sábado, 28 de março de 2015

Amizade




Ouço Álibi com Djavan e sinto falta de você.  Sinto falta das gargalhadas debochadas e da batucada na carteira da escola durante o recreio.

Recreio! Era o nome perfeito. Nós recreávamos. Divertíamo-nos a valer, mesmo que a dor fosse grande, mesmo que o nó apertasse na garganta. Tínhamos o álibi perfeito: a juventude transbordando pelos poros e o resto da vida pra resolver nossos problemas. E as canções ecoavam pelos corredores do colégio, enrouqueciam nossas gargantas, mexiam ritmadamente com nossos corpos. Porque além de cantar, dançávamos! E como era bom!

Senti saudades de você, meu amigo. Do Paulo implicante, sarcástico, polêmico, instigante, crítico. Do Paulo que me ajudava com a Matemática, do Paulo que de meu amigo tornou-se amigo de toda a família. Virou filho dos meus pais e irmão da gente.

Lembro-me da sua provocação no primeiro dia de aula. Da boina à Che Guevara, da bolsa a tiracolo do chinas pau, da melissa furadinha.

A canção é curta. A memória, entretanto, viaja por anos enquanto a ouço.

Nada melhor do que a canção para me fazer ter vontade de novamente tomar um café com você e rir despudoradamente.


Sorte que sua gargalhada é uma música que ouço ao vivo.



domingo, 22 de março de 2015

Descombinações III




A igreja do bairro oferecia cursos em sua obra social. Podia-se aprender tricô, crochê, pintura, a fazer bonecas de pano e culinária. Minha mãe frequentava alguns. Adorava quando era a aula de culinária.
Apesar de muito criança – devia ter seis, sete anos – fui matriculada no curso de bordado. Era a maneira encontrada por minha mãe para ocupar minhas tardes.

Recebi um pequeno retalho de tela, agulha e linha. Não havia sentido naquilo pra mim. Descobri que estava aprendendo ponto de cruz.  Não deu certo.

Depois veio o tricô. As meninas do bairro teciam sapatinhos. Eu não!
O crochê só aumentou o desastre.


Mais uma vez, eu descombinava: era uma menina sem aptidão para trabalho manuais. 

Naquele tempo gostava de tecer histórias. Não as escrevia. Mas o mundo da lua era meu lugar preferido.




sexta-feira, 6 de março de 2015

Descombinações II








Não falo palavrões. Em criança meus pais não permitiam e quase não falavam pra dar o exemplo.  Agora não os falo por opção. Gosto de ter palavras outras na hora da raiva, da dor.

Sempre me apontam como aquela que não fala palavrões. Acho graça. Mais uma vez descombino.
Lembro-me de uma vez que fui pra escola vestindo amarelo e rosa.  Mais uma vez senti que não sabia me vestir. Que combinação era aquela? Só aos meus olhos ela era bonita.

Cresci indo à missa todos os domingos, voltando para casa às dez, não indo aonde não me era permitido ir.

Mas gostando de amarelo com rosa.


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Descombinações







Quando menina, ouvia dizer que verde não combinava com azul. Era mau gosto usá-los. Sentia-me mal por gostar de tal combinação. Passei, então, a me considerar uma pessoa que não sabia se vestir. Sempre querendo a opinião de outros.

O problema é que eu sempre gostava do que não era usual. Chuva com granizo, vento de tempestade, silêncio ou música alta, palavras bonitas.


Meus amigos sempre incomuns. Meio rebeldes, meio artistas, bastante problemáticos, errados em quase tudo.  Eu descombinava de todos, mas os amava com paixão. Enquanto eles se perdiam em suas inquietações, calava as minhas em folhas de caderno. Era a certinha, a centrada. Mas adorava verde com azul.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Minha história de amor

                                                                        Para Manoel Francisco


                                                                                                                          
Como toda mulher, gosto de filmes românticos. Meus olhos brilham marejados pela emoção diante da tela. Tendo, como outras, a idealizar a figura masculina depois de um bom filme de comédia romântica. Nessas horas não acho par na realidade – afinal eles, os heróis, são maravilhosos em tudo!
Mentira! Também tenho uma história de amor! E mais: ela é palpável, concreta, real.
Há um sorriso na tela. Impecável. Daqueles de filmes!  Há um sorriso na minha memória. Impecável. Inesquecível. O seu.
A primeira vez que o vi, não fui capaz de perceber que havia chegado meu par, mas pude perceber um sorriso entre o tímido e o envaidecido diante do meu olhar. A história apenas começava e nós nem sabíamos o quanto ela seria intensa. Era apenas a apresentação das personagens principais e nenhum outro autor poderia tê-la escrito com maior beleza.
Há um encontro na tela. Uma dificuldade de admitir que algo pode mudar pra sempre suas vidas.
Encontram-se e desencontram-se.
É assustador.
É desconcertante.
É definitivo.
Houve um primeiro beijo. Desajeitado, preocupado, competitivo. Cada um do seu lado da página, tentando ser mais que o outro.
Mas a história só começa depois do segundo, porque esse – ao contrário do outro – foi desejado, ainda que o primeiro tivesse sido. Entretanto do segundo, fugimos. Tivemos medo.
Desencontramo-nos por opção.
Há vilões nas histórias de amor. Surgem quando não esperamos de onde nunca suspeitaríamos. Cena comum, sem criatividade. As personagens aqui, todos sabem como são. Os mocinhos sofrem, a plateia sofre, o coração se aperta.
Nossos vilões nunca puderam nos ver separados, nunca puderam mudar nossa história, por um dia sequer. Existiram. Tentaram. Não conseguiram.
Ainda não chegamos ao final. Somos felizes a cada dia. Nossa história tem momentos difíceis, tem choro, raiva... sobretudo tem amor!
Eu me emociono com histórias românticas, paixões profundas! Gosto de me sentar em frente à tela e descansar vendo belas paisagens, figurinos, atores e textos. Por que não?
Para vida real, entretanto, escolhi escrever com você uma história inédita, passada apenas entre nós: há dias em que as cenas são opacas, noutros escuras e em outros reluzentes. Há dias em que desacreditamos da história, há outros em que queremos reescrevê-la.
A cada dia sempre, indubitavelmente, escrevemos juntos as próximas cenas ou as próximas versões da nova história que viveremos. Sempre melhores. Sempre nossas.
Sim. Ainda dizemos sim um para o outro. Desde o primeiro olhar, desde o primeiro encontro, desde o primeiro beijo, desde o primeiro desencontro.

Estamos em cartaz, há vinte e cinco anos sem ser sucesso de público. Os vilões mudaram. Existem, tentam. Não podem. No momento servem para manter a plateia desperta. A história viva. Mesmo eles sabem que têm papel secundário, afinal estamos na mesma página. Depois de muito filme rodado, não há desencontros, há a certeza de que este filme é um clássico! De que nós somos um. 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Taciturna









A escuridão a excitava. Gostava das sombras e de imaginar monstros sob a silhueta da lua.
Não tinha medo. Nunca teve. Conversava por horas com figuras imaginárias, criadas pelo jogo de luz e sombras no jardim.
Se havia névoa, melhor! Tudo parecia mais misterioso. Seu coração, então, disparava. Era tanto pra imaginar!
Cresceu assim: apegada à solidão. Amiga das fases lunares. Brincando de esconde-esconde com a neblina. Contando segredo às formas sombrias.
Ser estranho, canhoto, enigmático.
Mudou-se. Na cidade, perdeu o luar. As sombras eram traiçoeiras. Como agora imaginar? Onde agora se esconder?
Virou poetisa. Submergiu no mundo das palavras.  Oculta-se em metáforas, joga com antíteses, cria raras rimas.
O coração, de novo, dispara: ritmadamente!


Ser estranho, canhoto, enigmático...




sábado, 28 de junho de 2014

Por amor








Pediu perdão.
Ainda não sabia bem o que havia acontecido quando a porta bateu atrás de si. Como pudera?
Sentiu um misto de vergonha e desespero. Jamais seria a mesma. Não havia volta.
O coração doía como nunca. A porta fechada nunca mais se abriria. Sabia disso e isso era doloroso. Uma parte de sua vida tinha se desmoronado. Fato! Pela primeira vez riu de si mesma.
Fez questão de atravessar a rua na faixa.  Já havia se desviado demais!
Um vento morno anunciou mudança de tempo. Mudança! Irremediável mudança! O coração pareceu desmaiar dentro do peito. Não queria mudar. Vacilara, com certeza, mas todo mundo erra! Por que somente ela deveria sofrer tanto? Por que pra ela não havia perdão? Sentia-se só. Perdida. Por isso tomara o caminho errado. Por isso imaginou, por isso arriscou, por isso perdeu!
Teve vontade de voltar e novamente pedir perdão, mas sabia que não adiantaria. Repetiu, então, mentalmente, seu pedido de perdão tantas vezes quanto achou necessário. Desejou fortemente que a dor fosse somente sua.
Atravessou a noite querendo um ponto de restauração. O momento mágico em que a decisão ainda não tinha sido tomada.
Amanheceu sem forças com os olhos cansados de não dormir. Arrumou-se para encarar o dia e a nova vida que tinha pela frente. Vestiu-se de dignidade e respeito, armou-se de coragem e saiu.

Do outro lado da cidade, alguém amanhecia certo de que perdão fora feito pra ser concedido.