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quarta-feira, 6 de setembro de 2023

A manhã de Verão


«A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca. 
«Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.»
Álvaro de Campos - «Ode marítima»

sábado, 7 de janeiro de 2023

«Come chocolates, pequena; Come chocolates!»


(Come chocolates, pequena; Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. 
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Álvaro de Campos - excerto de «Tabacaria»

Eu segui esta intimação de Pessoa e as três sardinhas já marcharam.

Para Justa.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Marcadores de livros - 405

Verso e reverso de um marcador.


Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rossio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja […]

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.
Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras —
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.

Álvaro de Campos
In Poesia, Ed. Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Revisitar um monumento e sítio...

Antes que o dia termine, e porque tenho saudades de Lisboa, neste Dia Internacional  dos Monumentos e Sítios deixo a Sé de Lisboa como um sítio a revisitar.





Lisboa com suas casas

Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.
Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos.
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.
Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.
11-5-1934

Álvaro de Campos, Poesias. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). p. 52.

sábado, 13 de junho de 2015

Tavira

Tavira, 30-31 maio 2015

Cheguei finalmente à vila da minha infância.
Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei.
(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado).
Tudo é velho onde fui novo.
Desde já — outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos prédios —
Um automóvel que nunca vi (não os havia antes)
Estagna amarelo escuro ante uma porta entreaberta.
Tudo é velho onde fui novo.
Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.
A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.
Paro diante da paisagem, e o que vejo sou eu.
Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos — Senhor do mundo —
É aos 41 que desembarco do comboio [indolentão?].
O que conquistei? Nada.
Nada, aliás, tenho a valer conquistado.
Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala...
De repente avanço seguro, resolutamente.
Passou roda a minha hesitação
Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira.
(Estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada)
Sou forasteiro tourist, transeunte.
E claro: é isso que sou.
Até em mim, meu Deus, até em mim.

8-12-1931
Álvaro de Campos
In: Fernando Pessoa - Livro de Versos. Intr., transcr., org. e notas de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1993

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Cartas

Não conheço este livro mas gostava de o ler para ver se
 "todas as cartas de amor são ridículas".
Um dia feliz!


Todas as cartas de amor 

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).

21-10-1935
Álvaro de Campos

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). p. 84.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Comemorações


Carta de Álvaro de Campos para o DN,  4 de Junho de 1915. Retirado do:
O BLOGUE DA CASA FERNANDO PESSOA COM NOTÍCIAS DE POESIA E LITERATURA


«A assinalar os 150 anos sobre o aparecimento do Diário de Notícias poder-se-iam escolher vários artigos que, ao longo dos anos, em vida ou póstumos, foram publicados sobre Fernando Pessoa. No entanto, já pensando no centenário da revista Orpheu em 2015, fica a referência à carta datada de 4 de Junho de 1915 em que Pessoa se dirige ao director do jornal, sob o heterónimo de Álvaro de Campos, esclarecendo e contextualizando alguns aspectos relacionados com aquela, nomeadamente no que toca à sua definição como futurista.

Esta carta, publicada na colecção Obra Essencial de Fernando Pessoa, da Assírio & Alvim, no volume Prosa publicada em vida com edição de Richard Zenith, está disponível para consulta na Biblioteca da Casa Fernando Pessoa»

domingo, 30 de novembro de 2014

Do Poeta que faleceu há 79 anos

Lisboa: Clube do Autor, 2014

Sozinho no cais deserto, a esta manhã de verão,
Olho pro lado da barra, olho pelo Indefinido,
Olho e contentaa-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
[...]
Olho de longe o paquete, com uma grande independência e alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
[...]

Álvaro de Campos

Uma bela edição que agora já podemos oferecer a alguém que domine o inglês. :)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O combate do Carnaval e da Quaresma

Pieter Brueghel O Velho, O combate do Carnaval e da Quaresma, 1559




Detalhe Óleo sobre tela, Kunsthistorisches Musem, Viena.



O carnaval visto por Álvaro de Campos



CARNAVAL [a] (trecho)

A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira...

A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões atrás da alegria
Duma plebe farsante e copiosa...

Cada momento é um carnaval imenso
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisto maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso

De mais... Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver onde é que tem o pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça...

(...)
s.d.

Álvaro de Campos, Livro de Versos, (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993, 7a.


Agradeço à Cláudia Ribeiro que me enviou esta imagem e ao Luís que a colocou.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Aviso por causa da moral

Lisboa: Typ. Annuario Commercial, 1923, 1 folha

«O Aviso por causa da moral (Lisboa, 1923) - manifesto assinado por Álvaro de Campos  distribuído em folha solta pelas ruas de Lisboa - foi escrito em resposta à Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, organização de feição católica e conservadora, que, a propósito da reedicação das Canções de António Botto, emias proximamente, da Sodoma Divinizada de Raul Leal, desencadeou uma campanha "moralizadora" com apelos às autoridades para que exercessem, como efectivamente vieram a exercer, repressão sobre tal "literatura de sodoma". Significativo o modo como é datado - "Europa, 1923" - este manifesto dirigido aos "moços da vida das escolas" que "intrometem-se com os escritores que não passam opela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam".»
João Rui de Sousa
In: Fernando Pessoa: Fotobibliografia: 1902-1935. Lisboa: Imp. Nac.-Casa da Moeda: Biblioteca Nacional, 1988, p. 100

2.ª ed. muito aum. Lisboa: Olisipo, 1922
Lisboa: Olisipo, 1923
(A Olisipo era uma editora de Fernando Pessoa)

E o que dizia o manifesto da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, que João Rui de Sousa refere? O seguinte, à boa maneira inquisitorial:
«Não vimos tratar de política, nem trazemos também um novo programa de partido, pronto a salvar o país.
«Simplesmente, na nossa função de trabalhadores do Espírito e de soldados da Ciência, entendemos que é chegado o momento do erguermos a nossa voz para ser escutada por todos aqueles que a possam compreender.
«A situação de Portugal é desgraçada.
«Profundamente e totalmente.
«A nós, fere-nos mais de perto, na nossa sensibilidade, a parte moral e intelectual da derrocada que nos rodeia.
«É dela que vimos falar.
«Não queremos agora aprofundar causas ou apontar responsabilidades. Basta que constatemos os factos e apontemos o caminho a seguir.
«De dia para dia o mal é mais fundo e mais avassalador. Derrubaram-se todas as fronteiras do espírito entre a inteligência e a loucura, entre a beleza e a perversão.
«Mascarados em mil hipocrisias literárias, em pseudofilosofias extravagantes, encobrindo a sua animalidade em frágeis farrapos de escolas inverosímeis, todos os baixos instintos humanos, numa liberdade desvairada, se erguem, alastram, dominam como flores de pântano no crepúsculo triste duma terra abandonada.
«É contra essa dispersão, contra essa inversão da inteligência, da moral e da sensibilidade, que nós gritamos numa revolta sagrada da nossa dignidade de homens, o protesto vibrante dos que não deixam cerrar os seus olhos à luz da Verdade.
«Já não se paira, por desgraça, no campo das atitudes snobs e literárias. Atingiu-se a última abominação, aquela que nas tradições bíblicas fazia chover o fogo do céu.
«Urge a reacção pronta e implacável. À frente dela se levanta a nossa mocidade forte e resoluta. Nas nossas mãos brandimos o ferro em brasa que cicatriza as chagas.
«A quem manda nós apontamos hoje a necessidade imperiosa de fazer justiça. É preciso que os livreiros honrados expulsem das suas casas os livros torpes. É necessário que os adeptos da infâmia caiam sob a alçada da lei, que um movimento enérgico de repressão castigue em nome do bem público.
«Que a justiça venha e implacável!»

Mas esta polémica não ficou por aqui. Teve seguimento.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Praias de Portugal - 14. b)


Almada Negreiros - Álvaro de Campos,1958
Lisboa, Mural entrada da Faculdade de Letras

«Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. [...]
«Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada [...]; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo [...]. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.»
Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, 13 Jan. 1935

E agora uns postais da cidade natal de Álvaro de Campos:

terça-feira, 19 de abril de 2011

O Melodioso Sistema do Universo

Na celebração do terceiro aniversário do Prosimetron a minha escolha vai para Álvaro de Campos e Marc Chagall. Parabéns Prosimetron!


Marc Chagall, Four Tales from de Arabian Nights:

The Tale of Ebony Horse, nº 3, 1948




O Melodioso sistema do Universo

O melodioso sistema do Universo,
O grande festival pagão de haver o sol e a lua
E a titânica dança das estações
E o ritmo plácido das eclípticas
Mandando tudo estar calado.
E atender apenas ao brilho exterior do Universo.

Álvaro de Campos, In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002 (Casa Fernando Pessoa)

domingo, 13 de junho de 2010

Em torno de dois Fernandos!

Fernando Bulhões, Santo António, é hoje festejado em Lisboa. É em sua memória e homenagem que deixo um fragmento de um Sermão proferido na Igreja de Santo António dos Portugueses. Esta igreja é muito especial, pois, vivi junto dela, ouvi alguns concertos e passei alguns dos melhores silêncios de Roma.
x
Santo António na Literatura e Artes Portuguesas
(Conferência proferida a 6 de Junho de 1935, por Júlio Eduardo dos Santos, Vogal da
Sub-Comissão da Exposição Antoniana,
ilustrada, com declamação de trechos alusivos, pelo Professor Artur Lobo de Campos)


As imagens foram retiradas de um documento em pdf, digitalizado da BNP
x
Fernando Pessoa nasceu a 13 de Junho de 1888 em Lisboa. Também ele de nome Fernando tem, para mim, um lugar muito especial pois, é o meu poeta preferido. Hoje vesti-lhe a pele de Álvaro de Campos.
Não quis procurar um texto filosófico para não juntar o ensaio ao sermão dois discursos paralelos.

Tabacaria, declamação de João Villaret



sábado, 27 de fevereiro de 2010

«Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra...»


Gravura de W. H. Burnett (fl. ca 1830-1860)
http://purl.pt/5544

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em [Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem [consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da [vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é [feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que [está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada [real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da [cozinha
No pavimento térreo, Sou qualquer coisa do príncipe de todo o [coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me [perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel [emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei [ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

Álvaro de Campos
In: Poesia. Lisboa: Ática, s.d., p. 37-39

domingo, 6 de setembro de 2009

Que noite serena!

Que noite serena!
Que lindo luar!
Que linda barquinha
Bailando no mar!

Suave todo o passado - o que foi aqui de Lisboa - me surge...
O terceiro-andar das tias, o sossego de outrora,
Sossego de várias espécies,
A infância sem o futuro pensado,
O ruído aparentemente contínuo da máquina de costura delas,
E tudo bom e a horas,
De um bem e de um a-horas próprio, hoje morto.

Meu Deus, que fiz eu da vida?

Que noite serena, etc.

Quem é que cantava isso?
Isso estava lá.
Lembro-me mas esqueço.
E dói, dói, dói...

Por amor de Deus, parem com isso dentro da minha cabeça.

Álvaro de Campos
In: Poesias. Lisboa: Ática, s.d., p. 121-122

A primeira quadra era citada num livro que acabei de ler hoje.
Dizem que Álvaro de Campos é o Pessoa preferido pelas mulheres. É o meu caso, para além, claro, de Bernardo Soares.

sábado, 21 de março de 2009

Dia da Poesia I - Ode Marítima, Álvaro de Campos.

Ode Marítima

(…)

Ergue-se uma leve brisa marítima dentro de mim.
Às vezes ela cantava a «Nau Catrineta»:

Lá vai a Nau Catrineta
Por sobre as águas do mar…

E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a «a Bela Infanta» … Relembro, e a pobre velha ergue-se dentro
de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela, depois, e ela amava-me
Tanto!
Como fui ingrato para ela – e afinal que fiz eu da vida?
Era a «Bela Infanta»… Eu fechava os olhos, e ela cantava:

Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada…


Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.

Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada,
Seu pente de ouro na mão,
Seus cabelos penteava…

Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!

Não poder viajar para o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!

(…)

Fernando Pessoa, Poesia de Álvaro de Campos, Lisboa: Planeta DeAgostini, 2002, p.85-86.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Poesia com Máscaras, Álvaro de Campos!

Pierrot em Veneza e a Máscara de Álvaro de Campos.

Todos usamos uma máscara não é preciso ser Carnaval!
*******
Depus a máscara e vi-me ao espelho.
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha

Álvaro de Campos, POESIAS, Editorial Nova Ática.