sábado, 19 de fevereiro de 2011

Carta a um filho

Meu filho,

Tenho a dizer-te que pertences a uma estirpe antiga. A mesma a que pertencia o primeiro homem que traçou no chão um limite e usurpou um pouco do que era de todos e lhe chamou seu. Nesse dia determinou também a forma mais antiga de exclusão, aquela que ficámos fadados a esquecer, a exclusão pela propriedade.

Só pelo amor que te tenho, e por seres meu filho, te posso confessar este segredo que nós, os crescidos, guardamos arrependidos e do qual ninguém fala. Este foi de facto o pecado capital. Não importa o que te digam, hão-de mesmo tentar convencer-te, como fizeram comigo, de que é um deus que te condena por amor. Nunca deus algum terá por ti este sentimento que eu tenho e que é precioso, e por isso te digo a verdade.

Também nasci livre, como tu. Só no dia seguinte constatei que afinal os braços da tua avó me protegiam de algo horrendo. Por razão estranha o mundo não me pertencia como pensei quando o vi. Havia outros, com poder para me derrubar, subjugar e me dizer que eu não pertencia ali, e que também chamavam seu ao meu mundo. Durante anos a nossa família acolheu-me, como se acolhe um filho, alimentou-me, vestiu-me e deixou-me ter sonhos; mais até do que os que eles pudessem ter tido um dia. E sei também que sonharam contigo, ainda que não mo dissessem. Dirás que tive sorte, e é verdade. Tentaram a seu modo ensinar-me a obedecer, a tornar-me um escravo dócil de outros, para que a vida me fosse menos dura. Ocultaram-me esse segredo, que tão bem conheciam, e que te conto,  por terem sido também eles escravos vitalícios. Estudei quanto quis, muito mais do que eles alguma vez puderam, às suas custas. Chamaram a isso educação. O mesmo nome que dou aos ensinamentos que tive de te infligir, por saber que esses princípios te ajudariam a conviver com os outros com menos dor. Sei que chamas trabalho ao esforço em que te empenhas para seres "alguém", mas para mim, que sei o que é trabalhar para os ideais de outrem, aquilo que fazes serve principalmente a minha consciência, por compreender o teu sonho que torno meu, enquanto luto a cada dia por conquistar o meu quinhão de justiça que me permita deixar-te um mundo onde possas singrar por ti. Bem sei que as ferramentas que te dê te serão úteis, e sei também que precisarás de todas elas.

A tua geração já nasceu no resultado de um sonho que partilhei. Sonhei que o teu mundo seria diferente, ainda que não pudesse mudar o fundamental da realidade instituída, achei que deveríamos ter o direito de exigir a quem usufrui do resultado da minha força de trabalho, a nossa sociedade, que te pagasse os estudos, a saúde, e o acesso à cultura. Nunca soubeste a amargura de ser excluído destas facetas da vida por falta de dinheiro. Não te posso adiantar muito acerca da justiça, porque essa já nasce inquinada pelo pressuposto de que a natureza que te colocou no mundo tem dono. Sei que a tentarás encontrar, que a aplicarás com saber, e que sofrerás pela falta dela. Precisarás sempre desse bem, como do pão para a boca.

A vida ditou aos teus avós que eu seria português. Ouço-te dizer que este país não te interessa, a amigos teus ouço dizer que os envergonha. Dizes que és um cidadão do mundo. Esse outro mundo que também rejeita os seus, o mesmo que me chama turista, onde sou por vezes demasiado branco, noutras demasiado preto, por ocasiões demasiado pobre e pontualmente demasiado rico. Talvez não saiba fazer em Roma como fazem os romanos, mas sei que aqui posso fazer como fazem os portugueses, ainda acredito até que sou capaz de os levar a fazer coisas por mim, ainda que a minha esperança, como a tua, vá esmorecendo. Há uma diferença, a tua deveria estar viçosa como tu, enquanto a minha vai acompanhando a invernia que começo a ver chegar.

Ouço-te dizer que és parvo, e isso dói-me. A injustiça que te confunde é algo por que não lutei. Dás nomes tristes à tua geração, surpreendes-me. Eu pertenço a uma geração sem nome que viu surgir uma revolução de onde havia submissão sem ter havido revolta, para a maioria não passou de uma libertação de um cárcere que se sentia sem se ver, onde a minoria esclarecida estava arredada à força, incomunicável com a populaça que temia represálias. Os mentores da liberdade reuniram-se e aceitaram o poder da mão de um punhado de militares que, mal armados, se impuseram mais pela lógica que pela força. Até que nascesses vi mudanças que deram esperança a um povo amansado por décadas de ignorância e exclusão social. Vi-o em festa erguer os braços e gritar palavras de ordem e cantar canções de liberdade. Diziam então que “o povo unido jamais será vencido”, e pelo que vi avaliei que para mim e para ti o futuro seria promissor.

Como queres então que te ensine essa força de rebeldia que nunca soube conduzir? Os livros vermelhos estão algures esquecidos, as bandeiras que incentivassem a glória estão carcomidas e esfarrapadas nalgum caixote em parte incerta. Nunca pensei que voltasse a precisar deles.

Quando ouço agora as tuas canções de intervenção sinto a mesma desilusão que senti quando ouvi apelidar de “rasca” a geração que me procedeu, por sublimar a irresponsabilidade latente dos que não tencionaram honrar o corolário de um estado social onde todos pudessem ser iguais. Vi o poder alucinar os homens e compreendi que a democracia que acarinho ia sendo substituída por um sucedâneo de muito má qualidade onde impera a pouca-vergonha dos que singram com facilidade através de clubismos e artimanhas, regalias desmesuradas, corrupção, compadrios obscuros e vilezas sem que haja forma de os confrontar com a qualidade do desempenho nos cargos que ocupam, normalmente contrastante com as benesses que auferem, ou de puni-los pela forma predatória como se refastelam indevidamente.

Não, meu filho! O estigma que carregas não é o de seres parvo! É o de pertenceres a um povo humilde e ingénuo que se deixa enganar, que é chantageado para ter os seus poucos direitos e que sofre por ver frustradas as expectativas onde investiu toda a esperança. São qualidades e defeitos que abundam nos bons, sempre reprimíveis com facilidade.

Mas disso nunca terás de te envergonhar. Vergonha será sempre dever e não pagar. Cumpre sempre com os teus deveres, mas isso já te tinha dito.

Falta agora ensinar-te a que não te vendas por pouco, lição que não aprendi. Não esqueças o segredo que te contei. Pega num pau afiado, e traça com coragem uma linha à volta deste país, chama-lhe teu, e expulsa os que usurpam aos teus velhos pais aquilo que te pertence por direito.

Que parvo, tu não és.


© CybeRider - 2011

10 comentários:

mfc disse...

Um texto de uma amargura muito lúcida que me tocou cá dentro.

CybeRider disse...

Obrigado, mfc. É também com amargura que os vejo olhar para o futuro sem esperança. Custa-me mais o que tenho visto do que me custou o passado. Mas também me ofende que o futuro deles tenha sido hipotecado por nós. Não estou certo da parvoíce do mundo. Estou certo da esperteza de alguns e denoto falta de energia para recomeçar quando precisamos de tanta apenas para prosseguir.

alyia disse...

...
acho que me calaste
...
vou pedir-te esta carta emprestada para enviar ao meu filho porque... parvo sei que não é... e tudo o resto não serei capaz de dizer melhor que tu...

Mário Rodrigues disse...

Este tema tem por magia ou asco e dor, o dom de me fazer chorar. Sinto-te o calor na garganta porque é o mesmo que me queima. Tinha vontade de escrever centenas de páginas acerca deste assunto, chamando os cornos pelos nomes e dissertando com verdade, que inexiste, e raiva que me consome.
Mas por agora, leio-te e vibro de irada concordância

Um muito grande abraço

CybeRider disse...

Sabes, querida amiga, disseram-me há dias:

- Alguma vez devias escrever uma coisa que se entendesse.

E pensei... Pensei... Ainda estou para entender o que aconteceu, até lá não digo coisa com coisa.

Se essa carta, mera tentativa, servir a algum filho, já cumpri um objectivo, ela é do mundo.

CybeRider disse...

Mário! (Vocês combinaram?...)
Tenho de fazer minhas estas palavras que libertas do coração. Há dias fui confrontado com a comoção que me suscitou uma cantiga, ia na estrada e encostei, e digeri a coisa com uma dor estranha. Nunca me lembro de ter sentido falta de esperança na minha juventude, lembro-me de dificuldades já nessa altura, mas não havia falta de esperança, dói para caraças. E custa-me que a geração que governa, muitos da nossa safra, ainda não tenham percebido que estão a matar a que por definição é a última coisa a morrer.

Grande abraço, rapaz.

the dear Zé disse...

a lucidez e a inteligência podem assumir forma de maldição. mas nem a lucidez, poderoso para brisas, é capaz de conter a desilusão. não sei se algum dos nossos filhos lerá isto. é pena. a origem do pecado é a apropriação, bem visto.
também me ensinaram muitas coisas úteis, eu que como tu sou da geração do "pobrezinho mas honrado": o trabalho dá saúde e que os ricos têm sempre razão mas, coitados, são infelizes que o dinheiro não traz felicidade, apesar de os bancos terem aumentado os lucros e pago menos 55% de impostos. quanto me alegra a sua infelicidade.
e depois há aquela confusão de que a nossa geração usurpou o futuro da dos nossos filhos com os direitos adquiridos. irrita-me esta coisa dos direitos adquiridos. o problema não são os direitos mas a falta deles tal como a democracia nunca é um problema mas sim a sua falta. quem usurpou, usurpa, o futuro ao é uma geração sobre a outra, mas um pequeno grupo de gente sobre todos os outros. como sempre foi. um grupo de políticos manobrados pelos donos do dinheiro e da propriedade. é esse o problema. não os direitos que foram adquiridos para todos incluindo esta geração que só é parva se não perceber isto. o inimigo é o mesmo. sempre foi. agora mais descarado do que nunca...

escreveste o teu - nosso - testamento com valor notarial.

abraço (e se abusei do espaço, desculpa)

CybeRider disse...

Pois, meu amigo Zé. São as canções de embalar que referes a prova cabal de que isto não passa de um sucedâneo do que se pretendia. As canções de embalar permanecem, a retórica continua a tomar conta da lógica e a entorpecer as mentes, como se fizesse sentido, mas a verdade só está ao alcance de quem se dedica, e a dedicação carece de liberdade. Os direitos, como tão bem referes, não são coisas são exercícios, acções, tutelas. Não morrem solteiros, têm sempre como contrapartida deveres, que também não se podem coisificar em carteiras de títulos nem em notas de banco, não são bens, são acordos de base da estabilidade social. Quantos mais direitos tivermos mais deveres temos também, são realidades indissociáveis e próprias de sociedades evoluídas. A aquisição de direitos não corrompe como a aquisição de dinheiro. É assim como a liberdade, que também devia ser para todos, mas que se tem transformado na libertinagem selvagem desse pequeno grupo que referes.

Abraço! Em relação ao espaço, eu sou o que já descobriu por mais de uma vez que as caixas levam 4096 caracteres... Quando os usares todos hei-de agradecer-te ainda mais efusivamente.

alyia disse...

e volto a ler...
sabes Cyber, ontem o meu filho disse uma frase a propósito de uma situação que está a viver "oh mãe eu sei que posso não conseguir mas até que isso aconteça eu não vou desistir, porra não me quebram assim tão fácil" e... sei lá porquê, lembrei-me desta tua carta...
soube-me bem ouvir tal coisa de alguém da tal geração e acredito (tenho de acreditar!!) que muitos há a dizerem o mesmo e a não "quebrarem"
afinal parvos não são e hão-de conseguir

CybeRider disse...

A história deles está por revelar, Alyia. É por isso que vou repudiando algumas leituras em que os acusam de passividade e falta de imaginação. Eles são como nós fomos, há muitos bons e alguns maus, mas são como nós, com mais estudos do que a nossa média, consequentemente mais esclarecidos. Estão a atá-los de pés e mãos, como nós estivemos e as causas são agora mais difíceis de debelar porque a liberdade, que nós defendemos um dia, se aplica a todos sem excepção e à pala dela cometem-se as atrocidades que os amordaçam. Bolas! Não me culpem os putos de falta de activismo, eles tiveram (têm) menos tempo para ser crianças do que nós tivemos, menos tempo para ser jovens do que nos era dado, esfrangalham-se para conseguirem habilitar-se num sistema que lhes mudam de um ano lectivo para o outro, acompanhado pela mordaça que se impõe aos professores que nunca tiveram tão pouca serenidade para desempenharem a sua função. Os senhores que nos governam são da nossa safra, há para ali meia-dúzia que se sentaram a meu lado nos anfiteatros e com quem partilhei ideias e ideais. Agora vejo-os a desempenhar mal os seus papéis e as consequências são para os do costume, e desses os que pensavam que tinham onde se agarrar têm de se acautelar para não irem na leva. Perdeu-se o respeito pelos pares, a sociedade coisificou-se e estamos no salve-se quem puder. Que culpa têm os miúdos desta pouca vergonha? Claro que eles vão conseguir, mas tenho pena que tenha de se arrepiar caminho. Alguém lhes pergunta alguma coisa acerca das leis que lhes dizem respeito? E a nós, que pouco mais temos feito que comer e calar? As forças políticas descolaram-se das ideologias de base para defenderem teorias indecifráveis, importadas sem explicação. Parece que voltamos
ao feudalismo, é isto que me leva a esperança.