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Para algumas coisas sou completamente cega. Não uma cegueira proposital. É que só vejo o que está no campo dos meus interesses. Acho que todos somos assim – mas nem todos reconhecemos. É claro que este campo é mutável. Depende do tamanho da alma. E às vezes, confesso, a minha é bem pequena.

Foi num dia de alma pequena que tudo aconteceu. Sabe estes dias em que tudo te parece sem cor? Estava cega para tudo – menos para minhas dores particulares. Nunca elas estiveram tão profundas quanto naquela manhã gelada que beirava o inverno. Até a neblina opaca contribuía. Um tanto pela idade – estou começando a sentir o degringolar do meu tônus muscular. Interno, claro!

Ai, como eu tergiverso! Mas então o dia era em branco. E foi no branco que se inscreveu uma sucessão de imprevistos. Começou no estouro do pneu. Depois que meu coração reaprendeu a bater, vieram os palavrões. Eu não me lembrava do número de emergência da administradora da rodovia. Os carros pequenos passavam por mim sem me ver. Os carreteiros olhavam divertidos sem parar. E a minha reunião em BH incendiando a minha ansiedade. Em seguida, fui parada numa barreira da Polícia Federal. Mais preciosos minutos escorrendo das minhas horas contadas.

O terceiro incidente veio alguns km depois. Pista fechada, sons de ambulância, todos fora de seus veículos e eu tamborilando no volante. A reunião cada vez mais crescente na minha preocupação. Quando já estava contabilizando o absurdo de quase uma hora de atraso na viagem, a porta do carro da frente abriu e saiu uma senhora. Enquanto ela vinha na minha direção, fiquei observando seu andar torto e o reflexo do esforço em seu rosto. Por que será que alguém com tamanha dificuldade de andar inventa de sair do carro sem nenhuma necessidade?

Depois de me cumprimentar, fez-me algumas perguntas. Respondi com pouquíssima vontade. Meu mau humor estava beirando a falta de educação. De repente, começou a me contar do acidente que a deixara com uma perna menor que a outra. Uma absoluta falta de interesse me fez interrompê-la: foi grave o acidente aí na frente?

Ela me olhou sem surpresa. Parecia estar acostumada a não ser ouvida. Foi aí que me vi. Um monte de egoísmo e cegueira. Igualzíssima a todo ser humano que se sente imune ao envelhecimento. Cheia de remorsos, arregalei os olhos da alma e me dispus a ouvi-la. Mas ela já não falava mais de si. Depois de me dizer o que soubera sobre o acidente, colocou em mim olhos bondosos e aquele ar de quem tem todo o tempo do mundo para me escutar. Com o remorso batendo pesado na consciência, tentei me desculpar contando do meu trabalho e do tempo contado que era minha vida.

Foi um papo rápido, como rápidas têm sido minhas horas. Mas o incidente como um todo mexeu profundamente com minha auto-imagem. Reconheço: nunca fui muito paciente com a velhice, embora a respeite. E sempre me cobrei por isso. Sei, ninguém é perfeito e estou longe, muito longe da perfeição. Mas não me lembro de ter sido tão grosseira. Ou tão insensível. Pelo resto do tempo que fiquei naquela rodovia, me culpei. Inutilmente. Culpa nunca acrescenta, só paralisa.

Hoje, o incidente ainda me incomoda. E ainda não fiz nada de concreto para me sentir melhor. Continuo acalentando a culpa sem tempo para expurgá-la. Mas não estou indignada comigo mesma. Aliás, estou em processo de desindignação. Ando discordando de velhos hábitos e antigos atos. E até de Nietzsche, apesar de tender a concordar que “ninguém mente tanto quanto o indignado” - talvez porque os brados quase nunca se transformem em atitudes. Ao invés de indignar-me, sei que devo partir para a ação reversa. Sem cegueiras, propositais ou não. Espero.

A imagem: Pintura digital de João Werner: Cachimbo da Paz



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Crônica da dor crônica



"A inveja é bastante justa, pois rói o invejoso"
(Schottus)



Dia destes, conversando com uma amiga, falávamos de algumas dores que consideramos crônicas e enfartantes para a alma. Chegamos à conclusão que uma destas dores deve ser causada pela inveja. Não estou a falar da tal inveja branca, esta que nos acomete quando estamos frente a algo belo. Neste caso, ficamos a admirar e a pensar no quanto gostaríamos de ser o autor/autora de tal beleza. Ficamos nisso. Sem nenhum ato destrutivo ou palavras discriminadoras.

Estou a falar daquela inveja amarga, destruidora, perniciosa. É, o invejoso deve sofrer as penas do inferno. E não injustamente. Ouso dizer: merecidamente. Porque inveja é dor opcional. Ninguém precisa se roer, se corroer por se sentir inferior a outro ou condená-lo por aquilo que não se tem coragem de fazer.

É, você até pode dizer que cada um faz as suas opções. Concordo. Mas quem é bem resolvido, faz suas opções e respeita quem faz escolhas diferentes das suas. O invejoso não. Na verdade, nem sei se uma pessoa assim consegue fazer escolhas. Tendo a acreditar que apenas se acomoda no que pensa a maioria. Sei que, por não ter ou ser o que gostaria, passa a discriminar, menosprezar, espezinhar aquele que tem coragem de fazer suas próprias regras, traçar seus próprios caminhos, independente da aprovação do mundo.

O invejoso é um cara muito inseguro. Em geral, quem está neste nível de insegurança, a ponto de agir declaradamente sob o sentimento da inveja, é mal amado até por si mesmo. E por não se amar, não consegue ter atitudes afetivas, destituídas de interesses, não consegue se dar ao amor. Confunde amor com uma série de regras, leis, contratos. E quando consegue alguém disposto a dar-lhe um voto de confiança, mata a esperança porque não se sente capaz de regar o canteiro dos sentires.

Daí a concluir: o invejoso é seco, amargo e chato - mesmo que às vezes se finja de alegre ou bonzinho ou amigo. Alguns, até demonstram inteligência - mas não uma inteligência emocional capaz de mostrar-lhe que ser é muito mais que ter. Ou que para estar é preciso investir. Outros conseguem apenas fazer coro e engrossar a fila dos chamados demalcomavida.

Enfim, devem sofrer bastante estes pobres coitados. Que curtam suas dores crônicas bem longe de mim. Do jeito que sou boba, ainda serei capaz de querer salvá-los de si mesmos!

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Cada um de nós compõe a sua história,
e cada ser em si carrega o dom de ser capaz
de ser feliz...
(Almir Sater - Renato Teixeira)


Volta e meia, leio um texto derrotista e isso sempre mexe comigo. Não por tristeza. Nem por dó. Derrotismo me incomoda, me irrita, me soa como ressaca de falsas escolhas. Ser ou não um lutador depende apenas do livre-arbítrio.
Dia destes, alguém que tem tudo para ser um vencedor me mandou um texto terrivelmente derrotista. Meu primeiro impulso foi passar a mão em sua cabeça e dar-lhe ainda mais motivos para ter dó de si mesmo. Acordei a tempo. Não por acaso. É que me lembrei de um dos meus “afilhados”, um ex-menino de rua, na luta contra o mundo das drogas.
Beto era um garoto franzino de grandes olhos famintos. Desenhava o tempo todo. Mesmo quando a crise de abstinência o deixava trêmulo, seus dedos rabiscavam pássaros. Sempre vôos em direção ao infinito. Venceu o vício, voltou a freqüentar a escola. Mas não se livrou do medo quase delirante de não conseguir ir em frente. Sempre calado, seguia vivendo um dia de cada vez. Seus sonhos eram apenas os vôos dos pássaros no papel. Um dia, não voltou da escola. Numa briga com um colega, fora expulso. Sumariamente. Numa atitude preconceituosa e arbitrária a escola julgou-o e condenou-o inapto a viver em sociedade. Apenas ele. O outro garoto não tinha um passado que o condenasse. Três meses depois recebi a notícia de que ele havia morrido de overdose. Comigo, ficaram os desenhos e o sonho perdido de pássaro livre.
Sinto saudades dos tímidos e pequenos sonhos deste garoto. Saudades de um futuro que voou para o infinito. Dele não posso dizer que foi um derrotista ou culpá-lo por desistir de viver. Era apenas uma criança lutando contra o mundo e seus preconceitos.
O mesmo não posso dizer deste alguém que me escreveu e de todas as pessoas que têm muito a seu favor e escolhem trilhar caminhos que levam a lugar algum. Estes sim são responsáveis por suas escolhas. Consequentemente, únicos responsáveis pelas dores e solidão que elas trazem.
Afinal, felicidade não é um dom. Dom é ser capaz de buscá-la, de construí-la. E este, todos nós temos.


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O tema hoje é Homens.
Sentei na frente do micro e pensei: mas o que falar de homens com quem convivo a não ser que me encantam? Comumente, falo muito bem dos homens. Afinal, eu os vejo como parceiros, como complementos. E os adoro, tanto quanto adoro o universo feminino.
Mas existem várias exceções. E ainda bem que eu ainda tenho memória para lembrá-las (pelo menos uma delas) ou este texto não sairia. Uma destas exceções são os bundões. É chula, a palavra. Eu sei. Mas é a que quero usar – a que define, com exatidão, os homens aos quais quero me referir. Existem também as mulheres que se encaixam neste perfil. Mas mulher tem outro nome.
Bundões são os sedutores, maravilhosamente sedutores, que não conseguem sair da sedução. Em geral, são aqueles que têm uma relação estável já numa fase de mesmice. Tentam, isso não se pode negar, colocar cor e sabor na vida. Perfeito. O ser humano necessita destas renovações. Eu necessito e o faço. Mas eles, os bundões, ficam sempre no meio do caminho.
A relação deles com a fidelidade é completamente ambígua. Não são fiéis, mas não conseguem ser concretamente infiéis. Acreditam na tese de que o homem é biologicamente polígamo, sentem a constante necessidade de mudar a si mesmos em novos amores, mas falta-lhes coragem para passar da tese à prática. Querem desesperadamente uma nova paixão, mas querem com a mesma força conservar-se seguros na antiga relação. E viram trapalhões. Têm ímpetos de coragem quase suicida. E quando percebem que estão com o pé suspenso no abismo, recuam. Não se assumem nem anjos, nem demônios. Nem sabem lidar com a transição de um para o outro. E nesta dança de vai-não-vai são extremamente desrespeitosos. Na relação antiga e na nova.
Amei um ou outro destes homens, reconheço. Porque ao seduzir o sedutor, fui também seduzida. Mas o preço pago foi excessivamente alto: lambi as feridas que em mim causaram e senti pelas feridas que nas parceiras abriram. Sou assumidamente infiel – dentro do padrão vigente de fidelidade - mas preservo cada um dos meus amores. É o mínimo que espero de quem se dispõe a se relacionar comigo. É o mínimo que se espera de alguém que não queira ser chamado bundão!
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Quase democraticamente, o pessoal do Palimpnóia escolheu Viagens e Homens como dois dos temas deste mês de maio. Eu que adoro os dois, pensei logo em fazer uma puta crônica. Mas estou na fase de, no maximo, contar histórias. E como respeito cada uma das minhas fases, vou tentar fazer um croniconto. Assim, tentarei ser fiel à fase e aos temas.
Foi há muito tempo atrás. Estava eu numa das minhas dramáticas crises conjugais. Não por desgaste do casamento, mas por falta dele - marido que ficava 15 dias em casa e dois meses no norte do país era marido? Aquele era o momento em que não sabia se me dedicava a ser mãe, a ser pai, se trocava lâmpadas, se olhava o óleo do carro, se consertava a torneira, se dava aulas ou se enfiava a cabeça na areia e deixava o mundo explodir.
Para não perder de vez a sanidade, resolvi enlouquecer para o mundo. Não era a primeira e nem seria a última loucura. Era apenas mais uma atitude porralouca, como tantas que já tive e que, vez em quando, ainda tenho. Eu me coloquei aberta a todas as possibilidades. E que Deus me ajudasse.
Em poucas horas estava eu na rodoviária brigando por uma passagem de um ônibus que estava de saída. Cambaleando entre as poltronas, literalmente caí sobre um rapaz no fundo do ônibus. Sem olhar para ele, me desculpei, ajeitei-me e fechei os olhos. Queria dormir embalada pelo som do motor e esquecida de quem eu era e do que havia aprendido – inclusive da minha carteira de motorista. Fui tirada do meu propósito pela mochila que despencou sobre as pernas do meu companheiro. Pernas compridas, coxas grossas. Um homem grande que se espremia no lado da poltrona que eu tanto queria.
- Você não acha que suas pernas são grandes demais pra ficarem espremidas aí?
Trocamos de lugar. E começamos um longo papo. Fiquei sabendo tudo que era importante sobre ele. E à medida que sabia, me encantava. Não sei se pelo que ouvia ou pelo simples movimento de seus lábios. Tinha a boca mais beijável que tinha visto nos últimos tempos.
Contei a ele sobre mim. Comecei pelo casada - como se assumindo a minha condição de comprometida, fosse acalmar as borboletas que já revolucionavam o estômago e os sentidos. Em menos de duas horas eu já havia me esquecido de quase tudo que deixara para trás. O cara era daqueles que não tinham medo de ser feliz. Medo de ser feliz? Por que eu pensava isso? Andava tão acostumada a homens que vestem a carapaça de durões que me encantei ao encontrar um que mostrava a alma. E o mais interessante: ele via a minha.
Foram 4 horas de encantamento. E eu ia registrando coisas como olhos úmidos ao falar da avó, sorriso terno ao se lembrar da ex-noiva, postura endurecida ao me contar sobre o cotidiano deum sub-gerente de banco. Ele era transparente e eu queria ser seu espelho. Minhas invencíveis borboletas estavam alvoroçadas e completamente esquecidas que eu vivia uma crise.
Ao chegarmos ao destino, não queria me levantar. E se ele sequer me desse seu telefone? Não deu. Foi simpático, amigo, ajudou-me a juntar minha bagunça, deu-me um beijo demorado no rosto e se foi. Eu olhava suas costas sem acreditar. Nunca antes alguém me dispensara. Querendo ou não eu tinha que reconhecer: minhas atabalhoadas intenções foram linda e ternamente dispensadas.
Levei alguns dias para me esquecer da dor no ego. E nunca me esqueci do homem. Este homem foi o primeiro a me colocar frente a frente com uma das grandes incoerências femininas: o que se quer de um homem? Um anjo ou um demônio? As duas coisas, descobri. Jamais me esquecerei da delicadeza, sensibilidade e amizade daquelas 4 horas. Mas tenho que reconhecer: eu queria tudo isso aliado ao interesse do homem pela mulher. Talvez, nem tanto os olhares indiscretos que a bunda feminina costuma ganhar, nem os pensamentos libidinosos que estes olhares revelam. Mas, desinteresse assim por completo?
Homens! Se não tê-los, como entendê-los? E que me perdoe Vinicius!


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O avesso do avesso

A sua predisposição para brigar me incomodava. Era como se tudo nela estivesse à flor da pele. E qualquer toque dispararia a bomba. Trabalhávamos juntas havia dois anos. Mas não conseguíamos ser mais do que eu e ela. Nunca nós.
Um dia ela entregou-me um atestado. Entraria em licença para fazer uma cirurgia. Nada mais me disse. Entendi que queria preservar alguma fragilidade e respeitei. Uma semana depois ela ainda estava hospitalizada e me preocupei. Fui visitá-la. Como diretora da escola e como alguém que gostaria de ser sua amiga.
Recebeu-me com espanto e sem nenhum entusiasmo. Permaneceu quase muda até que eu me levantei para sair. Pegou em minha mão e começou a chorar. Era a primeira vez que alguém se preocupava com ela desde que resolvera assumir que era uma mulher vivendo num corpo masculino.
Foi então que eu soube. Olhei-a, buscando traços masculinos que nunca percebera. Ela percebeu minha curiosidade. Como um dique rompido, contou-me toda sua vida. Toda sua luta para vencer o preconceito. Primeiro, da família. Depois, da cidadezinha onde morava. Desistiu de lutar e buscou o anonimato na cidade grande. Mas trouxe junto as feridas ainda abertas. E a desconfiança típica de quem não quer mais ser ferida.
Estava ali fazendo sua última cirurgia. A que definitivamente acabaria com qualquer marca masculina num corpo que guardava uma alma que nascera feminina.
Saí de lá entendendo a agressividade que sempre me incomodara. Desejando verdadeiramente que ela deixasse naquele quarto também as marcas de tudo que sofrera.
Saí de lá um pouco mais tolerante, um pouco mais corajosa, mais humana enfim. Transexual, homossexual, heterossexual – somos todos gente. Gente que sente.
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"Eis que me livro de um laço
mesmo que outro
já esteja sendo jogado nos meus passos."


Estes versos são do poeta Dauri Batisti. Não sei qual a intenção do poeta – isso só a ele pertence. Sei do quanto os versos me falaram nesta minha volta à escrita. Por isso, contorno os temas combinados aqui e os coloco entre aspas.
Laços me lembram fitas coloridas enfeitando vestidos e cabelos. Mas muito mais que enfeitar, eles unem pontos, criam aconchego onde antes eram pontas soltas, preenchem espaços onde antes era vazio. Enlaçar é um verbo de ação. Conservar os laços é uma arte. A arte da aceitação, da tolerância, da cooperação.
Estamos no tempo dos descartáveis. Adulterando Lavoisier, nada se cria, muito se copia e tudo se joga fora. Também é assim com as relações. Os investimentos são pequenos, o reconhecimento é provisório e a tolerância se estica por poucos centímetros. É fato que nos enlaçamos por afinidades, sejam elas quais forem. Mas venho sentindo, de forma crescente e ao contrário dos inúmeros e belos discursos vigentes, que temos cada vez menos habilidade e disponibilidade para lidar com a alteridade, com o estranhamento e com a mestiçagem. Buscamos as semelhanças, mas fugimos das diferenças – talvez por medo de nos descobrirmos nelas.
Um dos meus grandes amigos é um judeu ortodoxo. Por várias vezes já nos afastamos por compreendermos o mundo sob sentimentos diferentes. Por várias vezes nos reaproximamos por entendermos que não mudamos um ao outro com a nossa radicalidade. Somos mudados, substancialmente, com as ínfimas transformações que cada um de nós imprime em si mesmo na convivência com as diferenças. E assim nossos laços vão se conservando – apesar das distâncias entre nossas crenças.
Por outro lado, um dos mais sólidos laços que eu conservava foi desfeito. Depois de quase trinta anos de convergências e divergências, foi preciso desatá-lo para que o respeito e a cooperação sobrevivessem. Caiu o laço da convivência, nasceu o laço da amizade. O que doía na carne às seis da manhã, tornou-se manjar na hora do almoço. O que era irritante ao jantar, virou diversão ao luar. O que me faz ter a certeza de que laços não precisam necessariamente virar nós ou serem descartados como garrafas pet.
Laços não são nem precisam ser definitivos na sua essência. Mudam. Transformam-se quando existe respeito por nós mesmos e pelas nossas diferenças, quando existe a disposição para o investimento em nós e no outro. E transformados, viram novos laços. E entrelaçam os nossos passos.
Deixar-se surpreender sempre pela novidade dos sentimentos e não tentar equacioná-los pela lógica das nossas certezas pode ser uma boa forma de entrelaçar nossos braços e passos. Eu acho.


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Em parceria com Adelita:
Mercedes Sosa e Fito Paes - Vengo a oferecer mi corazon
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“A gente se acostuma para poupar a vida”
Marina Colasanti

Cheguei em BH pisando devagar. Por medo de não querer voltar. Os olhos pareciam não dar conta de olhar. Saudade demais para caber dentro deles.
Era dia de trabalho e eu já havia me esquecido como a capital dos metais fervilhava em horário comercial. Minhas últimas visitas foram sempre em fins de semana, quando a vida tinha uma outra ordem. E a metáfora das formiguinhas me ocorreu assim que entrei na Afonso Pena. Um mundo de gente indo, outro mundo voltando. Cada qual voltado para seus próprios pensamentos. Mas formavam um conjunto interessantíssimo de ser observado.
Não vim para observar – pensei comigo. Mas como não me perder na variedade que uma grande cidade me apresentava? E fui dividindo a atenção entre pessoas e pontos da cidade que me traziam sorrisos à lembrança. A escadaria da Igreja São José, uma das mais antigas, me lembrou das muitas vezes em que matávamos aula tomando sorvete e olhando quem entrava e saía do cine Acaiaca.
O imponente cinema não existe mais. Também não existem mais estudantes nas escadarias da São José. Existem mendigos, crianças pedindo comida, crianças correndo entre os carros, cola, baseado, tíner. Existe vida - bonita e nem tão bonita, querida e nem tão querida.
E de esquina em esquina, fui revivendo as minhas experiências – antigas e nem tão antigas. O mais interessante é que saí de BH há apenas alguns anos, mas era como se fosse há um século. O meu olhar era novo. Eu via o que certamente não veria se ainda morasse lá. Isso me fez pensar no quanto nos integramos à paisagem e à vida das cidades e das pessoas. A ponto de perdermos o melhor ou o pior delas.
Fico me perguntando se não é assim em tantas das nossas relações. Com a cidade onde vivemos, com as pessoas com as quais convivemos, com as situações que vivenciamos e presenciamos. Nossas relações vão se tornando lineares, nossas reações cada vez mais insensíveis, nossas emoções quase imperceptíveis. Perdemos o melhor - e o pior - delas porque o nosso olhar se estreita, nossos gestos se repetem, nossos sentimentos se acomodam.
A gente se acostuma. Mas deveria?


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Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida.
(Milton Nascimento e Fernando Brant)

É com Milton e Fernando Brant que revivo um dos meus mais significativos encontros. Aconteceu em Carrancas, uma bela cidadezinha mineira que, apesar da novela global, nunca havia me interessado tanto. Foi em Carrancas que a conheci. Uma Maria qualquer que se dizia Benedita. Chegara ali no lombo de um burro, puxado por um tropeiro nordestino. Contou-me várias histórias naquele jeito de ir e voltar que só os muito vividos conseguem ter. Achava que tinha mais de cem anos, mas não tinha certeza. Nunca teve uma certidão de nascimento e sua vida valera uma garrafa de cachaça, dois pedaços de rapadura e o filhote de burro que a trouxera. Foi assim que seu marido a ganhara do pai. Foi assim que, acreditava, garantira alguns anos de vida aos irmãos que ficaram no sertão nordestino.
Quando a encontrei, estava a acariciar as fibras da bananeira. Mãos estranhamente firmes teciam com destreza mais uma peça do belo artesanato regional. Fiquei ali, fascinada pelos movimentos dos dedos, ouvindo-a e sentindo a singeleza da vida. De suas mãos vi sair mais uma obra das que pululavam pela cidade. E entendi que, muito além de ser sua sobrevivência, cada obra feita era uma parte de sua vida incrustada nas imagens que a tecelagem revelava. Ela não as vendia todas. Parte delas era doada para que fosse vendida em prol do orfanato local. Eu a amei ainda mais por isso. Deixei-a com pesar. Eu que nunca fora muito paciente com histórias repetidas, saí plena da vida de Benedita.
Carrancas e Benedita estão hoje entrelaçadas em minha memória como ponto de referência. E Benedita será sempre como um parâmetro para mim – eu que orgulhosamente ostento meus diplomas e minhas fomes. Ela, na sua simplicidade, me ensinou que sabedoria está muito além do conhecimento. É preciso estar na vida prestando atenção nas pequenas coisas, valorizando, acima de tudo, a vida em todas as suas formas, tons e sabores. É preciso ter gana sempre.
Não sei se você concordará comigo, mas penso que viver é deixar alguma marca. Nem que seja a marca que esta mulher - pequena, anônima e analfabeta - deixou em mim: a marca da fé na vida.

Milton Nascimento - Maria, Maria


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"Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra"


(Chico Buarque )


A cada vez que pintava uma idéia, eu disparava a escrever. E a tal idéia finalizava no primeiro parágrafo. Foi assim durante quase uma semana. As idéias iam surgindo aos borbotões. E com a mesma rapidez, morriam. Cheguei mesmo a pensar: como uma cirurgia no pé é capaz de interferir diretamente nos neurônios? Não é, claro. Mas pode interferir no meu estado de espírito. E interferiu.
Que eu me lembre, este foi meu début na imobilização geral. E por ter sido imobilização, não houve valsa, nem sapatos de cristal. Que seja também o último episódio deste anti-conto de fadas, ainda que eu tenha que ferir os nós dos dedos batendo na madeira.
Sempre fui desastrada e, em conseqüência, já imobilizei braços, mãos, pernas e pés. Nada que me impedisse de exercer todas as funções que me davam prazer e também aquelas que eu queria mandar para o inferno. Desta vez, não tive outra escolha senão sentir saudades das minhas charmosas trombadas, seguidas de gargalhadas descoradas, e assistir as palavras passando por mim como foguetes inconseqüentes – como se eu precisasse dos pés para alcançá-las. E sobreveio um horrível sentimento de incompetência intelectual. A Palavra estava ali, mas eu não era mais capaz de dar a ela sequer um traje simples, ainda mais a roupagem metafórica que foi sempre minha grande busca. Enlouqueci.
Tirando o exagero, quase enlouqueci. Não sei qual é a importância da Palavra para você que me lê. Talvez nem dê importância a incompetências momentâneas, como esta. Mas para mim, é crucial. A minha relação com a palavra sempre foi íntima, idílica e amorosa. Começou ainda nos tempos da delicadeza. Menina tímida, tive a fala paralisada. Em contrapartida, os pensamentos ganharam asas. A única saída foi virar uma pessoinha letrada e colocar no papel o que a voz se negava a dar forma. Aconteceu cedo. Muito antes do que se esperava. E o encontro com a palavra foi a abertura das minhas janelas para o mundo. Desde então, respeitamo-nos. Ela, na sua imensa capacidade de construir-provocar-destruir. Eu, na minha imensa pretensão de tê-la sempre andando comigo de mãos dadas, como parceira de todas as horas. E sempre foi assim. Até viver esta estranha experiência de completa castração do meu intelecto.
Tenho a impressão de que este estado castrador ainda não terminou. Acredite ou não, este texto está sendo tecido laboriosamente há dias. Já o deletei vezes sem conta e outras vezes sem conta, o recomecei. Mas não estou mais desesperada. Meu lado racional já travou todas as batalhas que lhe competia e está começando a ganhar espaço na minha loucura. E com isso, aprendi um pouco mais sobre mim – quase sempre aprendemos de forma dolorosa. Não sou tão preguiçosa quanto acreditava ser. Sou desejosa da preguiça. Talvez porque nunca tenha realmente tido tempo para o ócio, eu o deseje como se fosse o pote de ouro que o arco-íris esconde. Mas agora sei. Ele é ilusoriamente reluzente. E, embora romântica e sonhadora, não sou afeita a ilusões.
Acho que me perdi. E agora? Como termino?
Já sei. Como ainda há em mim resquícios desta luta com a Palavra – ou com a falta dela - é melhor não correr o risco de descortinar ainda mais o meu emburrecimento. Afinal, como diz Chico, a palavra me escreve desatenta. Paro por aqui. Simples assim.

* a imagem do post é um desenho de Beti Timm

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A dama e o cafajeste

Recebi, por e-mail, um texto intitulado: A dama e o cafajeste. Embora não leia tudo que recebo, fui atraída pelo título - cafajestes me atraem irremediavelmente! Abri. Era uma entrevista com Suzana Vieira, contando detalhes sobre sua vida com seu último marido. Tempos atrás ouvi falar an passant sobre o caso, mas não me interessei. Depois de ler a entrevista, continuei não me interessando pelos detalhes e reafirmando o que sempre achei da atriz: ela vive a vida da forma que escolhe viver. E ponto.
Ficaria nisso, não fosse uma observação que recebi:
- Você leu a entrevista da Suzana Vieira? A que ponto chega uma mulher para negar o envelhecimento e ser bem comida!
Indignei-me. Profundamente. Em primeiríssimo lugar, porque a observação foi feita por uma mulher. E ela deveria saber que mulher, quando se entrega, é muito mais pelo emocional do que por apenas sexo. Nenhuma mulher vive com um homem tão-somente por ser ele um garanhão. Além disso, sexo bom não implica em casamento, seja ele oficial ou oficioso. Implica em reciprocidade - ser bem comida e comer bem. Os garanhões de plantão que me perdoem, mas eles por si só não garantem uma boa transa.
Em segundo lugar, o envelhecimento da carne só implica em envelhecimento emocional nos pobres de espírito. Não há idade para se apaixonar. Não há idade para se viver as loucuras da paixão. Não há idade para correr o risco de ser feliz.
Apaixonar-se por um cafajeste é um risco que qualquer mulher corre, independente da idade, independente de ser bem ou mal comida. Enganar-se em relação à parceria escolhida é um risco que todos correm - independente de gênero. Mas fugir dos riscos será viver? Não fujo. Pago o preço e estou sempre aberta às emoções de uma grande paixão.
Qualquer preconceito me incomoda. Este me incomodou bastante. Será que consta no grande livro da Constituição Brasileira que uma pessoa após determinada idade deve se recolher às lembranças do que já foi? Será que a Bíblia, o Alcorão, a Tora ou qualquer outro livro sagrado estabelece que envelhescência é sinônimo de sepultamento da sexualidade e das emoções? Ou tudo isso é fruto dos conceitos arraigados e propagados pelos guardiões da moral e dos bons costumes?
Credo! Não quero jamais ser assim. Nem viver sob estas regras hipócritas e castradoras que vão nos secando e nos transformando em coadjuvantes da nossa própria vida. Quero mais é ser eternamente sujeito de todas as ações e fomentar o meu espírito com as emoções de amar a mim, a vida e o amor.
Afinal, a idade de amar é hoje, agora, sempre.
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Reinventando o cais


Voltei! Voltamos!
Depois de um longo tempo vendo esta página com o mesmo texto, a mesma música e as mesmas intenções, saio das aspas para inventar um novo cais.
Acho que deveria fazer uma lista de boas intenções. É de praxe começar o ano tomando novas resoluções, como diz nosso companheiro Jens. Mas como Drummond, sou gauche. Não consigo sequer pensar em algo para começar tal lista. Na verdade, estou tão feliz nos caminhos que escolhi que só quero segui-los cantarolando. E se por acaso tropeçar em alguma pedra, haverá sempre a opção de chutá-la, apesar do risco de engessar novamente o pé. Então, nada de boas intenções. Talvez precise mesmo é das más. Ando boazinha demais, normalzinha demais e preguiçosa demais.
E por falar em preguiça... ah, como é difícil romper o círculo preguiçoso dos últimos cinco dias – minhas férias tão sonhadas. Preguiça de pensar, de retomar a vida dita produtiva. Uma vontade insidiosa de pegar carona no rabo de um cometa ou me deixar levar por um barco sem vela em mar infinito. Não se assuste, meu leitor. Não amaluquei. Apenas estou a exercer o sagrado direito de espreguiçar letras e adormecer palavras, nos meus últimos momentos de umas férias que duraram pouco, mas foram intensas. Um luxo para quem não imaginava ter mais que 24 horas de descanso compulsório. As lembranças de sol, piscina, risos e chuva de champanhe (com direito a beijos roubados, olhos arregalados e a renascida certeza de que alguns amores não morrem jamais) são tão luxuriantes que quero gozar um pouco mais a imaginária vida de rainha.
Mas prometo: estou a acordar. O ano ainda é um bebê e bebês costumam engatinhar antes de nos fazer correr atrás deles. E este ano promete um sem-número de correrias. Embora não seja pessimista, não há como negar o que estamos vivendo. A Natureza em fúria cobra a ação predadora do homem nos colocando sob águas em profusão. A crise estadunidense espalha-se pelo mundo, abalando e colocando nuvens escuras sobre o berço esplêndido brasileiro. Nada que vá me fazer perder os sonhos. Nem você, eu desejo. Afinal, o grande desafio que se apresenta é ser feliz, apesar das adversidades. E seremos, se muito quisermos.
Estou com sono. São altas horas do primeiro domingo de 2009. Estou a acordar, mas agora preciso dormir para me encher de paciência e encarar o cotidiano sem poesia do mundo empresarial que balança à beira do meu abismo particular. Vou mandar este rascunho para minha editora. Ela que se vire e faça parecer que sou uma colunista interessante. Mas se você estiver lendo este parágrafo, é sinal de que ela me ama. Só quem ama é capaz de ouvir e entender estrelas. E autorizar a publicação deste final de besteiras.

PS. Ela é capaz de ouvir e entender estrelas. Mas é também capaz de puxar orelha de colunista preguiçosa!


midi: cais - flavio venturini

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Texto Coletivo

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Férias, s’il vous plaît!


Eram seis fragmentos de colunistas tentando se juntar em meio ao redemoinho e um quebra-cabeça ficando difícil de ser montado. Final de ano – tempinho que urge, em que as horas caminham do mesmo jeitinho, mas cada uma parece nos aproximar mais e mais do fim dos dias. O mesmo tempo que é sempre insuficiente para acabar com o cansaço ou para dar conta de fechar o balanço anual.
Resolveram então dar férias ao Palimpnóia. Nossos leitores não merecem pedaços tão desencontrados de nós – disse a sensibilidade feminina. Reunidos, num esforço coletivo dos neurônios, tentariam fechar o ano do jeito esperançoso e simpático, comum a todos os seres humanos sempre que se vêem às portas de um novo tempo. Uma das vozes sensíveis, propôs:
- Gente, vamos escrever uma carta a Papai Noel? É lugar comum, mas querem coisa mais deliciosa do que voltar a acreditar com força no bom velhinho?
A conversa se generalizou e os desejos surgiram, aos borbotões. Os seis, olhos antes cansados e quase sem brilho, voaram pelas montanhas geladas do europeu Feliz Natal e pairaram esperançosos nas portas do Ano Novo. E o texto de fim de ano do Palimpnóia foi sendo tecido.
Euza, sempre metidona a líder de qualquer coisa, tentou organizar a tempestade cerebral, mas foi interrompida por Jens.
- É a minha vez. Sou eu! - exigiu o bravo e combativo jornalista.
- Então começa, bagual dos pampas!
- Na vida real, aprendi: que me importa a mula manca, se quero a tal de felicidade?
E a conversa correria solta sobre cunhados, cachorros e as belas mulheres da vida não fosse a coxuda da editora dar um basta nas linhas do jornalista e com voz racional pronunciar:
- Afinal o que você deseja, Gaúcho?
- Quero dinheiro e mulher. Ou vice-versa.
"O Jens não vale nada", pensou consigo a deusa Loba. Mas foi a gostosinha da Aline quem fechou seu espaço, dizendo:
- Espera, agora é a minha vez de falar.
Todos se calaram, expectantes.
- Esse ano foi bom para mim. Então, vou pedir a favor do próximo. Quero que todos possam viver com dignidade, e nisso já vem o respeito e muitas coisitas mas embutidas. Sei que é um tanto quanto utópico, mas todos os desejos são meio assim, não? E basta esforço para que saiam desse campo para se realizarem. Ah! Vou fazer um pedido pra mim, sim! Quero paixão! Muito mais do que tive nesse ano! Preciso dessa sensação para levantar da cama todos os 365 dias do(s) ano(s). Sua vez, Zeca. O que desejas?
E assim, a gostosona da Aline passou a bola para o requintado Zeca. E o pobre Zeca que, de requintado não tem nada, coitado!, tremeu nos joelhos ao receber a bola passada pela gostosona da Aline.
- É que, nessa época de tudo a jato, os dias se sucedem e acabo ficando na mão, chupando o dedo, literalmente sem pegar ninguém. Então, caro Noel, faça esse favor pro Zequinha: traga-me um par de coxas sobre pernas bem delineadas que, apoiadas sobre pés delicados, deixe entrever fartas cadeiras (fartas na exata medida do desejo) sustentando um torso bem torneado, com belos relevos como mamões, ou melões (essa onda de mulher fruta!), ampliando um belo colo sobre o qual, elegante pescoço e uma linda cabeça ornada por bela cabeleira cuja cor, na verdade, não importa. Mas os lábios, ah! Os lábios! Precisam ser carnudos e vermelhos, prontos para a paixão revelada pelos olhos de ressaca ou de tesão desbragado.
A Shi, entrevendo uma tal Capitu no desejo do Zeca, tomou a palavra:
- Ah, tem que ter fidelidade: fidelidade ao próximo, ao que se acredita, a si mesmo. Mas não quero saber de paixão não, cansei. Prefiro o sexo, só ele e ele só! De qualquer maneira, o que eu preciso que o bom velhinho me conceda é saúde, pois tendo saúde eu vou ter trabalho, dinheiro e, claro, muito sexo!!!! Só espero que Papai Noel fale português... E tu, Queridácio, já fez a tão famosa "listinha" para o bom velhinho?
- Fi-lo Shi, eis aqui: Papai Noel, caro velhinho, para o Jens traga dez caixas de Viagra, seja mais uma vez bonzinho; ao voraz coração de Aline, triplique a paixão desmedida em pique; dê ao Zeca a mulher pedida, feita a bisturi sob medida; que Shi receba o seu exatamente nas dimensões da sua altura o que lhe couber; a mim, manter o conseguido até agora como fim, para entregar à Loba todos os louros merecidos e os morenos também.
Euza, a editora Loba, retomou a palavra pondo fim à viagem dos outros cinco. Preocupada com o tamanho do texto e com a pouca disponibilidade do leitor, declarou:
-Ah o meu desejo é simples! Quero que em 2009 tenhamos todos - nós, nossas famílias, amigos e leitores – um tanto mais de coragem. Porque tendo coragem, ousaremos mais, mudaremos mais, amaremos mais, seremos mais felizes!
E o texto que pretende ser a presença do seis até o dia 4 de janeiro finalmente ocupa o espaço de direito, terminando assim: Feliz Natal para todos e um grande 2009!!!


midi: what a wonderful world - louis armstrong


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EntreAspas

"Continue com fome, continue bobo"


Dia destes, me perguntaram por que mudei toda a minha vida num momento em que estava realizada e estabilizada econômica e profissionalmente. Lembro-me de ter respondido: gosto de mudanças. Ou algo parecido. Sem dúvida, resposta genérica. Destas que parecem frases feitas e que andam na ponta da língua. Não por desconsideração ao meu interlocutor, mas talvez porque mudança seja parte integrante da minha vida e resposta para muitos dos meus atos. Depois pensei sobre. E me lembrei do discurso de Steve Jobs.

Jobs, o brilhante executivo criador do sistema operacional Macintosh, maior concorrente do nosso velho conhecido Windows, faz neste discurso a trajetória de sua vida. Com seus altos e baixos, seus fracassos e vitórias. E o termina falando de morte e de vida – especialmente de vida. Deste discurso, tirei o título entre aspas. Deste discurso, veio a vontade de escrever este texto.

Algumas pessoas se espantam com minha espontaneidade, com o que dizem ser irreverência, com minha sempre disposição e disponibilidade para viver o coletivo, com minha constante busca do novo e, especialmente, com a fome com que me jogo na vida. É fato que nossa carga genética é responsável por grande parte do que somos. Mas também é fato que somos muito do que vivemos. E vivi um bocado em poucos anos. E foi neste pouco tempo que muito de mim foi moldado.

Eu mal havia saído da adolescência quando vi a cara feia da morte. Embora eu já estivesse acostumada a flertar com ela nas minhas loucas investidas contra um sistema que amordaçava nossas bocas e nos fazia sonhar com a liberdade, nunca a havia sentido tão perto de mim. Foi um acidente. E como a maioria dos acidentes, idiota. Costumo me lembrar dele com certo humor, mas os minutos que passei pendurada sobre o nada mudaram por completo meu olhar sobre e para a vida.

Desde então, aprendi a viver cada dia como se fosse o último. E sendo o último, cada dia me nasce como uma caixa de segredos que tenho a obrigação de desvendar. E o mais importante: cada dia é um presente. Como uma fruta madura que eu chupo até o caroço, ainda que um pouco do caldo me escorra pelos cantos da boca. Este presente é meu, ninguém vai vivê-lo para mim. Ninguém além de mim poderá sentir o sabor da minha própria vida. Nem dar a ela a cor mais quente ou mais brilhante. E se é dado a mim o direito de escolha, opto por ser boba. Opto por acreditar que o mundo tem jeito, que faço minhas próprias regras, que posso fazer diferença ainda que para poucas pessoas. E opto por ter esta fome de vida que me faz inteira. E sendo, viver a vida como a quero: nova a cada dia, minha a cada hora.

Mas para que esta seja a minha verdade, o meu caminho, a minha oração, é preciso mais que a lembrança daqueles minutos pendurados no abismo. É preciso continuar sendo boba, é preciso continuar com fome.


O discurso de Jobs pode ser lido na íntegra
aqui no blog Errantes navegantes.

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EntreAspas

"O que será, que será?"


A colunista chega de viagem, olhos recheados de asfalto e acidentes, memória colorida de cálidos afetos e mente em greve branca. Senta-se à frente do micro, abre mil e uma páginas em busca de uma epígrafe que, colocada entre aspas, abale suas estruturas e crie as conexões necessárias para um novo e belo texto.

Começa por Chico Buarque. E descobre: ele é extenso demais para uma noite de domingo. Pensa em Clarice Lispector, Cecília Meireles, Elisa Lucinda ou qualquer outra mulher que possa lhe dizer algo interessante. Mas por que uma mulher? Talvez porque o parceiro Dácio não tenha amassado o barro da companheira de Adão. Ou apenas para fugir do tema anterior. Passeia por várias delas, mas a tela continua sem o rachadim.

Ela pensa: se tudo continua como dantes no castelo de abranches, vamos requentar o café. Cinco anos escrevendo quase diariamente, é impossível não ter algo que possa ser remakeado. Com alguma bijuteria, um ruge bem vermelho, um batom brilhante e aquele rímel sedutor, não há Margareth Thatcher que não possa virar Dilma Rousseff.

Mas e aquele leitor que perde minutos de seu precioso tempo em busca de algo que tenha um mínimo de qualidade? O que diria ele se soubesse que não houve preliminares, nem se buscou a intenção do prazer infinito? Não! Mesmo numa rapidinha há que se ter alguma novidade.

E a colunista apóia o rosto numa das mãos enquanto a outra faz o mouse peregrinar pelos vários documentos do seu Word. Descobre várias páginas com apenas uma palavra quebrando a imensidão do branco. Sabe que um dia, quando foi deixada ali, cada uma daquelas palavras tinha várias conexões no seu pensamento. Hoje nenhuma lhe diz qualquer coisa. São apenas palavras soltas – testemunhas da sua pretensão de ter no cérebro um HD infinito.

Fecha o Word. Fecha os sítios que a ligam ao mundo das letras. E pensa: por que não se pode falar por imagens? E a primeira imagem que encontra, lhe toma os olhos e o coração. Meio rosto de Barak Obama e uma comprida lágrima a dizer mais que seu discurso de posse. De imediato, lembra os versos de Raulzito: sonho que se sonha junto, é realidade. Obama é o sonho de um (inconsciente ou imaginário?) coletivo mundial.

Assim pensando, volta novamente a Chico:
E ela, a tecelã
Vai fiar nas malhas do seu ventre
O homem de amanhã

E conclui: agora que a tecelã do amanhã são os ombros corajosos de Obama, o mundo volta às pequenas-grandes esperanças individuais. Mas será que estas tecelãs individuais estão centradas na construção do amanhã? Ou continuarão sendo os pequenos-grandes sonhos que se sonha só?

Não há como saber, senão adaptar Chico ao momento e colocar entre aspas a pergunta a cada leitor:

“O que será, que será, que todos os seus órgãos estão a clamar?”


midi: À flor da pele – Chico Buarque e Milton Nascimento

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EntreAspas

“Stop.
A vida parou
Ou foi o automóvel?”


Sou muito audaciosa! Começo colocando entre aspas o meu poeta maior. Mas a idéia é esta: tirar, de quem sabe, um pingo de inspiração.

Sem dúvida este poema de Drummond demonstra uma grande inquietação existencial. Esta que nos toma vez ou outra e que nem sempre nos damos conta. Mas se você, leitor, pensa que vou enveredar por estes caminhos, enganou-se. A minha inquietação é concreta, palpável e quase sexual. Para ser mais correta: paranóica. Completamente em convergência com o nome deste espaço. Estou parada. Imobilizada na vontade de fazer algo que lembre vagamente que tenho um blog, mas que se distancie dele como gato de água fria.

E nesta briga para inovar, pus o barco sem vela em mar aberto. Imagina você que me peguei perguntando se em algum lugar deste planeta poderá existir outra pessoa que tenha nascido na mesma hora, no mesmo dia, mesmo mês, mesmo ano que eu e que seja do sexo masculino. Concluí que sim. Muitas. Mas não parei aí. Fui mais longe. Vesti a pele de uma destas pessoas e resolvi me sentir como ela.

O primeiro passo foi tentar amortecer o meu feminismo para abrir os braços ao machismo. Porque não há dúvidas de que estamos falando de um belo representante do chauvinismo. E pintou a primeira dificuldade. Imaginar uma cabeça pensando entre as minhas pernas foi o grande desafio. E olha que eu ainda não havia chegado ao estágio da tal cabeça parar de pensar e começar a pulsar. Não vou conseguir. As minhas pulsações são internas e vão direto ao coração.

Sou teimosa. Não desisti. E para provar a mim mesma que conseguiria, resolvi colocar em prática a experiência. Endireitei os ombros e até ensaiei uma voz mais grave. O foda é a falta de testosterona. E aquela coisa balançante entre as pernas. Como será que um homem consegue andar com o saco balançando ou enforcado dentro das calças? Fui em frente. E passei a imaginar o meu jeito de andar. Não rolou. Andar neste momento é uma das minhas impossibilidades. Olhei o gesso, o gesso me olhou e quase desisti de ser homem.

Mudei a direção das minhas preocupações e passei a pensar no assédio masculino. Homem que é homem tem que saber deixar uma mulher molhada só com o poder do olhar. Nem sempre. Lembrei daqueles peões da construção onde passo todos os dias. Eles não olham. Eles comem com os olhos. E ao invés de molhar, eles nos secam. Não. O homem que estou vestindo tem certa sofisticação. Machão, mas machão sofisticado. Parei. Estou sendo preconceituosa. Para me sentir como homem teria que ir mais fundo. Talvez vestir a pele de um peão mesmo. Ou de um metalúrgico. Mais bonito que o Lula, please!

E nesta pré-construção de personagem, perdi o rumo do dia. Acordei com o grito do telefone e os trocentos papeizinhos sobre a mesa me olhando feio. Ah o dever. Guardei, num cantinho da única cabeça que tenho, os pedaços do eu-macho.

E sem saber se foi a vida ou foi o automóvel que parou, deixo descansar em paz o Poeta (meu conterrâneo, que orgulho!) e paro por aqui. Quem sabe o que me aguardará na próxima esquina? Ou no próximo texto?

Macho man - Village People

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