu não podias...

Ouço o teu grito ardente,
cigarra do deserto!
Mas já não sou mais gente...
Não ando mais tão perto...

Cecília Meireles
In Vaga Música
foto de  claudio.marcio2

GAITA DE LATA



















Se o amor ainda medrasse,
aqui ficava contigo,
pois gosto da tua face,

desse teu riso de fonte,
e do teu olhar antigo
de estrela sem horizonte.

Como, porém, já não medra,
cada um com a sorte sua!

(Não nascem lírios de lua
pelos corações de pedra...)

Cecília Meireles
In Vaga Música
foto de claudio.marcio2

15/12/2010

VINDE,Ó ANJOS, COM AS VOSSAS ESPADAS























Vinde, ó anjos, com as vossas espadas,
as vossas espadas e as vossas balanças,
para pesar estas vidas pesadas
de tristes sonhos, mas não de esperanças.

Vinde com as vossas estrelas e flores
enfrentar animais flamejantes.
Ai! que campinas só de desamores,
que universo de só desamantes!

Cecília Meireles
In Poemas III
tela de Christie's Images

17/11/2010

CANÇÃO



















Se te abaixasses, montanha,
poderia ver a mão
daquele que não me fala
e a quem meus suspiros vão.

Se te abaixasses, montanha,
poderia ver a face
daquele que se soubesse
deste amor talvez chorasse.

Se te abaixasses, montanha,
poderia descansar.
Mas não te abaixes, que eu quero
lembrar,sofrer, esperar.

Cecília Meireles
In Poema I
tela de  thebestclick  no Flickr

CONCERTO


















A Mario Quintana

Dentro do perfume vamos:
perfume da noite
perfume da rua,
jardim de perfume,
perfume de casa,
perfume de incenso.
Dentro do perfume vamos.

Entre alvores nos sentimos:
alvores de salas,
alvores de panos,
êxtases de alvores,
alvores de teclas,
alvores do tempo...
Entre alvores nos sentimos.

Dentro da música estamos:
música de cordas,
música de outrora,
- amâgo da música -
música de agora,
música infinita:
dentro da música estamos.

Mortais mas eternos somos:
eternos em alma,
eternos em gosto,
em mistério eternos,
eternos sonoros,
eternos,eternos,
- mortais e eternos já somos.

Tão longe estávamos, antes,
tão longe na terra,
tão longe em cegueira,
estranhos, tão longe,
tão longe e sem nome,
tão longe e sem rosto,
tão longe estávamos antes!

Agora porém, sabemos
sabemos um perfume,
sabemos esta casa,
que música sabemos!
sabemos de outros mundos,
sabemos tudo e todos...
para sempre o sabemos.

Cecília Meireles
In Poemas
foto de a grey_ash no Flickr

26/09/2010

RETRATO FALANTE























Não há quem não se espante, quando
mostro o retrato desta sala,
que o dia inteiro está mirando,
e à meia-noite em ponto fala.

Cada um tem sua raridade:
selo, flor, dente de elefante.
Uns têm até felicidade!
Eu tenho o retrato falante.

Minha vida foi sempre cheia
de visitas inesperadas,
a quem eu me conservo alheia,
mas com as horas desperdiçadas.

Chegam, descrevem aventuras,
sonhos, mágoas, absurdas cenas.
Coisas de hoje, antigas, futuras...
(A maioria mente, apenas.)

E eu, fatigada e distraída,
digo sim, digo não - diversas
respostas de gente perdida
no labirinto das conversas.

Ouço, esqueço, livro-me - trato
de recompor o meu deserto.
Mas, à meia-noite, o retrato
tem um discurso pronto e certo.

Vejo então por que estranho mundo
andei, ferida e indiferente,
pois tudo fica no sem-fundo
dos seus olhos de eternamente.

Repete palavras esquivas
sublinha, pergunta, responde,
e apresenta, claras e vivas,
as intenções que o mundo esconde.

Na outra noite me disse: "A morte
leva a gente. Mas os retratos
são de natureza mais forte,
além de serem mais exatos.

Quem tiver tentado destruí-los,
por mais que os reduza a pedaços,
encontra os seus olhos tranqüilos
mesmo rotos, sobre os seus passos.

Depois que estejas morta, um dia,
tu, que és só desprezo e ternura,
saberás que ainda te vigia
meu olhar, nesta sala escura.
Em cada meia-noite em ponto,
direi o que viste e o que ouviste.
Que eu - mais que tu - conheço e aponto
quem e o que te deixou tão triste."

Cecília Meireles
tela de Pablo Picasso

23/07/2010

ESTA QUE EM SILÊNCIO




















Esta que em silêncio
abaixa a cabeça
e escreve uma carta
anda tão cansada
de entregar ao mundo
mensagens de amor
que até as tulipas
perto do seu rosto
lágrimas escorrem
e de pesarosas
têm corações negros.

Que até uma brisa
que vinha passando
parou nos seus lábios,
não se moveu mais.
Manso beijo aéreo
de um céu compassivo.

Que até as palavras
que vai escrevendo
vão tomando formas
de nuvens errantes,
de ondas pressurosas
para a espuma e areia,
de passos humanos
em longos desertos
onde é sempre novo
o horizonte, e o mesmo...

Ah! terrena vida,
estranha aventura,
rumo involuntário,
perspectiva surda.

Cecília Meireles
In Poema II
foto by Galeria de AGrinberg no Flickr

02/06/2010


The Lotus by Charles Emile Heil

16

Sono sobre a chuva
que, entre o céu e a terra,
tece a noite fina.

Tece-a com desenhos
de amigos que falam,
de ruas que voam,
de amor que se inclina,

de livros que se abrem,
de face incompleta
que, inerme, deplora
com palavras mudas
e não raciocina...

Sobre a chuva, o sono:
tão leve, que mira
todas as imagens
e ouve, ao mesmo tempo,
longa, paralela,
a canção divina

dos fios imensos
que, nos teares de água,
entre o céu e a terra,
o tempo separa
e a noite combina.

Cecília Meireles
In Metal Rosicler

Lobster Boat by James Harrigan

Vens sobre noites sempre. E onde vives? Que flama
pousa enigmas de olhar como, entre ceús antigos,
um outro Sol descendo horizonte marinhos?

Jamais se pode ver teu rosto, separado
de tudo: mundo estranho a estas festas humanas,
onde as palavras são conchas secas, bradando

a vida, a vida, a vida! e sendo apenas cinza.
E sendo apenas longe.E sendo apenas essa
memória indefinida e inconsolável.Pousa

teu nome aqui, na fina pedra do silêncio,
no ar que frequento , de caminhos extasiados,
na água que leva cada encontro para a ausência

com amorosa melancolia.

Cecília Meireles
In Solombra

09/05/2010


by Vincent van Gogh » Olive Grove: Orange Sky

CANCÃO PARA VAN GOGH

Os azuis estão cantando
no coração das turquesas:
formam lagos delicados,
campo lírico, horizonte,
sonhando onde quer que estejas.

E os amarelos estendem
frouxos tapetes de outono,
cortinados de ouro enxofre,
luz de girassóis e dálias
para a curva do teu sono.

Tudo está preso em suspiros,
protegendo o teu descanso.
E os encarnados e os verdes
e os pardacentos e os negros
desejam secar-te o pranto.

Ó vastas flores torcidas,
revoltos clarões do vento,
voz do mundo em campos e águas,
de tão longe cavalgando
as perspectivas do tempo!

No reino ardente das cores,
dormem tuas mãos caídas.
Luz e sombra estão cantando
para os olhos que fechaste
sobre as horas agressivas.

E é tão belo ser cantado,
muito acima deste mundo...
E é tão doce estar dormindo!
É preciso dormir tanto!
(É preciso dormir muito...)

Cecília Meireles
In Palavras e Pétalas

foto by Turinboy

EXERCÍCIO COM ROSA,AMOR,MÚSICA E MORTE

Minha filha quis oferecer-me uma rosa.
Mas esqueceu-se da rosa no carro.
Fazia muito calor.O carro estava quente.
Estava muito quente, carro, para uma rosa.

Essa rosa, além de cor e perfume, trazia amor.
O amor às vezes pode estar numa rosa.
o amor é breve e incerto como a vida da rosa.
Se a rosa morresse, no carro, certamente com ela morria o amor.

Tomei a rosa nas mãos, e estava quase, quase,seca.
Dei-lhe água, dei-lhe música:" Ouve, dizia-lhe, ouve, ó múltipla
criatura de tantos lábios, tantos ouvidos, tantas pálpebras,
ouve, decantada flor, o que se pode ouvir de mais belo."

E a rosa seca docemente mantinha seu fim de vida:
entre água e ar passavam flautas e harpas e veludosos pianos.
Entre água e ar passavam as horas e o meu olhar entristecido.
O dia inteiro esteve a rosa assim, à beira da música,à beira da morte.

Não se sabe quando morreu:talvez na meia-noite escura.
Morreu sem desabar suas cascatas de pétalas:
morreu sem dispersão: roxa,secreta, toda em si mesma equilibrada,
com folhas, espinhos, pétalas,perfume,amor,música e morte.

Cecília Meireles
In Palavras e Pétalas