O sol poente desatava, longa, a
sua sombra pelo chão e protegido por ela — braços largamente abertos, face
volvida para os céus — um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de
julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma
banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com
adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe
sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois,
os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos
de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os
companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido
fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso
repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto
voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as
estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara
apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a
ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra
daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas
da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem
decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando
de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo
dia semelhavam espécimens empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado
e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos,
um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um
valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro.
Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou,
adiante, a meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as
patas dianteiras firmes num ressalto da pedra... E ali estacou feito um animal
fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso
da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao
passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas
ondulantes...
(Euclides da Cunha – Terra – Os Sertões)