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segunda-feira, 7 de julho de 2008

A importância da confiança

Este pequeno livro - La Société de Défiance, de Yann Algan e Pierre Cahuc - ganhou o prémio de melhor livro de economia de 2008 em França. A partir da respostas a inquéritos internacionais realizados nas últimas 3 décadas em vários países do mundo, trabalha a questão de como os níveis de confiança interpessoal e entre as pessoas e as instituições se interligam com questões mais vastas de desempenho económico. O resultado final era esperado, mas a coerência dos dados não deixa de espantar: a desconfiança nas instituições públicas e políticas, e económicas tem custos enormes para a governabilidade, para o crescimento e para a possibilidade de levar a cabo políticas redistributivas. Se no caso da ausência de confiança nas primeiras é uma questão mais tematizada, no caso do impacto da desconfiança no funcionamento das instituições económicas é menos conhecida. Mas ela é essencial. E o que assusta mais é a proximidade de Portugal do caso francês em quase todos os indicadores. Nos próximos dias vou tentar explorar um pouco esta questão, mas para já fica uma amostra.

Por exemplo, veja-se a posição de Portugal na primeira figura (clickar para aumentar), onde aos baixos níveis de confiança se soma o receio da concorrência económica. Não espanta, por isso, que esta situação leve a pressões para que o Estado intervenha no sentido de sobre-regulamentar questões centrais para o desempenho económico e para competição, como o número de procedimentos necessários para criar uma empresa (segunda figura)* - que é uma forma de proteccionismo das empresas já estabelecidas num dado mercado, indicador de como o Estado é cooptável pelos interesses hegemónicos num dado campo.
A ausência de confiança e o o excesso de normas na área económica correlacionam, é também natural, negativamente com a ausência de institucionalização do diálogo social, a começar pelas fracas taxas de sindicalização (terceira figura). Isto gera mercados de trabalho excessivamente regulamentados, onde a fraca presença dos sindicatos é o outro lado da ideia de que é a lei que protege o trabalhador (o que esquece que se não há capacidade para assegurar a efecitva aplicação da lei - coisa que ninguém faz melhor do que os sindicatos -, esta não vale de nada, ficando o trabalhador à mercê do arbítrio patronal). E mercados de trabalho excessivamente regulamentados correlacionam com uma fraca generosidade nas condições e montante do subsídio de desemprego, essencial para a securização dos percursos profissionais e para a aceitação da e adaptação à mudança gerada pela introdução de novas tecnologias e pela instabilidade dos mercados (quarta figura).

O mais interessante na análise dos autores é o papel negativo do Estado na reprodução desta situação de "desconfiança generalizada" (daí o subtítulo do livro: Comment le modèle social français s'autodétruit?). A sua acção é essencial também para discutir temas que têm sido afloradas neste blogue pelo Renato, como a questão do centralismo/autonomia, ou da embededdness. A coerência deste quadro de elementos não pode deixar de impressionar.
Matéria para outros posts.

* Medidas recentes como a 'Empresa na Hora' melhoraram consideravelmente a situação de Portugal neste capítulo.

domingo, 29 de junho de 2008

Estado, profissionais e igualdade

O Renato introduziu há dias o conceito de "embeddedness". Embora este tenha sido desenvolvido e aplicado inicialmente no âmbito da política industrial, o Renato pretende alargá-lo a áreas que mais tradicionalmente podemos considerar de política social ou próximas (neste caso, a educação). Esta parece-me uma boa ideia. Mas antes de o ser como fertilizante político, é-o talvez como instrumento para perceber como é dificil o processo de "embeddedness" ocorrer com eficácia.

O Renato falou da educação, mas podia ter falado da saúde. Ou da justiça. Estes são serviços públicos estruturantes de qualquer política de igualdade de oportunidades. São também serviços onde é muito fácil a energia política e o investimento económico perder-se pelo meio da dificuldade em alinhar o objectivo do Estado - que estes serviços sejam fornecidos com níveis elevados de equidade e eficiência - com os interesses dos profissionais.

O Estado aqui tem duas hipóteses limite: ou entrega aos grupos profissionais respectivos (professores, médicos, magistrados) a condução das suas próprias práticas e a sua avaliação; ou tenta tudo controlar de forma potencialmente invasiva para garantir que o que é feito pelos profissionais é-o de acordo com os objectivos políticos definidos por um programa de governo sufragado pela população. Os dois casos são perigosos. No primeiro é grande o risco do Estado ser capturado pelos interesses profissionais, e no segundo é grande o risco do Estado invadir excessivamente o espaço que os profissionais têm como seu.

Isto para dizer o quê? Que qualquer política de igualdade de oportunidades depende, em ampla medida, de um alinhamento de interesses entre o Estado (o 'principal') e os profissionais (os 'agents'), e que as melhores medidas podem falhar se os profissionais tiverem um entendimento do objectivo do seu métier diferentes daquele que o Estado tem. Aqui, a ideologia profissional é um pau de dois bicos: se, por um lado, garante mínimos de qualidade e de adesão a uma ética que resultam de uma regulação autónoma de um corpo de experts, por outro não há nenhuma garantia que os profissionais estejam tão interessados em respeitar os objectivos políticos de um governo, em particular se estes passarem pela luta contra as desigualdades de oportunidades, de acesso, ou de resultados (diferenças entre conceitos que não aprofundo aqui).

Regularmente, quando se afirma uma coisa destas, surge imediatamente a suspeita de que se está a acusar os profissionais de serem egoístas - pior, de serem naturalmente, egoístas, como se de uma "antropologia neo-liberal" se tratasse. Mas esta acusação é extraordinariamente grosseira e passa ao lado da discussão. Há várias razões pelas quais os profissionais podem não concordar ou, mesmo concordando em abstracto, não consigam levar a cabo as orientações políticas. Pode haver discordâncias ideológicas: como garantir que todos os professores concordam com uma escola de massas, isto é, para todas as crianças? Como garantir que os médicos concordam com a existência de um serviço nacional de saúde universal e que não descrimine ninguém? Pode haver problemas organizacionais: como garantir que os recursos postos à disposição dos profissionais são bem usados? Como garantir que médicos ou professores dêem tudo o que têm para dar no público e não façam o serviço "a meias", usando o sector privado para garantir os níveis de qualidade que podiam e deviam ser garantidos através do sistema público? Pode haver haver problemas de motivação: para quê tentar ensinar crianças que "não aprendem"? E para quê tratar indivíduos irresponsáveis que não sabem "tomar conta" de si e da sua saúde?

Quanto maior a distância ideológica, a ineficiência organizacional e/ou a o défice de motivação, maior a tendência para o Estado se ver forçado a aumentar a supervisão do trabalho destes profissionais, e maior o potencial descontentamento destes ao sentirem que a sua autonomia está a ser atacada e que as suas tarefas estão, com o maior controle público, cada vez mais, dirão, neo-taylorizadas. E quanto maior o descontentamento destes, maior a "chantagem" pública destes agentes. Os discursos na saúde de que "assim não podemos garantir a qualidade dos tratamentos" ou, na educação, que "assim só estamos a formar crianças que cada vez sabem menos", são endémicos. Fazem parte da "chantagem" cujo rigor empírico ninguém pode muito bem garantir, seja porque é dificil calcular condições mínimas de qualidade, seja porque é complicado fazer comparações entre períodos históricos (embora na educação não seja bem assim - tema para outro post).

A verdade é que, ceteris paribus, é sempre mais complicado trabalhar em sistemas que servem todos do que em sistemas que servem uma minoria: é mais fácil e interessante ensinar alunos com vivos e interesse em aprender do que miúdos em escolas TEIP, e é mais conveniente e estimulante tratar pacientes cultos e qualificados, trabalhar em especialidades de ponta, e/ou exercer medicina em Lisboa do que em Montemor-o-Velho. Se assim não fosse, teríamos os melhores professores nas escolas mais difíceis, e não haveria tanta dificuldade em garantir a formação de médicos de clínica geral e em colocá-los em locais longe dos centros urbanos. Não é preciso imputar nenhum egoísmo aos profissionais - basta não ser ingénuo e achar que o ethos de serviço público e da luta contra as desigualdades está no código genético das profissões. Nunca me esqueço que, na sociologia da profissões, o norte-americano Talcott Parsons achava, nas décadas de 50 e 60 do século passado, que o altruísmo e o serviço ao público faziam parte dos traços característicos das profissões liberais, de que a medicina era um dos exemplos acabados - isto, recorde-se, num país onde os médicos, pela voz da American Medical Association, sempre foram um dos maiores inimigos da criação de um sistema público e universal de saúde, precisamente porque isso iria limitar a sua margem de autonomia (a começar, digo eu, pela sua 'autonomia' para ganhar muito dinheiro). A verdade é que os profissionais estão sempre próximos de ver o serviço que prestam reduzido a um mero 'servilismo'. E aqui o profissionalismo - e, em particular, o 'orgulho profissional' - pode ser um perigoso inimigo do (serviço) público, e das suas necessidades e exigências legítimas.

Este é um problema sério, porque a qualidade e a universalidade dos serviços públicos dependem não apenas do investimento público em recursos materiais e humanos, mas também da capacidade dos profissionais gerirem os recursos postos à sua disposição de forma mais racional - e não simplesmente pedir mais dinheiro - e da motivação e dedicação dos profissionais, cuja maximização não pode estar garantida só porque os mesmos dizem que "fazem tudo pelos seus alunos/doentes". Se assim fosse, talvez os sistemas públicos não precisassem tantas vezes da ajuda do sector privado para reduzir as filas de espera na saúde ou de tantas explicações "por fora" para ajudar os alunos.

Resumindo: a luta contra a igualdade de oportunidades/acesso/resultados falha muitas vezes não por culpa (exclusiva) do Estado, mas porque a relação entre o Estado e os profissionais é complicada - a tal "embeddedness" é, afinal, mais difícil do que pode parecer à primeira vista -, e porque estes não se revêem necessariamente nos objectivos igualitaristas das políticas públicas.