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segunda-feira, outubro 02, 2006

JOSEPH BRODSKY

JOSEPH BRODSKY (Leninegrado/São Petersburgo, 1940 – Nova Iorque, 1996) viveu 56 anos. Encontra-se sepultado no cemitério da ilha de San Michelle, em Veneza, perto de outros dois russos ilustres, Diaghliev e Stravinsky, que cedo trocaram o país de origem por uma vida pela Europa. Posso-vos também dizer que vive a 24 passos (dos meus) de Ezra Pound. Na sua poesia, galardoada com o Nobel da Literatura em 1987 e muito celebrada nos Estados Unidos, coexistem os assuntos do tempo (o futuro) e do espaço (a cidade), da dignidade e da política, do amor e da morte – disso são exemplo os poemas que se seguem. As suas metáforas, escreve Carlos Leite, tradutor português de Brodsky, “geralmente não são precisas em termos visuais, mas improváveis, exageradas, implausíveis mesmo. Decorrem mais da persistência do pensamento, da dificuldade de pensar, do que do simples olhar, fotográfico ou contemplativo.” Amigo de W. H. Auden, que o acolheu em Londres aquando da sua expulsão da União Soviética em 1972, é talvez dele a maior influência, nomeadamente a partir do seu período americano em que, a par da escrita de poemas em russo, também o faz em língua inglesa. Pode mesmo reconhecer-se em Brodsky uma rima muito Audeniana. Eis, com a devida vénia, dois exemplos retirados do livro “Paisagem Com Inundação”, traduzido por Carlos Leite para as Edições Cotovia, em 2001, o primeiro vertido do russo, o segundo do inglês:


M.B.

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

1989


§


PARA A MINHA FILHA

Dai-me outra vida e estarei no Caffè Rafaella
a cantar. Ou estarei sentado a uma mesa,
simplesmente. Ou de pé, como um móvel no corredor,
caso essa vida seja menos generosa que a anterior.

Contudo, em parte porque nenhum século daqui em diante
conseguirá passar sem jazz nem cafeína, aguentarei esse desplante,
e pelas minhas rachas e poros, verniz e todo de pó coberto,
observarei, daqui a vinte anos, como a tua flor se terá aberto.

De um modo geral, lembra-te de que estou por ali. Ou melhor, que
um objecto inanimado pode ser o teu pai, sobretudo se
os objectos forem mais velhos do que tu, ou maiores. Não
os percas de vista, pois, sem dúvida, te julgarão.

Seja como for, ama essas coisas, haja ou não encontro.
Além disso, pode ser que ainda te lembres duma silhueta, dum contorno,
ao passo que eu até isso perderei, juntamente com a restante bagagem.
Daí estes versos, algo toscos, na nossa comum linguagem.


1994


quinta-feira, janeiro 05, 2006

DANIIL HARMS


CADERNO AZUL Nº 10
Era uma vez um homem ruivo, sem olhos nem orelhas. Também não tinha cabelos, e só por convenção lhe chamávamos ruivo.
Não podia falar porque não tinha boca. E nariz também não.
Nem sequer tinha braços e pernas. Também não tinha barriga, nem coluna vertebral, nem mesmo entranhas. Não tinha coisa nenhuma! Por isso pergunto de quem estamos nós a falar.
Desta forma é preferível nada acrescentarmos a seu respeito.


É este o texto que abre o livro “Crónicas da Razão Louca”, que a Hiena Editora publicou em 1994, numa tradução de Sérgio Moita. DANILL HARMS (1905-1941) é um daqueles autores que qualquer leitor rejubila ao descobrir. Daniil Ivanovich Yuvachev ou Iurachov (de pseudónimo Daniil Harms ou Daniil Kharms ou ainda Daniil Charms) nasceu em S. Petersburgo no Inverno de 1905, e morreu à fome na prisão da mesma cidade no Inverno de 1942. Foi sempre difícil o seu relacionamento com as autoridades e as instituições. Em 1924 ingressou no Electrotechnicum da então Leninegrado, de onde foi expulso por “falta de participação nas actividades sociais”. Nos anos 30, quando a literatura soviética estava a dar sinais de se querer tornar cada vez mais conservadora, sob os auspícios do realismo soviético, Harms encontra refúgio na literatura para crianças. Danill procurou sempre ser sensivel às vanguardas no efervescente meio literário de S. Petersburgo. As suas pequenas histórias para adultos, porém, só viriam a ser publicadas duas a três décadas após a sua morte. São tipicamente curtos episódios de escassos parágrafos onde cenas de privação social ou pobreza alternam com apontamentos fantásticos e oníricas, frequentemente humorísticos e incongruentes. O mundo de Harms é, assim, imprevisível e desordenado, irracional e inexplicável. No post sobre a ironia prometi falar sobre ele: eis mais uma história que começa de forma aparentemente linear mas imediatamente é levada pelos inexplicáveis caminhos do absurdo.


SINFONIA Nº2
Anton Mikhailovich escarrou, fez «ah», voltou a escarrar, fez outra vez «ah» e foi-se embora. Tanto pior para ele! Vou antes falar de Ilia Pavlovich.
Ilia Pavlovich nasceu em 1893, em Constantinopla. Pequeno ainda, levaram-no para S. Petersburgo, onde concluiu estudos na escola alemã da rua Kirochnaia. Depois trabalhou numa loja, depois fez outra coisa qualquer, e quando começou a revolução emigrou para o estrangeiro. Olhem, tanto pior para ele! Vou antes falar de Anna Ignatieva.
Mas falar de Anna Ignatieva não é assim tão simples. Começa por que não sei nada dela, e depois acabo de cair da cadeira e esqueci tudo quanto tinha para contar. Vou antes falar de mim.
Sou alto, não sou nada parvo, visto com elegância e gosto, não bebo, não vou às corridas mas tenho um fraco por mulheres. E as mulheres não fogem de mim. Gostam mesmo que dê passeios com elas. Serafina Izmailovna convidou-me mais do que uma vez para ir a casa dela, e Zinaida Iakolevna também costumava afirmar que tinha muito prazer em ver-me. Com Marina Petrovna é que se passou uma coisa divertida, que desejo contar. Uma coisa banalíssima mas ainda assim divertida. Marina Petrovna ficou completamente careca por minha causa, careca como um ovo. O facto deu-se desta forma: um dia fui a casa de Marina Petrovna, e ela «zás!», completamente careca. Só isto.


E «zás!», é isto! O que os surrealistas franceses gostariam de o ter conhecido...