Não costumo meter conversa na paragem do autocarro.
Não gosto de criar falsas expectativas acerca de possíveis laços que nasçam de coincidências absurdas. No absurdo de certos dias é o máximo que consigo fazer por alguém.
Naquele dia tinha acabado de passar um para o Inferno, mas ia cheio. Não faz mal, espero mais. Um jovem dirigiu-se a mim e perguntou se me chamava Orlando. Respondi que não, tinham-me chamado António há muitos anos, tinha-me ficado para sempre. Não adiantei mais nada, ao longe ouvia o ronco de outro motor, talvez tivesse mais sorte.
Semicerrei os olhos. “Parte Incerta”. Há-de servir.
- Passa ao Purgatório?
“- Se lá chegarmos.” Respondeu o condutor, com menos esperança que eu. Subi. Dali ao Inferno iria a pé, não devia ser longe.
É curioso apurar as coisas que nos passam pela ideia à medida que a farfalheira de um motor se tenta intrometer nas nossas vidinhas pacatas. Recordei o jovem e a sua pergunta.
Ora eu, que quando mal sabia que me chamava António já era Mourão, que sou Amália e Paco Bandeira, Florbela, Tonicha, Carlos Paião, Salazar para o mal, Madre Teresa para o bem; eu que sou Simone e Paulo de Carvalho também, Fernando Tordo e Ary dos Santos, que sou Alfredo e Marceneiro, Afonso e Viriato, não por esta ordem nem por qualquer outra. Eu que fui Vickie normando e Abelha Maia, Super-Homem e Super-Rato, que andei à chuva na praia, que me perdi no mato, antes de aprender a ser homem. Eu que fui Laranjina-C e sou Coca-Cola, que sou Picasso e Gauguin, Maluda e Fernando, sou também Pessoa; sei pintar à pistola; às vezes bicho, sou Saramago; António Antunes, e Lobo amiúde, que sou Camilo Castelo, dizem-me Branco, e a quem dizem essa de também ser Eça, que sou bela peça; também diria que sou Jorge e que sou Amado, e venero a saúde quando estou constipado. Que já fui rei e também princesa, Mário Viegas, e outra vez Branco, desta feita de Freitas. Que quando penso o que faço aqui, tenho atitudes que não lembrariam Dali, se grito a pedir uma pequena ajuda fico ansioso por medo de que alguém me acuda. Fui ainda Platão e platónico, e Aristóteles; fui mais gramático que matemático; também fui Sócrates, mas o antigo; fui Bocage, e antagónico, fui umas vezes sacana e outras amigo. E que nasci de uma corda agarrada ao umbigo. Que já fui pai e tentei ser mãe; já fui neto, tio e primo também. Eu que sou Rui e que sou Veloso, que sou Jorge outra vez, e sem dúvida Palma, que falo de Hitler e fico nervoso, que sou Lenine e matei Mussolini, que falo de Estaline com uma dor na alma, que vi fitas de guerra e de Pasolini, e filmes de amor, que dancei de alegria e gritei de dor, que choro sem saber às vezes porquê e rio para espanto de quem nem me vê. Sou tantos nomes que já me esqueci e outros tantos que também nunca ouvi.
O autocarro ia andando, ladeira abaixo e eu, o António, ia pensando que sou tantas coisas mas, tanto quanto acho, não sou Orlando.
Não era longe. Bati à porta. Pelo ferrolho uma voz cavernosa perguntou-me:
- És o Orlando?
- Não, sou o António. Se calhar, venho adiantado.
- Vieste enganado. Estão à tua procura na paragem do autocarro.
Não costumo meter conversa na paragem do autocarro.
© CybeRider - 2011
17 comentários:
minha nossa que rol...
não costumo ler crises de identidade... mas esta... ui nem me atrevo a comentar... o meu engenho não vai a tanto, quem sabe se fosse "antónio" ou tão-somente "orlando"...
Olá Alyia!
Às vezes pretendemos um destino, e fazemos tudo para lá chegar. Nem sempre o destino é o nosso, por nos confundirmos com a nossa identidade ou porque nos confundiram com alguém e fugimos ao esclarecimento. Por vezes também conseguimos acordar no meio de uma brutal anedota. Tenho de ter cuidado para me certificar que
a vida que trilho é de facto a minha, e que as suas consequências, por tenebrosas, são de facto as que mereço.
Eu também não! Mas as paragens sempre levam a delas adiante...
Um texto fabuloso!
Dou-te os meus parabéns (mais uma vez) por seres assim!
conheci um Orlando, mais sonso do que brando, e há aquele que nunca conheci mas de que eras capaz de gostar, lembras-te? o Orlando Furioso que enlouqueceu depois de enamorado.
coisas
abraço
As paragens, Mário, são ponto de chegada e de partida. Para quem chega é o fim daquela viagem que para outros é um início. Para os diálogos é diferente, serão contidos e previsíveis, tendencialmente votados a uma morte súbita. Iniciá-los e alimentá-los requer uma tenacidade que não domino. Tens razão, sou derrotado por elas muitas vezes.
Agradeço-te, mfc! A tua opinião dá-me alento. Mas é a vida que, ao levar-nos para parte incerta, nos mostra as paisagens que descrevemos.
Orlandos são como Marias, Zé. Tantos e tão poucos, como os Antónios. Havia de gostar do Furioso, a fúria da paixão é potencialmente atraente. Já a loucura repudiamo-la enquanto nos convencemos de que não a temos, acho que depois já não nos incomoda. É como dizes, coisas.
Abraço
!!
Um abraço,
com amizade,
Jorge
Obrigado pela visita, Jorge!
Um abraço, meu amigo!
António
Às vezes passo por aqui e ... paro!
fico por alguns minutos com vontade de ler ... mas também cheio de medo, porque o que leio é o desnudar do que eu próprio vejo, penso e sinto. A tua escrita raramente me permite uma leitura comfortável, e distanciada, acabo sempre por me encontrar logo nas primeiras frases e depois não consigo resistir e vou sempre até ao fim de texto. És meu contemporâneo, eu sei, mas a identificação vai muito para além do reconhecimento... muito obrigado, mesmo por aquilo que a tua escrita me faz: sufoca, envergonha ... doi, mas é bela!
Sabes? É curioso deixares esse comentário neste texto em particular. Agora, fico a olhar para o que escreveste e não me lembro de ter escrito isso. Também comecei a ler a medo, se fui eu que o escrevi revela uma faceta minha que não conheço, significa que de repente a minha auto-estima aumentou tanto que estou a ponto de verdadeiramente perder a minha identidade, para além da memória que já terei eventualmente perdido. Agora que levantei esta lebre, só tu e eu sabemos a verdade, para todos os outros isto poderá ser apenas um apontamento da minha súbita esquizofrenia, e não me importo. Nunca me perguntaram a razão de ter escrito no subtítulo do blogue aquela frase, mas a ti, que revelas uma filigrana rara de sentimentos, posso confessar-te que se a História rezasse dos fracos, as minha palavras não teriam nenhuma utilidade para mim. São aqueles de quem a história não reza o meu móbil, convencido de que a única razão da sua aparente fraqueza é o ostracismo a que os votam, alguns chamam-lhe sorte, coisa em que não acredito. Gostaria que as pessoas de alma pura se identificassem assim com o que escrevo, isso faz do mundo um lugar melhor para eu viver. Obrigado por me dares essa esperança, nada me faz duvidar da tua honestidade e consequentemente o medo inicial era injustificado. Espero que encontres a identidade em muitas outras coisas da vida, saberás que estamos no bom caminho, o que quer que isso seja.
Caro CybeRider,
Sozinhos não somos ninguém!
Mas às vezes somos uma soma de todos!
Por tu és tudo isto e mais alguma coisa!
Ou seja, és o António!
Olá, E... !
Somos o somatório que referes, mas às vezes gostava de saber se os juízos que faço são verdadeiramente meus ou se sou mero veículo de uma infinidade de coisas. Resistir a essa forma de manipulação tem riscos e pode pagar-se caro. A solidão que mencionas nunca apetece.
nomes!
Já vou!
:)
Daltonismo, dislexia, iliteracia ou analfabetismo! Uma terá de ser, ou duas, ou todas...ou nenhuma! Não atendemos pelo que nos chamam, não nos chamam pelo que atenderíamos. Entramos nas "caminetas" erradas com intensões de sermos levados a destinos que tomamos por inevitáveis.
Mas que raio de viagem pensamos nós que temos por fazer?
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