quinta-feira, 29 de maio de 2014

COMO É ESTRANHA A MINHA LIBERDADE...




Como é estranha a minha liberdade 
As coisas deixam-me passar 
Abrem alas de vazio p'ra que eu passe 
Como é estranho viver sem alimento 
Sem que nada em nós precise ou gaste 
Como é estranho não saber


Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)

A liberdade





A liberdade que dos deuses eu esperava
Quebrou-se. As rosas que eu colhia,
Transparentes no tempo luminoso,
Morreram com o tempo que as abria.

Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)

Senhor




Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos

Foram talvez os anjos revoltados.
Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido

E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto

Por muito que eu te chame e te persiga.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in ‘’Mar Novo - I e II’ (1958)




O teu rosto



Onde os outros puseram a mentira
Ficou o testemunho do teu rosto
Puro e verdadeiro como a morte

Ficou o teu rosto que ninguém conhece
O teu desejo sempre anoitecido
Ficou o ritmo exacto da má sorte
E o jardim proibido.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in ‘’Mar Novo - I e II’ (1958)


terça-feira, 26 de novembro de 2013

''ESTE É O TEMPO''


Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam

Sophia de Mello Breyner

 In Mar Novo

terça-feira, 5 de novembro de 2013

''Jardim Perdido''



Jardim
em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.
A verdura
das arvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.
A luz trazia
em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.
Mas cada
gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possível e perdido.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

APESAR DAS RUÍNAS E DA MORTE..



Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.


Sophia de Mello Breyner Andresen
(in Poesia, 1944)


sábado, 5 de outubro de 2013

Navio Naufragado



Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso. 
 
É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.
 
Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.
 
E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.

 
Sophia de Mello Breyner
in "Dia do Mar"
 

Quem como eu


 
Quem como eu em silêncio tece
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?
 
Sophia de Mello Andresen 
in Dia do Mar
 

Eis Que Morreste


 
Eis que morreste. Mortalmente triste
Divaga a flor da aurora entre os teus dedos
E o teu rosto ficou entre as estátuas
Velado até que o novo dia nasça.
 
Se nenhum amor pode ser perdido
Tu renascerás -- mas quando?
Pode ser que primeiro o tempo gaste
A frágil substância do meu sono.

 
Sophia de Mello Breyner Andresen
Coral


Praia


 
Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
 
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
 
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
 
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
 
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.

 
Sophia de Mello Breyner Andresen
Coral
 

Biografia


 
Tive amigos que morriam, outros que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
 
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mar Novo
 

Noite




Sozinha estou entre paredes brancas
Pela janela azul entrou a noite
Com seu rosto altíssimo de estrelas
 
 
Sophia de Mello Andresen
in - Mar Novo
 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

OS DIAS DE VERÃO



Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo

 Sophia de Mello Breyner Andresen
 In Casario do Ginjal

ESTA GENTE




Esta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 

Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 

Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 

Pois a gente que tem 
O rosto desenhado 
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado 
Escreve o seu nome 

E em frente desta gente 
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 

Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo 


Sophia de Mello Breyner Andresen,
 in "Geografia"