No sábado passado fui ver a Ana Moura ao Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz. Pois, da Figueira da Foz... Não tenho nada contra - pelo contrário - a oferta de espectáculos de qualidade no CAE da Figueira. Quantos mais melhor!
Mas não consigo perceber porque é que a Ana Moura, a excelente Ana Moura, dá um concerto na Figueira e Coimbra fica de fora. Não é só de agora: há muitos anos que Coimbra, a «cidade da cultura e do conhecimento» (deve ser ironia), fica fora dos roteiros de espectáculos deste país. Tá bem, falam-me dos U2 ou dos Stones, mas isso é a excepção. E acho que seria mais positivo para a cidade se se apostasse numa certa regularidade em espectáculos de qualidade, do que trazer uma vez de 5 em 5 anos uma grande banda. Preferia que o hábito da fruição cultural fosse uma possibilidade real na minha cidade e não é. Pena...
Bom, como estava a dizer, lá fui à Figueira ver a Ana Moura. O concerto foi bom, descontando o escasso tempo da sua duração. A Ana começou a cantar já o Benfica jogava em Setúbal e acabou ainda o Cardoso não tinha falhado aquele maldito penalti. É pouco tempo.
De resto a fadista confirmou tudo o que eu já aqui escrevi acerca dela (uns posts mais abaixo, s.f.f.). É uma super star de uma beleza estrondosa, tem uma voz invulgar e uma presença arrasadora. O espectáculo está muito bem pensado, também do ponto de vista cénico. A entrada da Moura, de vestido preto e xaile sobre os ombros é majestosa, os gestos e as poses são cuidados e, acima de tudo, ela tem a qualidade vocal e a alma das grandes intérpretes. Mais uma vez, o espírito de Amália esteve presente, embora Ana Moura faça lembrar mais uma outra fadista, Teresa de Noronha, pela sua pose aristocrática. De facto, ao ouvir Ana Moura quase me esqueço de um certo lado folclórico e popularucho do fado: aquilo é ascético, nobre, espiritual. No fim ela temperou esse cunho mais aristocrático com a interpretação de um malhão que fez as delícias do povo ancião presente. E que bem que ficou à Ana a frase: «gosto de malhões!»...
Uma nota final: embora ela seja, efectivamente, uma grande artista, parece-me que o reportório que apresenta, não sendo mau, não está à sua altura. É ela que transcende aquelas canções, não as canções que a levam mais longe, de um modo geral. Falta-lhe, parece-me, descobrir o seu Alain Oulman (o homem que redimensionou a música da Amália). Acho que uma cantora com a dimensão da Ana não pode andar a catar canções do Tó Zé Brito e do Jorge Fernando. Acredito que no dia em que ela encontrar o «seu» compositor a música dela vai atingir um nível ainda mais estratosférico. Mas até lá o que podemos ouvir/ver já é de outra galáxia!
Blog da RS.T - Real Esseponto do Tinto - Coimbra - Os Três Pastorinhos também bebiam o seu copito
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02/01/10
A Star is Born, por Sr. Alfredo
Ana Moura não é apenas uma cantora de fado, uma excelente cantora de fado. Ela tem algo mais, tem presença, tem aura... Faz lembrar uma sibila, tem uma aura antiga e pagã e o facto de ser cantora de fado não é alheio a esta evocação. Com certeza, se fosse cantora de um outro género musical que não o fado, não despertaria esse sentimento. Mas, sendo como é uma espantosa fadista, não posso deixar de a ver como a continuadora de uma longa tradição que vem de Amália, de Teresa de Noronha, de Marceneiro... Ela não é só ela: é ela e esta grandiosa tradição. Ana está, umbilicamente, ligada ao nosso passado mais profundo.
Mas, simultaneamente, Ana Moura tem uma inequívoca dimensão de super star que é imediatamente perceptível, mesmo sem a ouvirmos cantar. Quem já a viu/ouviu em corriqueiras entrevistas televisivas sabe do que falo. Ela tem uma presença absorvente, não é uma simples mulher bonita. Enche o écran, como deve encher o palco (ainda não a vi ao vivo). Sabe exprimir-se e, ainda que não seja verdade (não sei se é nem se não), dá-nos a impressão de uma grande autenticidade. Ela é, pois, do passado e do futuro, é tradicional e moderna ao mesmo tempo,é xaile negro e glamour, é sibila e super-star...
Tim Ries, saxofonista de longa data dos Rolling Stones reconheceu-lhe o carisma quando a convidou para o projecto Stones World. Ries reuniu músicos de diferentes géneros musicais para gravar novas versões dos clássicos da banda. A Ana coube No Expectations e Brown Sugar. Mais tarde haveria de ser convidada por Jagger e por Richards para cantar com a banda, em pleno estádio «Alvalixo», No Expectations (diga-se de passagem que não correu nada bem, embora por motivos alheios à fadista: o som estava péssimo!). E, mais recentemente, foi Prince quem se apaixonou pela sua música (só?). O Artista veio a Portugal, Ana tem ido a Detroit e estamos à espera de um disco do duo...
O seu penúltimo disco, Para Além da Saudade, é o que mais passa no meu leitor de CDs. Tenho uma sensação que deve ser parecida com a dos meus pais quando apareceu a Amália. Até ouvir este disco eu pensava que o fado era um género musical prisioneiro dos velhos cds da Amália. Mas agora vejo que não. A Ana Moura não é a Amália e nunca virá a sê-lo. Mas é sem dúvida um imenso sopro de vida num género musical que precisava desesperadamente de uma estrela a sério e não só de simples estrelas locais. Ana Moura, que é antiga e moderna, por mais paradoxal que isto possa parecer, é essa super-star.
Mas, simultaneamente, Ana Moura tem uma inequívoca dimensão de super star que é imediatamente perceptível, mesmo sem a ouvirmos cantar. Quem já a viu/ouviu em corriqueiras entrevistas televisivas sabe do que falo. Ela tem uma presença absorvente, não é uma simples mulher bonita. Enche o écran, como deve encher o palco (ainda não a vi ao vivo). Sabe exprimir-se e, ainda que não seja verdade (não sei se é nem se não), dá-nos a impressão de uma grande autenticidade. Ela é, pois, do passado e do futuro, é tradicional e moderna ao mesmo tempo,é xaile negro e glamour, é sibila e super-star...
Tim Ries, saxofonista de longa data dos Rolling Stones reconheceu-lhe o carisma quando a convidou para o projecto Stones World. Ries reuniu músicos de diferentes géneros musicais para gravar novas versões dos clássicos da banda. A Ana coube No Expectations e Brown Sugar. Mais tarde haveria de ser convidada por Jagger e por Richards para cantar com a banda, em pleno estádio «Alvalixo», No Expectations (diga-se de passagem que não correu nada bem, embora por motivos alheios à fadista: o som estava péssimo!). E, mais recentemente, foi Prince quem se apaixonou pela sua música (só?). O Artista veio a Portugal, Ana tem ido a Detroit e estamos à espera de um disco do duo...
O seu penúltimo disco, Para Além da Saudade, é o que mais passa no meu leitor de CDs. Tenho uma sensação que deve ser parecida com a dos meus pais quando apareceu a Amália. Até ouvir este disco eu pensava que o fado era um género musical prisioneiro dos velhos cds da Amália. Mas agora vejo que não. A Ana Moura não é a Amália e nunca virá a sê-lo. Mas é sem dúvida um imenso sopro de vida num género musical que precisava desesperadamente de uma estrela a sério e não só de simples estrelas locais. Ana Moura, que é antiga e moderna, por mais paradoxal que isto possa parecer, é essa super-star.
12/06/09
The Fabulous Alfredo Marceneiro, por Batman
Falar de Alfredo Marceneiro é o mesmo que falar da «coisa em si» de Kant. Filosoficamente a coisa em si corresponde à realidade numenal que, segundo Kant, existe mas da qual não podemos ter qualquer conhecimento, a não ser na sua pálida manifestação «fenoménica». Assim é Marceneiro: sabe-se que foi a alma do fado, mas não podemos conhecê-lo a não ser a partir das pálidas gravações que nos ficaram da sua arte. Mas não será sempre assim, perguntar-se-á? Afinal só temos da maior parte dos artistas a sua manifestação fenoménica sob a forma de discos e filmes. É verdade. Contudo no caso de Marceneiro há uma diferença enorme. É que, para Marceneiro, a gravação tecnológica da sua música era um aviltamento.
Nascido em 1891 e falecido em 1982, o sr. Alfredo iniciou a sua carreira numa época em que a tecnologia de gravação estava a dar os seus primeiros passos. E, para ele, o fado, de que foi imortal xamã, era incompatível com a industrialização e o showbizz:
«O meu maior desgosto é um desgosto em relação ao fado: foi gravar discos, os discos vieram industrializar o fado, o fado não se deve vender, eu canto porque a minha alma o ordena, canto como se rezasse. Não gosto de cantar para máquinas. Quero ver o público, analisar as suas reacções, ver se estão a gostar».
Que é como quem diz: para nós que não vivemos no seu tempo, o único acesso que temos ao Marceneiro-em-si é esta miserável e falsa sombra das gravações. O verdadeiro Marceneiro, só o conheceu quem teve o privilégio de o ter ouvido cantar, algures numa taberna nocturna da Lisboa dos anos 20 a 50. E esses já cá não estão.
Alfredo Marceneiro foi uma personagem fantástica que entendeu o fado na sua pureza mais radical. O fado não era, para ele, uma questão de voz. Considerava-se a si próprio um dizente, alguém que, simplesmente, dizia melhor que outros as palavras dos poetas:
«No meu tempo não havia discos, não havia telefonias, nem se aprendia a cantar. A voz não interessava. No culto da voz está, talvez, o pior mal do fado: quem ouve a voz já não ouve a letra.»
Será por isso que o fado está morto? O fado na sua acepção mais pura, lapidarmente aqui formulada pelo grande Marceneiro? Eu sei que há agora uma nova geração de fadistas, como a Ana Moura (que cantou o No Expectations com os Stones em Lisboa), a Mafalda Arnauth, a Mariza, o Camané… Mas talvez nada do que eles cantam sejam fado, no sentido religioso que lhe dava o grande Alfredo. Ou talvez, hipótese menos chocante, o fado seja um género muito diverso e o Marceneiro seja apenas um representante – um dos mais geniais, sem dúvida – de um deles, de um sub-género em vias de extinção.
Alfredo Marceneiro era um homem da noite, da adega e da tasca, um mulherengo afamado. Reza a lenda que se deitava às nove da manhã e acordava às nove da noite. E era muito sensível à luz, «como é que posso cantar com esta luz toda?», reclama ele numa dessas falsas e inestimáveis gravações. Cantou até ao fim da sua vida, foi uma lenda até falecer e continuará a sê-lo. Conta-se que numa fase já tardia da sua carreira, cantava ele na Toca, em Lisboa, quando uma senhora da alta sociedade comovida com a actuação do mestre, agarrou-se a ele e disse-lhe: «O senhor Alfredo é a relíquia do fado». O velho fadista, que sempre teve o seu quê de vaidoso, não terá gostado da metáfora. E replicou: «Relíquia é o c*******!». Ah fadista…
Nascido em 1891 e falecido em 1982, o sr. Alfredo iniciou a sua carreira numa época em que a tecnologia de gravação estava a dar os seus primeiros passos. E, para ele, o fado, de que foi imortal xamã, era incompatível com a industrialização e o showbizz:
«O meu maior desgosto é um desgosto em relação ao fado: foi gravar discos, os discos vieram industrializar o fado, o fado não se deve vender, eu canto porque a minha alma o ordena, canto como se rezasse. Não gosto de cantar para máquinas. Quero ver o público, analisar as suas reacções, ver se estão a gostar».
Que é como quem diz: para nós que não vivemos no seu tempo, o único acesso que temos ao Marceneiro-em-si é esta miserável e falsa sombra das gravações. O verdadeiro Marceneiro, só o conheceu quem teve o privilégio de o ter ouvido cantar, algures numa taberna nocturna da Lisboa dos anos 20 a 50. E esses já cá não estão.
Alfredo Marceneiro foi uma personagem fantástica que entendeu o fado na sua pureza mais radical. O fado não era, para ele, uma questão de voz. Considerava-se a si próprio um dizente, alguém que, simplesmente, dizia melhor que outros as palavras dos poetas:
«No meu tempo não havia discos, não havia telefonias, nem se aprendia a cantar. A voz não interessava. No culto da voz está, talvez, o pior mal do fado: quem ouve a voz já não ouve a letra.»
Será por isso que o fado está morto? O fado na sua acepção mais pura, lapidarmente aqui formulada pelo grande Marceneiro? Eu sei que há agora uma nova geração de fadistas, como a Ana Moura (que cantou o No Expectations com os Stones em Lisboa), a Mafalda Arnauth, a Mariza, o Camané… Mas talvez nada do que eles cantam sejam fado, no sentido religioso que lhe dava o grande Alfredo. Ou talvez, hipótese menos chocante, o fado seja um género muito diverso e o Marceneiro seja apenas um representante – um dos mais geniais, sem dúvida – de um deles, de um sub-género em vias de extinção.
Alfredo Marceneiro era um homem da noite, da adega e da tasca, um mulherengo afamado. Reza a lenda que se deitava às nove da manhã e acordava às nove da noite. E era muito sensível à luz, «como é que posso cantar com esta luz toda?», reclama ele numa dessas falsas e inestimáveis gravações. Cantou até ao fim da sua vida, foi uma lenda até falecer e continuará a sê-lo. Conta-se que numa fase já tardia da sua carreira, cantava ele na Toca, em Lisboa, quando uma senhora da alta sociedade comovida com a actuação do mestre, agarrou-se a ele e disse-lhe: «O senhor Alfredo é a relíquia do fado». O velho fadista, que sempre teve o seu quê de vaidoso, não terá gostado da metáfora. E replicou: «Relíquia é o c*******!». Ah fadista…
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