Algumas reacções a este post e subsequentes discussões faziam uma interpretação demasiado simplista das minhas observações críticas relativas à prática da retenção. Aparentemente, seria a retenção a 'culpada' dos maus resultados, e não um mero sintoma e, ao mesmo tempo, uma estratégia de luta contra estes. Se acabássemos com a retenção, parecia, tudo estaria resolvido. Esta é, naturalmente, uma leitura distorcida do que estava implícito no meu post. Mas porque o que está implícito presta-se sempre à caricatura, é melhor tornar o que penso explícito.
Perante o facto A - o nosso sistema educativo abusa da retenção - e o facto B - isso não parece resolver problema nenhum, porque os alunos com dificuldades continuam com dificuldades, até, por vezes, ao ponto em que abandonam a escola - é preciso perguntar: porque é que o factos A e B têm a expressão que têm em Portugal (ao contrário do que acontece na maioria dos países europeus)? São muitas as variáveis em jogo neste processo. O melhor a fazer é tentar identificá-las e partir o processo às 'fatias'. Podia explanar a hipótese relativa ao que alguns autores chama "cultura da retenção" na classe docente. Deixo essa hipótese para outro post. Para o que vou dizer a seguir, apenas assumo a existência deste factor (já sei, já sei: este é outro 'implícito' que vai gerar discussão - tema para outro post).
Aqui, desenvolvo a hipótese de que a forma como o nosso sistema de ensino está desenhado acaba por legitimar e contribuir, de forma não-intencional, para o uso excessivo e naturalizado da retenção, dado que as vias alternativas que podiam ser usadas para diferenciar e seleccionar os alunos no interior do sistema - disponíveis em outros países - estão ausentes do nosso.
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A gestão da heterogeneidade social que é consequência inevitável do processo de democratização do ensino secundário (entendido aqui como o lower e o upper secondary, que no sistema português correspondem ao 3.º ciclo do ensino básico e ao ensino secundário, respectivamente) está no centro das tensões inscritas na dicotomia entre selecção e igualdade. A ideia de democratização funciona como um compromisso instável para a tensão entre a função selectiva e a função igualitarista da escola. Existem, por isso, dois sentidos distintos da democratização: um que pende para o pólo selectivo, ancorado no ideal de igualdade de acesso, de oportunidades e de tratamento que garante sucesso [apenas] aos melhores, segundo uma concepção meritocrática da justiça; ou para o pólo igualitário, ancorado no ideal de igualdade de resultados ou de conhecimentos e competências adquiridas, segundo uma concepção correctiva da justiça.
No passado, antes da massificação do sistema, a selecção escolar e social era feita de modo quase-automático: seleccionar significava restringir fortemente o acesso do grande número de estudantes oriundos do ciclos inferiores do básico ao seu último ciclo e ao ensino secundário. Esta situação mudou, e em muitos dos sistemas dos países mais prósperos a democratização quantitativa foi sendo progressivamente com a expansão rápida dos sistemas a ter lugar nos anos 60 e 70 do século passado (e um pouco mais tardiamente em Portugal). Este processo teve como consequência o aumento da tensão no interior do sistema de ensino, em virtude da heterogeneidade social dos alunos que passam a aceder em massa ao ensino secundário. A mudança fundamental é que a selecção passa a ter de operar no interior do sistema educativo, e não às suas portas.
Em alguns países (em particular, os da Europa do Norte), o momento diferenciador do ponto de vista estrutural foi 'empurrado' para uma fase posterior à escolaridade obrigatória (para os últimos 2/3 anos do ensino secundário), separando claramente a escolaridade de base da escolaridade de especialização. No entanto, na maioria dos países a selecção desenvolveu-se no interior da escolaridade obrigatória. Ou seja, a abertura massificadora do sistema, quando não separa claramente a escolaridade de base da de especialização (garantindo que a selecção é diferida da primeira para a segunda) tende a ser acompanhada de medidas de diferenciação dos alunos internas a sistema assente em bifurcações mais ou menos explícitas. Esta selecção dos alunos em função dos seus conhecimentos e competências, sabemos bem, está mais ou menos fortemente articulada com a gestão de públicos socialmente heterogéneos.
Quando Albert Hirschman propôs o esquema lealdade-saída-voz no seu ensaio de 1970, o sistema educativo aparecia como perspectivado a partir das famílias. O que fazer quando estas estão insatisfeitas com a qualidade do ensino - isto é, quando a lealdade face ao sistema e os seus actores está em crise? Existem duas opções: protestar (colocando pressão sobre o corpo docente, questionando as suas práticas, critérios, etc.) ou sair (isto é, escolher outra escola, se o sistema permitir). Desta lógica decorre que, quanto mais fácil e mais adoptada é hipótese da 'saída', menos qualidade terão os mecanismos de diálogo, de cooperação, de debate ou de pressão que caracterizam diferentes variantes da hipótese de 'voz'.
Usemos o raciocínio de Hirschman agora de ponto de vista da relação 'professor-aluno'. O que acontece quando um professor perde, se não a ‘lealdade’, pelo menos a cumplicidade - cultural, comunicacional ou, genericamente, de ‘classe’ - que existia nos sistemas educativos altamente selectivos do passado, quando as salas de aula eram, a partir de um dado nível de ensino, povoadas pelos héritiers e pelos boursiers descritos por Bourdieu e Passeron nos anos 60? Quando o aluno não conhece e respeita o seu métier, revelando dificuldades de aprendizagem e/ou disciplina, o professor (ou a escola, enquanto organização de um colectivo de profissionais) tem, basicamente, duas hipóteses: mudar de estratégia pedagógica (o equivalente, no esquema original, do ‘protesto’); ou, na variante da 'saída', orientá-lo para fileiras ou turmas que julga mais consentâneas com o seu valor ou retê-lo – produzindo, em qualquer das situações, o que é inevitavelmente uma exclusão (mesmo que tenha uma justificação pedagógica), porque impede o aluno de prosseguir a sua escolaridade de forma normal. Na lógica do esquema do Hirschman, quanto mais fácil é a 'saída', mais fraca é a 'voz': quanto mais fácil é a decisão de excluir o aluno do percurso 'normal' do sistema, menos qualidade terão as estratégias alternativas de apoio aos estudantes com maiores dificuldades de aprendizagem e mais fracos desempenhos para evitar essa mesma saída.
Tendo em conta que os sistemas educativos nacionais são diferenciados, permitindo percursos escolares mais ou menos heterogéneos, podemos, de forma geral, identificar quatro principais estratégias de diferenciação* (que não devem ser vistas como mutuamente exclusivas):
(1) a diversificação escolar precoce através da orientação em direcção a fileiras ou troncos alternativos do ensino secundário inferior, isto é, antes do final da escolaridade obrigatória; podemos dividir as formas de diversificação escolar precoce em formas estruturais (na Alemanha e na Áustria a diversificação escolar precoce inicia-se aos 10 anos; na Holanda, Bélgica e Irlanda, aos 12) e institucionais (o último ciclo do básico segue um programa comum, como na Holanda, mas decorre em escolas diferentes).
O relatório do PISA2006 chama a atenção para a forma como a diversificação escolar precoce dos alunos potencia o efeito das desigualdades sócio-económicas de partida: «institutional tracking is closely related to the impact which socio-economic background has on student performance: the earlier student are stratified into separate institutions or programmes, the stronger is the impact which the school’s average socio-economic has on performance» (p.228).
(2) a escolha de escola pelas famílias. Sobre este instrumento de diferenciação, a OCDE - organização insuspeita de esquerdismo - chama a atenção:
«- School choice may pose risks to equity since well-educated parents may make shrewder choices. Better-off parents have the resources to exploit choice, and academic selection tends to accelerate the progress of those who have already gained the best start in life from their parents.
- Across countries, greater choice in school systems is associated with larger differences in the social composition of different schools.» (p.78-9)
E recomenda:
«- School choice poses risks to equity and requires careful management, in particular to ensure that it does not result in increased differences in the social composition of different schools.
- Given school choice, oversubscribed schools need ways to ensure an even social mix in schools – for example selection methods such as lottery arrangements. Financial premiums to schools attracting disadvantaged pupils may also help.» (p.79)
(3) a distribuição dos alunos no interior das escolas, por turmas; esta situação pode decorrer de práticas explícitas (como em França, onde nos dois últimos anos do collège há uma diferenciação curricular, prefigurando as trajectórias futuras dos alunos, embora estes se mantenham na mesma escola; ou em Inglaterra, onde o grouping by ability faz parte das orientações políticas centrais), ou práticas mais ou menos escondidas (porque contra as orientações centrais dos Ministérios da Educação), em percursos ditos comuns, sob a designação de opções ou de percursos de orientação.
(4) a retenção.
Ora, num sistema como o português, as alternativas (1) e (2) não são reais opções. A unificação do ensino básico impede a diferenciação precoce – a opção (1) – enquanto que a escolha de escola pelos pais – a opção (2) - é, em Portugal, muito limitada no ensino público. Talvez isto explique que, no PISA2006, em Portugal, as diferenças entre as escolas sejam relativamente fracas no desempenho dos estudantes: entre dois estudantes com o mesmo background sócio-económico, um que esteja numa escola ‘boa’ e noutro numa escola ‘má’, o primeiro ganha apenas 16 pontos de desempenho em ciências ao segundo.
Assim, a diferenciação dos estudantes parece fazer mais dentro da escola do que entre as escolas – que é a estratégia (3), mais invisível à diferenciação estrutural, e por isso mais difícil de observar sem estudos mais aproximados à realidade dos estabelecimentos (no entanto, um dado do PISA indicia uma diferença importante entre as competências dos estudantes no interior da mesma escola: Portugal é o quarto país dos 57 participantes no PISA2006 com maior diferença de resultados entre as escolas com no ability grouping ou ability grouping for some subjects e aquelas com ability grouping for all subjects, depois da Eslovénia, o Reino Unido e a Argentina, com uma diferença de cerca de 30 pontos).
Independentemente do uso generalizado ou não da estratégia (3) para reduzir a heterogeneidade dos alunos no interior das escolas, a estratégia (4) acabou se tornar a forma escolhida para reduzir as tensões inscritas num sistema que, por força do universalismo, tem de aceitar no seu interior alunos socialmente muito heterogéneos: esta generalização ao longo do tempo transformou a retenção no mecanismo regulador e de diferenciação interna do sistema, alimentando o seu carácter selectivo.
Até aqui falei de uma causa possível da prática generalizada da retenção. Agora vale a pena falar dos seus efeitos:
- saída precoce do aluno do sistema: a consequência mais directa de retenção, em particular quando visa o mesmo aluno mais do que uma vez, é aumentar a probabilidade que aquele abandone o sistema sem completar a escolaridade obrigatória ou o ensino secundário. A retenção de um aluno, sobretudo quando ela se verifica muito cedo na sua escolaridade, é demasiadas vezes o início de um percurso de insucesso marcado por sucessivas retenções em anos seguintes que vão ditar, mais cedo ou mais tarde, a sua saída do sistema educativo. Uma escola que retém o aluno uma, duas, três ou mais vezes tem, aos seus olhos, muito pouco para lhe dar, para além da experiência repetida do insucesso e da sanção oficial da sua incapacidade para aprender o que a larga maioria das crianças/jovens da sua idade são capazes. Este fenómeno tem um impacto muito forte sobre os níveis de equidade do sistema educativo: dado que sabemos que a retenção (e o abandono escolar) atinge(m) na sua grande maioria os filhos de famílias com fracos recursos culturais e económicos, o seu uso generalizado contribui, a longo prazo, para a reprodução intergeracional da desigualdade na que é a sociedade mais desigual da UE.
- o efeito dominó na reprodução das desigualdades e da pobreza: na medida em que a retenção é um dos mecanismos centrais na saída precoce e na saída antecipada do sistema de ensino, ela contribui, indirectamente e a prazo, para a reprodução das desigualdades sociais e para a das situações de vulnerabilidade social e económica dos trabalhadores com baixas qualificações. Dados relativos à União Europeia-15 mostram a forte correlação entre a saída precoce do sistema de ensino e o risco de pobreza. O mecanismo envolvido neste processo é bem descrito pela ideia de “equilíbrio de baixas competências/qualificações” (low skill equilibrium): uma parte significativa do mercado de trabalho nacional alimenta-se (e depende) de mão-de-obra pouco qualificada e ao mesmo tempo funciona como uma força atractora de alunos com fraco desempenho escolar, poucas perspectivas de futuro académico e desejosos da sua 'autonomia' que conseguem com o primeiro salário.
- adiamento da introdução de práticas pedagógicas mais efectivas: um terceiro efeito menos óbvio, mas muito importante à luz do que sabemos pelo trabalho de análise comparativa dos sistemas educativos. Assim, há muito que alguns países europeus tomaram a decisão de eliminar a retenção como estratégia ao dispor do corpo docente para gerir os alunos com dificuldades de aprendizagem. A solução encontrada por estes sistemas educativos não foi, naturalmente, a de substituir a prática da retenção pela simples passagem administrativa dos alunos sem contrapartida nem mudanças nas estratégias de ensino; se assim fosse, não seria possível que os seus alunos apresentassem melhores resultados que os portugueses em provas internacionais de desempenho como o PISA (caso exemplar é o da Finlândia, cujo sistema não recorre à retenção, e cujos alunos ocupam o topo dos resultados nas provas do PISA2006). O abandono da retenção levou, antes, ao desenvolvimento progressivo de processos e técnicas pedagógicas que não fazem assentar a sua eficácia na 'ameaça' de que, se o aluno não tiver aproveitamento, deve ficar retido, mas sim num acompanhamento mais individualizado e atento aos primeiros sinais de dificuldade na aprendizagem, capaz de colocar em prática planos de recuperação adaptado aos problemas de cada aluno.
Ora, em Portugal há muito que vivemos as consequências de a situação ser a inversa. Enquanto que os países que abandonaram a estratégia da retenção foram obrigados a encontrar soluções alternativas para fazerem os alunos aprender os conhecimentos e competências que fazem parte da escolaridade obrigatória, a generalização, entre nós, do uso excessivo da retenção como estratégia privilegiada para lidar com os alunos com mais dificuldades retardou o desenvolvimento de estratégias alternativas, pedagogicamente mais eficazes. Encontramos aqui de novo o esquema de Hirschman: quanto mais fácil a estratégia de 'saída', mais fracas serão as abordagens alternativas de resolução de um dado problema.
Este terceiro efeito é de extraordinária importância porque não se trata apenas de um efeito: ele é também causa da reprodução da prática em causa. Ou seja, a retenção não é apenas a resposta à existencia de alunos com dificuldades; é também a resposta rotineira à inexistência de estratégias e abordagens eficazes que possam substituí-la na sua missão que deve ser pedagógica e não selectiva. Quanto mais fácil é (ab)usar (d)e uma prática, mais difícil é substituí-la por outra - mesmo que esta seja mais equitativa e mais eficiente para o aluno e para o sistema.
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terça-feira, 1 de julho de 2008
sábado, 28 de junho de 2008
Anunciado o fim da retenção em França
Em função das discussões dos últimos dias neste e noutros blogues, deixo, por curiosidade, a notícia: o ministro da educação francês, Xavier Darcos, anunciou o fim da retenção como instrumento pedagógico ao dispor do corpo docente para lidar com os alunos com dificuldades de aprendizagem.
quarta-feira, 25 de junho de 2008
Para romper de vez com a reprodução social
Ao longo destas últimas quatro décadas o binómio democratização/igualdade de oportunidades ainda não foi plenamente resolvido pela escola e pela maior parte dos sistemas educativos dos países ocidentais. Se inicialmente se pensou que a mera generalização do acesso à educação institucionalizada por parte de todas crianças, independentemente da suas origens sociais, permitiria uma atenuação considerável da desigualdades, logo se percebeu, designadamente por intermédio dos estudos em sociologia da educação (e, em particular, a partir deste) que outro factor de distinção emergia com grande clareza: o insucesso escolar. O caso português é paradigmático a este respeito: a massificação do sistema levada a cabo nos anos 80 e 90, representou uma indubitável democratização no acesso, mas ficou aquém de uma efectiva democratização do sucesso educativo. Os índices de retenção e de abandono escolar são indicadores demonstrativos da situação problemática que se vive em Portugal.
Os dados apontam para uma forte reprodução social entre a origem familiar, o percurso escolar do aluno e, posteriormente, a sua trajectória profissional. De facto, em meios mais desfavorecidos a escola tem apresentado uma grande dificuldade em inverter as desvantagens de partida e transformá-las em vantagens adquiridas por intermédio da interiorização das competências necessárias. Este quadro não é homogéneo, como bem referiu o Hugo: paralelamente, existem focos de excelência no sistema educativo que se expressam em bons resultados escolares.
Por este motivo, as políticas de democratização do sucesso educativo deverão deter um carácter diferenciador, que atenda aos factores ligados ao contexto sem, contudo, exercer sobre estes um conjunto de receitas e de procedimentos previamente estabelecidos (embedded autonomy). Como referimos, as desigualdades não se desenvolvem uniformemente no seio da sociedade, pelo contrário, estas são intrinsecamente irregulares (variam em função de inúmeros factores). Deste modo, as medidas políticas deverão deter, cada vez menos, um carácter homogéneo e excessivamente centralizador. Esta mudança operatória no seio do Estado social significa um imenso desafio com o qual se confrontam a maior parte das sociedades modernas.
Os dados apontam para uma forte reprodução social entre a origem familiar, o percurso escolar do aluno e, posteriormente, a sua trajectória profissional. De facto, em meios mais desfavorecidos a escola tem apresentado uma grande dificuldade em inverter as desvantagens de partida e transformá-las em vantagens adquiridas por intermédio da interiorização das competências necessárias. Este quadro não é homogéneo, como bem referiu o Hugo: paralelamente, existem focos de excelência no sistema educativo que se expressam em bons resultados escolares.
Por este motivo, as políticas de democratização do sucesso educativo deverão deter um carácter diferenciador, que atenda aos factores ligados ao contexto sem, contudo, exercer sobre estes um conjunto de receitas e de procedimentos previamente estabelecidos (embedded autonomy). Como referimos, as desigualdades não se desenvolvem uniformemente no seio da sociedade, pelo contrário, estas são intrinsecamente irregulares (variam em função de inúmeros factores). Deste modo, as medidas políticas deverão deter, cada vez menos, um carácter homogéneo e excessivamente centralizador. Esta mudança operatória no seio do Estado social significa um imenso desafio com o qual se confrontam a maior parte das sociedades modernas.
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terça-feira, 24 de junho de 2008
O discurso do "facilitismo", ou o ataque ideológico à escola pública
O ataque aos sistemas públicos de saúde e educação tendencialmente universais e gratuitos (sim, eles são pagos, mas suportados diferencialmente por quem mais rendimentos aufere, logo, são serviços que resultam da redistribuição) é o primeiro passo no caminho para criar na opinião pública a ideia da necessidade do seu desmantelamento e da sua privatização.
Nos últimos tempos, temos assistido a uma campanha contra o serviço público de educação por parte de muitos meios de comunicação e comentadores sem o conhecimento mínimo da realidade sobre a qual discursam. O discurso do "facilitismo" do ensino público é uma estratégia óbvia para retirar a confiança das classes médias no sector, e dar a ideia que só o privado é que é de qualidade.
O 'facilitismo' tem sido avançado como problemático na matemática. Eu já tinha feito este exercício há vários meses, mas dado o calor - e a demagogia - da discussão actual, vale a pena recordar os dados do PISA 2006, que permite avaliar o nível de literacia matemática dos alunos portugueses num contexto internacional (quadro retirado deste relatório).
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Vale a pena olhar com atenção. O nosso resultado global, é verdade, é fraco: 466 (linha verde), comparado com a média estandardizada de 500 (linha vermelha) para os 57 países que participaram no estudo. Mas olhemos uma segunda vez, tendo em conta este dado: o PISA é aplicado a estudantes de 15 anos independentemente do ano de escolaridade que frequentam (15 anos é a idade escolhida por ser a que corresponde na maioria dos países ao final da escolaridade obrigatória). Portugal é o único país da Europa com tantos alunos inscritos em tão diferentes anos de escolaridade (ver as várias 'bolas'), ou seja, com tantos alunos em atraso, resultado das sucessivas retenções de que foram alvo.
Os alunos que, com 15 anos, estão no ano de escolaridade 'certo' (ano modal) - que em Portugal é o 10.º ano - têm, afinal, um bom (para não me exceder nos adjectivos) resultado: 520. Este resultado seria impossível se o ensino da matemática estivesse a ser assaltado por um qualquer 'nivelamento por baixo'. Assim, o real problema é a diferença entre o aluno médio do ano modal e o aluno médio: comparado com outros alunos, Portugal tem uma percentagem excessiva de alunos fracos ou muito fracos, para os quais o sistema não encontra resposta (a diferença entre o aluno modal e o aluno médio é de 54 pontos(!) - isto é, 520 menos 466 -, sem comparação com o que sucede com qualquer outro país). São estes os alunos nos quais temos que pensar, seja a nossa preocupação a equidade ou a eficácia, e são eles que, tendo ficado para trás - é duvidoso que um aluno no 7.º ou no 8.º ano perceba sequer muitas das perguntas que lhe são colocadas no teste do PISA, por isso não são de espantar os resultados medíocres obtidos - exigem soluções pedagógicas extraordinárias.
Isto não significa dizer que não existe qualquer problema no desempenho dos alunos portugueses a matemática. Existe. Mas o problema não é o 'nivelamento por baixo'. O resultado médio do nosso 'aluno modal', ou seja, que não perdeu nenhum ano no seu percurso escolar, é um bom resultado (520). O verdadeiro problema é antes a dualização entre os alunos que estão onde deviam estar e os "outros", para os quais não houve nenhuma estratégia alternativa senão, claro está, retê-los. Retê-los uma, duas, três vezes. Os alunos que estão no 7.º e no 8.º ano de escolaridade, ou seja, que foram retidos 3 e 2 vezes são, respectivamente, 6,6% e 13,1% da amostra do PISA (que é uma amostra aleatória estratificada do nosso sistema), o que perfaz 19,7% de alunos muito atrasados (isto é, 1 em cada 5). Nenhum outro país europeu se aproxima deste valor (o mais próximo, quase residual, é de 7,1% em Espanha).
O nosso problema, repito, não é ausência de alunos de boa qualidade. Nem é sequer o facto do nosso sistema não ser selectivo. É, antes, muito selectivo - no sentido em que separa os alunos, deixando uma grande fatia deles para trás.
O nosso problema está, para usar a esclarecedora expressão usada pelo representante da persecutória Sociedade Portuguesa de Matemática ontem num programa da SICNotícias, os alunos "mais fraquinhos" (expressão seguida de risadas adolescentes - que serviram de inequívoco marcador ideológico). O problema é sempre este: enquanto estivermos obcecados com a produção de uma 'minoria de excelência' e não procurarmos estratégias centradas na resolução dos problemas dos alunos "fraquinhos", eles vão continuar sempre a existir (por desatenção político-pedagógica cristalizada nas práticas, e não por qualquer 'efeito da natureza'). E a retenção, enquanto estratégia pedagógica, nada pode contra este problema*.
*Esta não é uma opinião caída do céu. Só para dar um pequeníssimo exemplo, em 2001, num artigo que recenseava os estudos feitos sobre os efeitos pedagógicos da prática da retenção ao longo do tempo em diferentes sistemas de ensino, concluía que «over 50 years of educational research has failed to support any form of grade retention as an effective intervention for low achievement», in Dalton, M., P. Ferguson and S. Jimerson (2001), “Sorting out of Successful Failures: Exploratory Analyses of Factors Associated with Academic and Behavioural Outcomes of Retained Students”, Psychology in the Schools, Vol. 38(4).
Adenda: este post suscitou uma discussão interessante aqui.
Nos últimos tempos, temos assistido a uma campanha contra o serviço público de educação por parte de muitos meios de comunicação e comentadores sem o conhecimento mínimo da realidade sobre a qual discursam. O discurso do "facilitismo" do ensino público é uma estratégia óbvia para retirar a confiança das classes médias no sector, e dar a ideia que só o privado é que é de qualidade.
O 'facilitismo' tem sido avançado como problemático na matemática. Eu já tinha feito este exercício há vários meses, mas dado o calor - e a demagogia - da discussão actual, vale a pena recordar os dados do PISA 2006, que permite avaliar o nível de literacia matemática dos alunos portugueses num contexto internacional (quadro retirado deste relatório).
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Vale a pena olhar com atenção. O nosso resultado global, é verdade, é fraco: 466 (linha verde), comparado com a média estandardizada de 500 (linha vermelha) para os 57 países que participaram no estudo. Mas olhemos uma segunda vez, tendo em conta este dado: o PISA é aplicado a estudantes de 15 anos independentemente do ano de escolaridade que frequentam (15 anos é a idade escolhida por ser a que corresponde na maioria dos países ao final da escolaridade obrigatória). Portugal é o único país da Europa com tantos alunos inscritos em tão diferentes anos de escolaridade (ver as várias 'bolas'), ou seja, com tantos alunos em atraso, resultado das sucessivas retenções de que foram alvo.
Os alunos que, com 15 anos, estão no ano de escolaridade 'certo' (ano modal) - que em Portugal é o 10.º ano - têm, afinal, um bom (para não me exceder nos adjectivos) resultado: 520. Este resultado seria impossível se o ensino da matemática estivesse a ser assaltado por um qualquer 'nivelamento por baixo'. Assim, o real problema é a diferença entre o aluno médio do ano modal e o aluno médio: comparado com outros alunos, Portugal tem uma percentagem excessiva de alunos fracos ou muito fracos, para os quais o sistema não encontra resposta (a diferença entre o aluno modal e o aluno médio é de 54 pontos(!) - isto é, 520 menos 466 -, sem comparação com o que sucede com qualquer outro país). São estes os alunos nos quais temos que pensar, seja a nossa preocupação a equidade ou a eficácia, e são eles que, tendo ficado para trás - é duvidoso que um aluno no 7.º ou no 8.º ano perceba sequer muitas das perguntas que lhe são colocadas no teste do PISA, por isso não são de espantar os resultados medíocres obtidos - exigem soluções pedagógicas extraordinárias.
Isto não significa dizer que não existe qualquer problema no desempenho dos alunos portugueses a matemática. Existe. Mas o problema não é o 'nivelamento por baixo'. O resultado médio do nosso 'aluno modal', ou seja, que não perdeu nenhum ano no seu percurso escolar, é um bom resultado (520). O verdadeiro problema é antes a dualização entre os alunos que estão onde deviam estar e os "outros", para os quais não houve nenhuma estratégia alternativa senão, claro está, retê-los. Retê-los uma, duas, três vezes. Os alunos que estão no 7.º e no 8.º ano de escolaridade, ou seja, que foram retidos 3 e 2 vezes são, respectivamente, 6,6% e 13,1% da amostra do PISA (que é uma amostra aleatória estratificada do nosso sistema), o que perfaz 19,7% de alunos muito atrasados (isto é, 1 em cada 5). Nenhum outro país europeu se aproxima deste valor (o mais próximo, quase residual, é de 7,1% em Espanha).
O nosso problema, repito, não é ausência de alunos de boa qualidade. Nem é sequer o facto do nosso sistema não ser selectivo. É, antes, muito selectivo - no sentido em que separa os alunos, deixando uma grande fatia deles para trás.
O nosso problema está, para usar a esclarecedora expressão usada pelo representante da persecutória Sociedade Portuguesa de Matemática ontem num programa da SICNotícias, os alunos "mais fraquinhos" (expressão seguida de risadas adolescentes - que serviram de inequívoco marcador ideológico). O problema é sempre este: enquanto estivermos obcecados com a produção de uma 'minoria de excelência' e não procurarmos estratégias centradas na resolução dos problemas dos alunos "fraquinhos", eles vão continuar sempre a existir (por desatenção político-pedagógica cristalizada nas práticas, e não por qualquer 'efeito da natureza'). E a retenção, enquanto estratégia pedagógica, nada pode contra este problema*.
*Esta não é uma opinião caída do céu. Só para dar um pequeníssimo exemplo, em 2001, num artigo que recenseava os estudos feitos sobre os efeitos pedagógicos da prática da retenção ao longo do tempo em diferentes sistemas de ensino, concluía que «over 50 years of educational research has failed to support any form of grade retention as an effective intervention for low achievement», in Dalton, M., P. Ferguson and S. Jimerson (2001), “Sorting out of Successful Failures: Exploratory Analyses of Factors Associated with Academic and Behavioural Outcomes of Retained Students”, Psychology in the Schools, Vol. 38(4).
Adenda: este post suscitou uma discussão interessante aqui.
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sábado, 21 de junho de 2008
Onde o habitual "facilitismo" tem deixado Portugal
Num dia em que uma parte do país protesta pelo facto de os exames de matemática do 9.º ano terem sido alegadamente uma prova «mais fácil do que nos anos anteriores» - aparentemente alimentando a velha ideia de que exame que não sirva para chumbar muitos, não é exame decente, e que a validade dos exames se mede no nível de alunos que pretende deixar para trás - convinha recordar o que separa Portugal do resto da Europa. Se o nosso sistema é "facilista", imaginem se fosse mais selectivo do que já é (porque o é: o problema é que preferimos manter ao longo de um tempo um sistema selectivo sem introduzir métodos pedagógicos que permitissem fazer subir o nível dos alunos mais fracos, agindo precocemente sobre eles). Com algum azar, estaríamos fora do mapa (o gráfico é retirado daqui).
sábado, 7 de junho de 2008
"Mas as crianças, Senhor"
No capítulo que escrevi para este livro - alvo de uma excelente discussão na terça-feira que decorreu na livraria Pó dos Livros, moderada pelo Renato - disse que talvez a ideia central para (re)pensar hoje o Estado social hoje seja a de Estado de investimento social. A formulação - que, no significado mais elementar, afirma que devemos olhar para as despesas em protecção social não como custos, mas como investimentos no futuro individual e colectivo - não é nada original: o livro que talvez a tenha posto na boca do mundo é este. Uma outra ideia básica diz-nos que é essencial intervir o mais cedo possível no ciclo de vida do indivíduo para prevenir males - individuais, em primeiro lugar, mas obviamente com uma dimensão colectiva - futuros: competências e conhecimentos baixos, dificuldade de encontrar emprego, morbilidade alta, fraca mobilização cognitiva, etc.. "Intervir mais cedo possível" significa conferir um enquadramento institucional que permita às crianças um desenvolvimento cognitivo de qualidade, e que não dependa apenas da fortuna de se nascer numa família com capital cultural e económico que garanta esse enquadramento.
Quanto mais se estudam estas questões, mais se sabe da importância dos primeiros anos de vida - muito antes da entrada na escola para o cumprimento da escolaridade obrigatória -
Num paper intitulado "Social, Skills and Synapses" - disponível on-line no sitio da IZA (procurar por Publications > Discussion Papers > 2008) -, James Heckman, um dos mais importantes cientistas sociais a trabalhar nestas questões nos EUA, começa por relembrar que a «sociedade americana está a polarizar-se. Proporcionalmente, mais jovens americanos estão a concluir a universidade de que no passado. Ao mesmo tempo, a taxas de conclusão do ensino secundário sao as mais baixas do que há 40 anos». Depois, elenca 15 pontos que são muitíssimo importantes do ponto de vista das políticas públicas para a redução das desigualdades. Vale a pena traduzi-los e listá-los:
1 - Muitos importantes problemas sociais como o crime, a gravidez adolescente, o abandono do ensino secundário e más condições de saúde estão ligadas a baixos níveis de competência e capacidade na sociedade.
2 - Na análise das políticas que promovem competências e capacidades, a sociedade devia reconhecer a multiplicidade das capacidades humanas.
3 - Actualmente, as políticas públicas nos EUA centram-se na promoção e na mensuração da capacidade cognitiva através de testes de QI e de desempenho. Os parâmetros de avaliação do programa No Child Left Behind concentram a sua atenção nos testes de desempenho e não avaliam importantes factores não-cognitivos que promovem o sucesso na escola e na vida.
4 - As capacidades cognitivas são determinantes importantes do sucesso sócio-económico.
5 - Tal como são as competências não-cognitivas, a saúde mental e física, a perseverança, a atenção, a motivação, e a auto-confiança. Elas contribuem para o desempenho na sociedade e ajudam a explicar os resultados nos mesmos testes que usualmente medem a capacidade cognitiva.
6 - As diferenças na capacidade entre crianças socialmente privilegiadas e desprivilegiadas começam a aumentar muito cedo.
7. O ambiente familiar das crianças é um dos preditores mais importantes das capacidades cognitivas e sócio-emocionais, tal como de um conjunto de comportamentos como o crime ou os níveis de saúde.
8. O ambiente familiar nos EUA e em muitos outros países deteriorou-se nos últimos 40 anos.
9. Evidência experimental sobre os efeitos positivos de intervenções precoces nas crianças em famílias socialmente desprivilegiadas é consistente com uma grande quantidade de evidência não-experimental que mostra que a ausência de um ambiente familiar favorável prejudica os futuros desempenhos das crianças.
10. Se a sociedade intervém cedo o suficiente, ela pode melhorar as capacidades cognitivas e sócio-emocionais e a saúde das crianças socialmente desprivilegiadas.
11. Intervenções precoces promovem a escolaridade, reduzem o crime, promovem a produtividade no trabalho e reduzem a gravidez adolescente.
12. Estima-se que estas intervenções têm uma relação custo-benefício e uma taxa de retorno altas.
13. Tal como se configuram hoje os programas, as intervenções que ocorrem cedo no ciclo de vida das crianças socialmente desprivilegiadas têm muito mais altos retornos económicos do que as intervenções tardias, como aquelas que reduzem o rácio aluno/professor, as medidas de formação profissional, os programas de reabilitação criminal, os programas de literacia para adultos, os subsídios às propinas ou as despesas com as forças policiais.
14. A formação de competências ao longo do ciclo da vida é de natureza dinâmica. Competências puxam competências; motivation puxa motivação. A motivação promove, de forma cruzada, competências, e estes promovem motivação. Se uma criança não está motivada para aprender
cedo, o mais provável é que, uma vez na idade adulta, esse individuo tenha problemas na vida social e económica. Quanto mais tempo a sociedade espera para intervir no ciclo dde vida de uma criança socialmente desprivilegiada, mais caro será corrigir a desvantagem.
15. É necessário um grande recentrar das políticas com o objectivo de capitalizar o conhecinento que existe sobre o ciclo de vida da formação de competencias e da condição de saúde e a importância dos primeiros anos na criação da desigualdade nos EUA, e para a produção das competências da mão-de-obra.
Observações como estas - que se reportam aos EUA, mas que são, diria, quase universalizáveis -, que procuram resumir muito trabalho de análise empírica, sustentam os contornos gerais de um programa político da maior centralidade nos nossos dias. Elas apontam para a absoluta centralidade de um dos objectivo centrais de um Estado social de investimento social, que é o de reduzir radicalmente ou mesmo erradicar a pobreza infantil, como propõe Esping-Andersen no livro acima linkado (p.66) (para um desenvolvimento do tema pelo mesmo autor, deve-se também consultar este trabalho mais recente, devidamente referida há uns tempos aqui). Estes não são apenas delírios académicos. O governo de Tony Blair propôs atingir precisamente essa meta em 2020, e a Comissão Europeia já reconheceu a importância de caminhar para este objectivo no Joint Report on Social Inclusion 2004. Inclusivamente, o Report of the High Level Group on the future of social policy in an enlarged European Union do mesmo ano propunha a introdução de um rendimento universal para cada criança (Child Basic Income (CBI)):
«the EU approach should help Member States on cutting down poverty amongst children and providing adequate investment in them. In a number of Member States, a disproportionate number of children are in households below the poverty line. Low income affects their nutrition, their health, and their housing. Given the importance of this problem, there is a case for proposing a basic income for children, under which all Member States guarantee that the child benefit and other payments for children will reach a specified percentage of the median household income in that country». (p.63)
Existem até simulações relativamente a quanto custaria implementar um esquema destes, dependendo do objectivo (podia ser reduzir a pobreza infantil a metade dos níveis actuais, ou reduzi-la a 5%, ou erradicá-la), da meta (é a linha de pobreza definida em cada país ou uma linha da pobreza europeia?) e dependendo da fonte de financiamento (se cada Estado, ou se todos os Estados da UE: no primeiro esquema, seria caro para os países mais pobres, que são aqueles que mais altas taxas de pobreza infantil apresentam; no segundo, seria bastante mais barato, mas haveria clara redistribuição dos países mais ricos para os mais pobres). Esse trabalho pode ser encontrado no artigo que Horacio Levy, Christine Lietz e Holly Sutherland publicam neste livro, a partir da base de dados do EUROMOD (mas há uma versão em working paper aqui). Segundo a simulação dos autores, em Portugal seria relativamente barato descer dos altos níveis de pobreza infantil (27% em 2001, dados usados no artigo; em 2004 o valor era de 24%); um CBI de valor equivalente a 10% do rendimento mediano português e transferido para cada criança (i.e., uma família com 3 crianças receberia 3 CBIs) faria cair a taxa de pobreza infantil de 27% para 18% (a queda é brusca - na simulação dos autores nenhum outro pais tem uma tão grande redução com um valor tão baixo - facto explicado por muitas crianças viverem em agregados familiares muito próximo da linha de pobreza), e fixado a 20% do rendimento mediano colocaria o valor da pobreza infantil em 15%.
A questão, claro, é como se financiaria o CBI. Os autores propõem uma taxa plana a juntar ao IRS individual de cada cidadão nacional ou europeu: o CBI a 10% do rendimento mediano nacional custaria 0,52% do rendimento individual,0,6% se o imposto fosse colectado a nível europeu e taxa de pobreza fosse global à UE; um CBI a 20% custaria 2,35% (2,33% se o imposto fosse colectado a nível europeu e taxa de pobreza fosse global à UE). As variantes dos autores vão até a um CBI a 40% do rendimento mediano.
Este método de financiamento, não sendo muito progressivo (dado que a taxa é plana sobre o rendimento), leva a que as famílias com menos rendimentos paguem menos em absoluto e, sobretudo, que as famílias pobres com crianças (ou abaixo da linha de pobreza precisamente porque têm crianças a cargo) recebessem muito mais do que pagam. Isto seria ainda mais verdade se todos os países contribuíssem, o que levaria a uma forte redistribuição entre países. Mas também se trataria de uma redistribuição entre casais com filhos/crianças a cargo e casais (já) sem filhos/crianças a cargo. Se, mais do que nunca, em tempos de baixa fertilidade, as crianças são bens públicos, elas devem ser financiadas por todos. Em caso contrário, os casais ou indivíduos que optam por não ter filhos são free riders dos efeitos positivos trazidos, a prazo, pelo facto dos outros terem tido filhos! E se são free riders, justifica-se que paguem um imposto por colocarem, objectiva mesmo que não subjectivamente, o fardo da reprodução intergeracional da sociedade no "colo" dos outros casais.
Seria um CBI caro? Depende. O custo não me parece exorbitante, em particular face ao facto de os intrumentos redistributivos directos a nível europeu terem regredido com o alargamento para 25 em 2004. A agenda de Lisboa, para levar a sério (em particular a parte da coesão social) exige mais redistribuição. Ao mesmo tempo, quando perguntamos o preço, convém calcular tudo aquilo que resulta das crianças crescerem com níveis de privação elevados, e para o qual James Heckman alerta: maior probabilidade de abandono escolar e consequente perda agregada de competências); maior risco de criação de um exercito de reserva para actividades paralelas e/ou criminais; níveis de morbilidade mais elevados, a serem pagos em muitos países pelos contribuintes que financiam sistemas de saúde universais, etc - um conjunto demasiado trivial de males públicos. Disseram custo? A palavra certa é investimento.
Mas imaginemos que muitos achem caro. Bom, é natural. É que o bem-estar e alargamento dos horizontes, presentes e futuros, das crianças é caro: basta perguntar a uma família minimamente abastada. A questão é se a Europa - isto é, nós - está disposta a cumprir os compromissos que se coloca a si própria.
Quanto mais se estudam estas questões, mais se sabe da importância dos primeiros anos de vida - muito antes da entrada na escola para o cumprimento da escolaridade obrigatória -
Num paper intitulado "Social, Skills and Synapses" - disponível on-line no sitio da IZA (procurar por Publications > Discussion Papers > 2008) -, James Heckman, um dos mais importantes cientistas sociais a trabalhar nestas questões nos EUA, começa por relembrar que a «sociedade americana está a polarizar-se. Proporcionalmente, mais jovens americanos estão a concluir a universidade de que no passado. Ao mesmo tempo, a taxas de conclusão do ensino secundário sao as mais baixas do que há 40 anos». Depois, elenca 15 pontos que são muitíssimo importantes do ponto de vista das políticas públicas para a redução das desigualdades. Vale a pena traduzi-los e listá-los:
1 - Muitos importantes problemas sociais como o crime, a gravidez adolescente, o abandono do ensino secundário e más condições de saúde estão ligadas a baixos níveis de competência e capacidade na sociedade.
2 - Na análise das políticas que promovem competências e capacidades, a sociedade devia reconhecer a multiplicidade das capacidades humanas.
3 - Actualmente, as políticas públicas nos EUA centram-se na promoção e na mensuração da capacidade cognitiva através de testes de QI e de desempenho. Os parâmetros de avaliação do programa No Child Left Behind concentram a sua atenção nos testes de desempenho e não avaliam importantes factores não-cognitivos que promovem o sucesso na escola e na vida.
4 - As capacidades cognitivas são determinantes importantes do sucesso sócio-económico.
5 - Tal como são as competências não-cognitivas, a saúde mental e física, a perseverança, a atenção, a motivação, e a auto-confiança. Elas contribuem para o desempenho na sociedade e ajudam a explicar os resultados nos mesmos testes que usualmente medem a capacidade cognitiva.
6 - As diferenças na capacidade entre crianças socialmente privilegiadas e desprivilegiadas começam a aumentar muito cedo.
7. O ambiente familiar das crianças é um dos preditores mais importantes das capacidades cognitivas e sócio-emocionais, tal como de um conjunto de comportamentos como o crime ou os níveis de saúde.
8. O ambiente familiar nos EUA e em muitos outros países deteriorou-se nos últimos 40 anos.
9. Evidência experimental sobre os efeitos positivos de intervenções precoces nas crianças em famílias socialmente desprivilegiadas é consistente com uma grande quantidade de evidência não-experimental que mostra que a ausência de um ambiente familiar favorável prejudica os futuros desempenhos das crianças.
10. Se a sociedade intervém cedo o suficiente, ela pode melhorar as capacidades cognitivas e sócio-emocionais e a saúde das crianças socialmente desprivilegiadas.
11. Intervenções precoces promovem a escolaridade, reduzem o crime, promovem a produtividade no trabalho e reduzem a gravidez adolescente.
12. Estima-se que estas intervenções têm uma relação custo-benefício e uma taxa de retorno altas.
13. Tal como se configuram hoje os programas, as intervenções que ocorrem cedo no ciclo de vida das crianças socialmente desprivilegiadas têm muito mais altos retornos económicos do que as intervenções tardias, como aquelas que reduzem o rácio aluno/professor, as medidas de formação profissional, os programas de reabilitação criminal, os programas de literacia para adultos, os subsídios às propinas ou as despesas com as forças policiais.
14. A formação de competências ao longo do ciclo da vida é de natureza dinâmica. Competências puxam competências; motivation puxa motivação. A motivação promove, de forma cruzada, competências, e estes promovem motivação. Se uma criança não está motivada para aprender
cedo, o mais provável é que, uma vez na idade adulta, esse individuo tenha problemas na vida social e económica. Quanto mais tempo a sociedade espera para intervir no ciclo dde vida de uma criança socialmente desprivilegiada, mais caro será corrigir a desvantagem.
15. É necessário um grande recentrar das políticas com o objectivo de capitalizar o conhecinento que existe sobre o ciclo de vida da formação de competencias e da condição de saúde e a importância dos primeiros anos na criação da desigualdade nos EUA, e para a produção das competências da mão-de-obra.
Observações como estas - que se reportam aos EUA, mas que são, diria, quase universalizáveis -, que procuram resumir muito trabalho de análise empírica, sustentam os contornos gerais de um programa político da maior centralidade nos nossos dias. Elas apontam para a absoluta centralidade de um dos objectivo centrais de um Estado social de investimento social, que é o de reduzir radicalmente ou mesmo erradicar a pobreza infantil, como propõe Esping-Andersen no livro acima linkado (p.66) (para um desenvolvimento do tema pelo mesmo autor, deve-se também consultar este trabalho mais recente, devidamente referida há uns tempos aqui). Estes não são apenas delírios académicos. O governo de Tony Blair propôs atingir precisamente essa meta em 2020, e a Comissão Europeia já reconheceu a importância de caminhar para este objectivo no Joint Report on Social Inclusion 2004. Inclusivamente, o Report of the High Level Group on the future of social policy in an enlarged European Union do mesmo ano propunha a introdução de um rendimento universal para cada criança (Child Basic Income (CBI)):
«the EU approach should help Member States on cutting down poverty amongst children and providing adequate investment in them. In a number of Member States, a disproportionate number of children are in households below the poverty line. Low income affects their nutrition, their health, and their housing. Given the importance of this problem, there is a case for proposing a basic income for children, under which all Member States guarantee that the child benefit and other payments for children will reach a specified percentage of the median household income in that country». (p.63)
Existem até simulações relativamente a quanto custaria implementar um esquema destes, dependendo do objectivo (podia ser reduzir a pobreza infantil a metade dos níveis actuais, ou reduzi-la a 5%, ou erradicá-la), da meta (é a linha de pobreza definida em cada país ou uma linha da pobreza europeia?) e dependendo da fonte de financiamento (se cada Estado, ou se todos os Estados da UE: no primeiro esquema, seria caro para os países mais pobres, que são aqueles que mais altas taxas de pobreza infantil apresentam; no segundo, seria bastante mais barato, mas haveria clara redistribuição dos países mais ricos para os mais pobres). Esse trabalho pode ser encontrado no artigo que Horacio Levy, Christine Lietz e Holly Sutherland publicam neste livro, a partir da base de dados do EUROMOD (mas há uma versão em working paper aqui). Segundo a simulação dos autores, em Portugal seria relativamente barato descer dos altos níveis de pobreza infantil (27% em 2001, dados usados no artigo; em 2004 o valor era de 24%); um CBI de valor equivalente a 10% do rendimento mediano português e transferido para cada criança (i.e., uma família com 3 crianças receberia 3 CBIs) faria cair a taxa de pobreza infantil de 27% para 18% (a queda é brusca - na simulação dos autores nenhum outro pais tem uma tão grande redução com um valor tão baixo - facto explicado por muitas crianças viverem em agregados familiares muito próximo da linha de pobreza), e fixado a 20% do rendimento mediano colocaria o valor da pobreza infantil em 15%.
A questão, claro, é como se financiaria o CBI. Os autores propõem uma taxa plana a juntar ao IRS individual de cada cidadão nacional ou europeu: o CBI a 10% do rendimento mediano nacional custaria 0,52% do rendimento individual,0,6% se o imposto fosse colectado a nível europeu e taxa de pobreza fosse global à UE; um CBI a 20% custaria 2,35% (2,33% se o imposto fosse colectado a nível europeu e taxa de pobreza fosse global à UE). As variantes dos autores vão até a um CBI a 40% do rendimento mediano.
Este método de financiamento, não sendo muito progressivo (dado que a taxa é plana sobre o rendimento), leva a que as famílias com menos rendimentos paguem menos em absoluto e, sobretudo, que as famílias pobres com crianças (ou abaixo da linha de pobreza precisamente porque têm crianças a cargo) recebessem muito mais do que pagam. Isto seria ainda mais verdade se todos os países contribuíssem, o que levaria a uma forte redistribuição entre países. Mas também se trataria de uma redistribuição entre casais com filhos/crianças a cargo e casais (já) sem filhos/crianças a cargo. Se, mais do que nunca, em tempos de baixa fertilidade, as crianças são bens públicos, elas devem ser financiadas por todos. Em caso contrário, os casais ou indivíduos que optam por não ter filhos são free riders dos efeitos positivos trazidos, a prazo, pelo facto dos outros terem tido filhos! E se são free riders, justifica-se que paguem um imposto por colocarem, objectiva mesmo que não subjectivamente, o fardo da reprodução intergeracional da sociedade no "colo" dos outros casais.
Seria um CBI caro? Depende. O custo não me parece exorbitante, em particular face ao facto de os intrumentos redistributivos directos a nível europeu terem regredido com o alargamento para 25 em 2004. A agenda de Lisboa, para levar a sério (em particular a parte da coesão social) exige mais redistribuição. Ao mesmo tempo, quando perguntamos o preço, convém calcular tudo aquilo que resulta das crianças crescerem com níveis de privação elevados, e para o qual James Heckman alerta: maior probabilidade de abandono escolar e consequente perda agregada de competências); maior risco de criação de um exercito de reserva para actividades paralelas e/ou criminais; níveis de morbilidade mais elevados, a serem pagos em muitos países pelos contribuintes que financiam sistemas de saúde universais, etc - um conjunto demasiado trivial de males públicos. Disseram custo? A palavra certa é investimento.
Mas imaginemos que muitos achem caro. Bom, é natural. É que o bem-estar e alargamento dos horizontes, presentes e futuros, das crianças é caro: basta perguntar a uma família minimamente abastada. A questão é se a Europa - isto é, nós - está disposta a cumprir os compromissos que se coloca a si própria.
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