A cantora e poetisa Tânia Tomé leu o poema A Louca da Casa, que se encontra dois post abaixo. Depois eu disse:
Este é o último poema que escrevi, escrevi-o anteontem.
Talvez se perceba agora porque é que não tenho ninguém sentado ao meu lado para apresentar o meu livro.
É que, sob influência da Louca da Casa, eu convidei o Ricardo Chibanga, o toureiro (o primeiro matador de touros negro do mundo, que era moçambicano, muito famoso nos anos 60 e 70) para me apresentar o livro. Ela garantiu-me, só o Chibanga é que te pode entender essa tua mania de que a poesia é uma lide corpo a corpo, e não uma coisa de literatos para literatos. E convidei o Chibanga. E ele não compareceu.
De corpo a corpo porque é a minha forma de vida, não é o meu hobby.
Para os árabes a palavra é mais interior ao corpo que os próprios órgãos, está no cerne. Por isso eles se fazem explodir – o mais importante para eles, A Palavra – no caso a palavra de Deus -, permanece intacto.
Infelizmente eu não acredito em Deus, ou antes, acredito num núcleo mas que não necessita de que lhe atribuamos um nome. Atribuir um nome a Deus é uma forma de idolatria, mas para mim a palavra também está no cerne.
E por isso assusta-me tremendamente uma possibilidade que é posta por um filósofo ainda mais chatinho que eu, o Derrida.
Ele fala da possibilidade da linguagem enlouquecer, que é o que pode ter acontecido ao alemão para gerar o nazismo, e é o que acontece a todos nós quando teimamos em não aprender a nuance entre a multiplicidade e a diversidade (como me ensinou o brasileiro Tadeu da Silva).
A multiplicidade é uma máquina de produzir diferenças, e a diversidade que é estática e limita-se ao existente. Com a diversidade temos a tolerância; com o múltiplo o entusiasmo, o contágio, a mestiçagem - o nosso compromisso no processo.
Quem diz esta nuance diz milhares de outras, trabalhar a linguagem é multiplicar as dobras, as diferenças, as nuances, e só assim se enxerga uma possibilidade de cura para as patologias da linguagem que caiem sempre na tentação redutora, no fascismo dos conceitos redutores.
Quando era adolescente havia um grupo de rock muito provocador que era os Krafwerk. Os Kraftwerk introduziram uma imagem no oposto da imagem do rockeiro. O rockeiro clássico – os Rolling Stones, por exemplo – é um xunga gadelhudo que cospe na mãe, arrota na ópera e papa a miúda do melhor amigo enquanto tira macacos do nariz. O que sempre me chateou nos Rolling Stones é que eles apenas ilustram a sua imagem, não me oferecem nenhuma surpresa.
O que eu gostava nos Kfraftwerk é que se apresentavam como jovens caixas do BCI, impolutos, de fato e gravata, e quando começavam a tocar tudo se desmanchava, era a grande loucura – que agia pelo inverso do que se estava à espera.
Os Rollings Stones era só a pulsão do corpo, aquela música é fisiologia pura, tal e qual eu a praticava quando era rockeiro e à noite urinava nas árvores. Os Kraftwerk traziam já um conceito – era como se os meus rins convertessem a urina em ouro, havia uma mudança de grau.
A poesia é essa mudança de grau, uma linguagem ao cubo, ou a revivescência das cinzas em que está atolada a linguagem no seu nível médio, segundo o Kafka (cf. A Louca da casa).
E só nos dá alguma coisa se lhe pagarmos o preço, o mito romântico do pacto com o diabo não existe em vão.
Tenho a certeza que o Luís Carlos Patraquim, que está ali sentado ao canto, adoraria não ser poeta e ser banqueiro. Eu também, dava tudo para trocar, e, diga-se, tenho uma inteligência extraordinária para os números, mas não consigo… eu quero mas não consigo, porque insensatamente me dispus a pagar um preço e agora a palavra deu-me as voltas e cravou-se-me na carne como um espinho, tou frito, não há meio de arrancar este espinho. Quem consegue é banqueiro.
Daí o corpo a corpo, o mano a mano, como se lê nestes dois excertos de um poema:
A CASA EM CHAMAS
7
«As trevas amargam o verso.
Grainhas que encordoam nas veias o sangue vivo das toranjas.
Porque tudo dá fruto.
Sonhei com um país de gagos.
Era o meu. Os gagos nasciam das árvores
E amavam-se lambendo o intervalo das sílabas.»
8
«O mano a mano: eu ergo o poema e Deus fuma-o, remexe a cinza no seu cinzeiro e sopra-a sem que a nívea nuvem lhe garrote os olhos, ou mude a ingenuidade da moeda que cai sempre de caras.
O mano a mano: rasuro o poema, onde havia plátanos brota o mirto, e Deus, para que não me faleça a música, mete a moeda na ranhura.
Calceta-me a esperança até a luz doer».
Quando era miúdo o meu pai começou a pintar. O meu pai que era tipógrafo foi a casa dum doutor e viu lá um quadro dum boi pintado à maneira dos impressionistas e ficou banzado. E exclamou: mas isto também eu faço.
Chegou a casa e foi comprar tintas e telas. E a primeira coisa que pintou foi um palácio. O que é isso pai, perguntei eu que nunca tinha visto um palácio na vida. E ele responde-me, é um boi. Quando eu fui a casa do dr., senti-me um boi a olhar para o palácio… Mas a casa do dr. era num palácio, perguntava eu sem perceber nada. Não, tinha lá um boi. Um boi dentro de casa, pai? Um quadro dum boi, e eu é que me senti um boi a olhar para o palácio porque nunca me tinha passado pela cabeça que fosse tão fácil. Por isso cheguei a casa e pus-me a pintar. E queria reproduzir aquele boi, mas só me sai o palácio.
Sem saber o meu pai tinha-me incutido a deslocação que se produz na arte, fazendo-me «descobrir aquilo sobre o qual se pode no poema, dizer que isto é como isso» (Badiou), ou seja que uma palavra significa noutra, respira nesse trânsito.
É o que faço neste poema de um só verso:
«Um vidro, enche de cerejas a mão».
Ou o que volto a fazer, ainda que de forma mais subtil, noutro poema com dois versos:
«Morre o vento de pura solidão
entre os plagiadores».
Ou no começo de um poema feito na Macaneta, olhando as ondas a rebentar na praia:
«É nítido, antes de rebentar, espreguiçam
as suas malhas de leopardo.»
Basta olhar para reparar as malhas de leopardo nas ondas, mas só a poesia nos dá a lente para «ver», o que é diferente de olhar. Outra nuance. A poesia ajuda-nos a duas coisas:
- a voltar a ver, isto é a detectar as intensidades no horizonte amorfo,
- e ajuda-nos a re-ligar o que parecia separado, a pele do leopardo na onda do mar.
Deus, se quiserem é esse padrão que re-liga tudo, dar-lhe um nome é que equivale a dar um passo de recuo para aquilo que separa.
Já a poesia é uma lente que, como dizia o brasileiro Mário Quintana, nos ajuda a fugir para a realidade.
Que livro é este, «Não se Emenda, a Chuva»? É o meu 5º livro de poesia, ainda que haja um deles, a Arte Negra, de 2000, que reúne outros 5 livros. E é um livro dum homem de 50 anos, de um homem maduro que já não procura o adjectivo brilhante a todo o custo e se preocupa agora mais com a rasura e alguma exactidão da palavra, sobretudo quando difere de mim. Até porque o mais excelso palácio não passa de um boi.
É um livro relativamente sereno ainda que condoído aqui e ali, como se vê neste verso:
«A minha vida progride como a sintaxe do gago».
O livro dialoga com a tempo, a morte, o amor, o sexo, a palavra, a arte, fala do álcool, do sangue – tudo o que deve ter um livro que se preze como num livro dum homem adulto.
Não seria ainda o livro que gostaria de ter dado a conhecer em primeiro lugar em Moçambique pois está armada de referências que pouco vos dizem, sendo um livro que se dirige mais a um certo leitor português de poesia, e medianamente informado dela, mas tem um ciclo de poema já com explícitas referências locais, Sete Facetas do Tempo entre os Corsários da Macaneta, e como vos disse o livro contém alguns poemas reflexivos sobre temas universais, a morte, o tempo, o amor, etc. Não dá para comer pipocas, mas não é mau.
Talvez ainda este ano saia em Maputo um volume que intitulará «Enumeração de todos os passos em falso» e que reunirá três livros inéditos, esses sim absolutamente mergulhados no Índico e nas paisagens dramas e gentes de Moçambique.
Por agora leio-vos três poemas, um sobre a morte, outro de um lirismo a contratempo e com algum humor, outro sobre as vilanias do desejo, outro sobre a família.
Dois poemas em torno da morte, do ciclo Talhão 83: as Lições de Pesca:
14
«O corpo que se enfia no crânio, lapidado
Por ideia fixa, o que se esconde debaixo
De uma telha ou no álgido miolo de uma nuvem
E daí nos acena com mãos invisíveis,
O corpo que já vibrou nas paletas
De um olhar caloroso e cativa agora
As vísceras de Deus, como o broto
Ceifado às primeiras geadas
Elucidam-te: cada vez que mata
A morte reencontra a sua infância,
Cada vez que te trespassa alguém tu
Perdes a tua. E afinal o que espanta
Na morte? O seu sigilo profissional.»
15
«A chuva pinga-te o rosto: ressalta na pedra.
Fecham à pressa o féretro e as pás afluem
A um monte que não é Sião. Talhão 83,
Numa planura de humores, como o teu, já frios.
Na cercadura de árvores, reconheço freixo, amieiros,
Tílias, e parodio o poder de nomear
Com que a vida esparge ilusões.
Neste mesmo recanto algures – não sei onde –
Enterram o meu pai, teu irmão.»
O poema de um lírico envergonhado, que é o que sou, com humor q.b:
(o segredo duma relação duradoura?)
«Quinzenalmente, após cem salvas suplicantes, evoco
Goytisolo, terra espúria, ingrata e mesquinha,
e alanco c’a botija do gás
(o vazio pesa mais que as palavras).
Vale é ser no prédio.
Rasgada e múltipla, a alma conta os passos.
Pela escada, a sua voz quase áfona não esquece o sermão:
recusa-as riscadas, sujas, com bolhas a estalar a tinta.
A botija tem de estar num brinco. Não sei
se imagina o gás mais dócil
em vestido novo, se o fogo liso, pronto a estrear,
se acha que o inferno se submeteu a um lifting.
Nunca perguntei e não regateio
o cheiro a hortelã que me espera, morto de cansaço».
E já agora outro, menos envergonhado:
«Ao fim de catorze anos de casamento, entregamo-nos
como duas crianças envergonhadas pelas suas faltas
e talvez por isso nos amemos…», leio
- como isto fala de nós, meu amor.
Descrever-te os pássaros na Macaneta?
Precisaria de ser o flautista de Hamelin, que pelo sopro arrastou ratos,
crianças, chaminés e soldadinhos de chumbo.
Mas olha, tinhas razão, devia ser proibido adormecer sem ter o mar por fundo.
Noutras condições parece-me sempre o amor modesto.
O poema sobre as santas vilanias do desejo:
Villon, as ocorrências menores
«Villon é testemunha ocular duma rixa
de que resulta um morto – a última coisa
sabida da sua biografia, por
falta de fontes ou de ser visto.
Até aí, no afogadilho de perseguir
galinhas no pátio para lhes torcer
a eloquência, correu atrás da vida.
Felizes os dias, ou mais audazes,
de quando se era ladrão e poeta,
e não esta acedia a prestações,
rendido o garamond ao decote
da macua que me desflora a sagres
em maninhos sonhos rupestres. Villon
há-de ser o nosso padrinho de casamento.»
Um poema que fotografa as dezasseis horas de cópula do gafanhoto:
Queriam! Adquiram o livro!
Até tem um poema que menciona o Napoleão – imagine-se!
O melhor poema do livro chama-se Um Rio Nada Doméstico, é uma narrativa articulada em 7 sonetos, mas também sobre esse fico caladinho, que é só para quem comprar livro - o que é justo.
E agora para os meus amigos bloguistas e os admiradores do Al Berto, um último brinde:
A LINHAGEM DE CAIM
Cunhou Caim na face interior do seu anel o primeiro dragoeiro que viu.
O espírito do Al Berto, que no céu voltou a desenhar, ajudou.
E Caim descobriu aí: não tinha deixado de sonhar.
À sombra da sua prole vicejou a domesticação dos animais, a música e a técnica.
Reponta no vértice dos espelhos a beladona?
Que emendar à perfídia da convalescença em que Caim nos nublou?
É trigo limpo: só em águas freáticas me abismo e troco Abel por Mozart.
Aproxima-se um ganso num afluxo de hostilidade? Rejubilo.
Da observação de tais desacatos despontou Homero.
E pago o preço, dispondo-me a morrer em Zanzibar.
E pronto, está apresentado.
E não digam nada disto ao Expresso, senão eles teriam que ter o trabalho de omitir.