Bula
A literatura, sabemos bem, é uma
disciplina da saúde. Claramente do universo da profilaxia, a literatura faz
parte da nutrição, implica com as vitaminas, com o magnésio, o ferro, tem que
ver com a robustez cardíaca. Alguns livros, defendo muito, são produtos de
farmácia, deviam ser receitados nos hospitais e trazer bulas detalhadas que
responsabilizassem os cidadãos para a urgência de ler. O mundo dos livros, no
mínimo, tem de ser visto com o cuidado preocupadíssimo com que lidamos com a
frescura dos legumes, o prazo dos iogurtes ou o comportamento dos ovos numa
taça de água. Quem acha que vive bem das tensões, do colesterol ou da diabetes
sem ler livros está enganado.
Quando Antoine de Saint-Exupéry,
em 1943, publicou O Principezinho, estava, talvez sem o haver completamente
percebido, a oferecer ao mundo uma das obras mais cuidadoras de sempre.
Cuidadora no sentido importante do humanismo, capaz de transformar existências
sem profundidade em gente, como se, da forma mais simples, soubesse solucionar
conflitos e impasses, deixando o leitor num estado de franca redenção. A
leitura nem sempre redime e a realidade não é passível de ser explicada ou
iludida por qualquer palavra, mas o que acontece é que, embora raramente, há
livros que se colocam como aquele metal fundente entre as pessoas. São
inclusões, distribuem direitos, proporcionam a igualdade possível.
Ler e reler O Principezinho é uma
tarefa de felicidade. A sua candura é toda ela inteligente contra qualquer
ceticismo, derrotismo, hipocrisia ou maldade. Porque não se trata de um livro
para crianças, trata-se de um livro para todas as pessoas, inclusive crianças.
Frequentemente considerada a mais importante obra de língua francesa do século
XX, uma das mais traduzidas e vendidas da história da Humanidade, o encontro de
um aviador com um encantador desconhecido e a transformação do acaso numa
profunda amizade têm moldado os sonhos e os gestos de milhões de leitores.
Claramente inspirado na
experiência pessoal de Saint-Exupéry enquanto piloto, e impressionado com o
terror nazi que à época transformava a Europa e o mundo num lugar horrendo, O
Principezinho é uma reclamação de liberdade, um manifesto de dignidade que
funciona pela sua simplicidade aparente. Feito de filosofia, a maturidade do
autor levou ao texto essa glória de verdadeiramente iluminar. Ele conta-nos
acerca do fundamental de acreditar e do quanto só se justificam as
oportunidades pela limpidez de carácter.
A edição que a Porto Editora
agora apresenta é de um rigor medicinal. Repõe-se a versão original (por
exemplo, o astrónomo volta a ver a estrelinha que desaparecera das edições
portuguesas e o asteroide passa a ter o nome corrigido), que é o mesmo que
dizer que se repõe em todo o esplendor essa inesgotável energia perplexa e
apaixonada de que Antoine de Saint-Exupéry foi capaz. E os tempos não podiam
urgir mais por um regresso em força a esta aventura. Se é verdade que a
política traz cada vez menos esperança ás pessoas, é cada vez mais certo que
nos devemos balizar a partir da grande memória do que já se aprendeu, e da
profunda sabedoria do mundo faz parte este livro. Deitar-lhe a mão é deitar a
mão à oportunidade de melhorar.
Valter Hugo Mãe
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