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Haja o que Houver

PRELÚDIO

No palco existe apenas uma mesa ao centro. Em cima da mesa está uma orquídea, algumas folhas de papel, uma caneta, uma vela, alguns fósforos e uma caixa. O actor está no fundo do palco, completamente vestido de negro. Todo o palco está escuro, excepto o actor. Este encontra-se de pé, com as mãos atrás das costas e a cabeça baixa. Levanta a cabeça e diz:
           
-Sejam bem-vindos! Irei contar-vos uma estória. A história de uma relação. Uma relação forte e sólida que resiste às adversidades. Haja o que houver, venha o que vier…
(a sala fica escura)


ACTO I

Depois de alguns segundos, é iluminado um cartaz, que se encontra na parte direita do palco. Nesse cartaz lê-se: “1º Acto / 6 meses / O começo”. Ilumina-se agora o fundo do palco onde está o actor, apagando-se a luz do cartaz.

- Todos vocês conhecem o princípio de uma relação.
(caminha até à mesa onde está uma orquídea)

- É a altura em que tudo parece bonito. Tal como uma flor.
(pega na flor e cheira-a)

- Lembro-me de como nos ríamos de tudo. Tudo parecia novo e perfeito! Aliás, sempre que se começa uma relação é a novidade que nos guia. «-Qual é a tua cor favorita? – Azul.» «-Qual é a tua estação do ano favorita? – Verão.» É nesta fase que se oferecem chocolates e flores.
(canta)
            Dos gardenias para ti
            Con ellas quiero decir
            Te quiero, te adoro, mi vida.
            Ponles toda tu atención
            Porque son tu corazón y el mío.
            Dos gardenias para ti
            Que tendrán todo el calor de un beso
            De esos besos que te di
            Y que jamás encontraras
            En el calor de otro querer. [1]

- E quando…
(pára, olha demoradamente a flor e sorri)

- E quando eu não estava com ela, parecia que faltava alguma coisa. Essa falta revela o quanto somos frágeis! Tal como uma flor. Há sempre a sensação de que se não formos sensíveis e atenciosos, ela pode morrer.
(pousa a flor, afasta-se da mesa e a luz apaga-se)   
  
- É engraçado, nunca me tinha preocupado com esta parte da relação. Sempre me deixei levar pelo tempo! Nenhuma namorada se pode queixar de falta de atenção, mas creio que lá no fundo sentia que se a relação acabasse, a vida continuaria. Nunca acreditei na história do “primeiro amor”. Aliás, tenho de admitir que os sentimentos foram ficando mais fortes, cada vez que tinha uma nova relação. Foi assim que tudo começou e foi assim que me apaixonei!
- Lembro-me bem das primeiras férias depois de começarmos. Custaram imenso a passar! Estávamos juntos de três em três semanas e apenas por algumas horas. Por outro lado, falávamos horas ao telefone e escrevemos várias cartas um ao outro.
(desloca-se até à mesa, acende a vela e começa a ler a primeira carta)

Meu amor,
            tudo é belo! Desde que começamos que o céu é mais azul, as estrelas brilham mais forte e o mar é mais bonito. Quero estar contigo o tempo todo e cada minuto que não estou parece uma eternidade. Quando vejo um par de namorados, sinto um aperto cá dentro. Fico contente que outros sintam o que sinto, mas irrita-me não poder estar sempre contigo!
            Quero-te só para mim, meu amor!
           
- Meu Deus, como era jovem! Até no modo como escrevia se pode perceber como era novo. E como amava… Vivíamos o amor de forma despreocupada. Não consigo esquecer uma mensagem que um dia ela me enviou: «You don’t search for love nor do you choose it, you just find it! And then you can ignore it or seize it, I quite prefer the last one!». Uma descrição perfeita.
Levanta-se e começa a andar. A vela mantém-se acesa, sendo a única luz que ilumina a mesa.
        
- Parecia que o nosso encontro tinha sido obra do acaso e só tínhamos uma solução possível: gostar um do outro. Havia uma despreocupação quase juvenil. E eu, que tinha fama de mulherengo, tinha-me prendido sem dar por isso. Olhem, como o Vasquinho!
(canta)
            Que negra sina, ver-te assim!
            Que sorte vil, degradante!
            Ai que saudade eu sinto em mim
            Do meu viver de estudante
            Nesse fugaz
            Tempo de amor
            Que dum rapaz
            É o melhor
            Era um audaz
            Conquistador
            De raparigas
            De capa ao ar
            Cabeça ao léu
            Sem me ralar
            Vivia eu
            A vadiar
            E tudo o mais eram cantigas.

            Nenhuma delas me prendeu;
            Deixava-as sempre! Era canja!
            Até ao dia em que apareceu
            Essa traidora de franja!...
            Sempre a tinir
            Sem um tostão
            Batina a abrir
            Por um rasgão,
            Botas a rir,
            Um bengalão e ar descarado,
            A malandrar com outros mais
            E a dançar p’rós arraiais,
            P’ra namorar,
            Beber, folgar, cantar o fado. [2]

- Quando recomeçaram as aulas, tudo corria pelo melhor. Nesta altura conseguíamos conjugar tudo: nós, família, amigos, estudo, saídas. Era tão fácil! Comíamos juntos, estudávamos juntos, saímos juntos, tudo juntos. Tudo era perfeito!
(pára e questiona o público)

- Tudo perfeito, certo? Quase demasiado perfeito, não é? Pois é… Tem razão aqueles que pensam assim.
(baixa a cabeça)

- No exacto dia em que fazíamos seis meses de namoro, acabamos. Como? Deitados na cama, decidimos que era melhor acabar. Porquê? Porque ela se sentia sufocada. Acho que foi esta a palavra. Depois de estarmos separados durante as férias, estávamos demasiado tempo juntos. Isto era o que ela dizia… Para ela o facto de estarmos sempre juntos fazia com que tivesse deixado de ter o seu espaço. E portanto, em vez de pedir uma relação menos absorvente, decidiu acabar tudo.
(faz uma pausa)

- Devo dizer o que senti, não é? Tenho que admitir que, naquele preciso momento, não me chateei muito.
(abre um sorriso)

- Primeiro, porque apesar de gostar muito dela, vivia a relação de forma despreocupada. Aliás, não conseguia entender como é que a relação era “castradora”, mas tudo bem. E depois, algo me dizia que este não era mesmo o fim… Iríamos continuar a ver-nos todos os dias e quando assim é torna-se complicado resistir a algo mais forte. Porém, estávamos nas férias de Natal, e não sabia o que podia acontecer.
(a sala fica escura)


ACTO II

Depois de alguns segundos, é iluminado um cartaz, que se encontra na parte direita do palco. Nesse cartaz lê-se: “2º Acto / 15 meses / A afirmação”. Ilumina-se agora a parte esquerda do palco, onde está o actor a olhar para o cartaz. Passados alguns momentos, a luz do cartaz apaga-se.

- Pois é, a verdade é que recomeçamos. Foi como se numa longa viagem, tivesse existido uma breve paragem para descobrir o rumo. Como tinha sido ela a acabar a relação, também foi ela a reatá-la. E eu acedi! Chegamos à conclusão que tínhamos vivido muito intensamente os primeiros seis meses da relação e tínhamos saturado. É normal! Também concluímos que era uma relação boa demais para deixá-la acabar. Deixamos de querer viver tudo de uma vez. Deixamos de pressionar fosse o que fosse. Enfim, deixamos o sentimento crescer sozinho!
(desloca-se à mesa, onde a vela se mantém acesa, e lê a segunda carta)

 Meu amor,
            depois dos primeiros tempos em que tudo era bonito, conseguimos fazer com que se tornasse ainda melhor. Sabemos agora os limites de cada um e raramente chocamos um com o outro. Descobrimos que somos o testo e a panela. Completamo-nos. Podemos não gostar das mesmas coisas, mas entendemos e aprendemos a apreciar os gostos do outro.
            Entristece-me que nos tenhamos afastado dos nossos amigos, mas eles não compreendem que necessitamos de estar juntos para estar felizes. Espero que no nosso mundo a dois, eles encontrem o seu espaço.
            Temos de ser fortes, meu amor!    

(levanta-se e começa a andar; a vela mantém-se acesa, sendo a única luz que ilumina a mesa)

- Nada mais verdade! Infelizmente, afastamo-nos de alguns amigos. Tenho pena, sabem? Sempre fui alguém que me preocupei muito com os amigos. Um dia disseram-me até que só era feliz quando estava rodeado de amigos. Mas, agora, sentia também necessidade de estar com ela. Ainda por cima, os nossos gostos iam aproximando-se cada vez mais. Como se uma estranha força nos fizesse gostar dos mesmos livros, filmes, músicas… Já não era como no princípio. Em todas as relações, à medida que nos vamos conhecendo mutuamente, respeitamos os gostos do outro. Por vezes concordamos, outras nem por isso. Aliás, se os gostos diferem, uma relação pode ainda existir, mas agora se não existir respeito, a relação degrada-se.
            - Mas nós não! Não precisávamos de falar. Um simples olhar e concordávamos sobre algo. Sem esforços, sem concessões! Aliás, as próprias palavras tornaram-se diferentes. Querem um exemplo? Qual é a palavra que mais se deseja ouvir da boca de quem amámos? Claro, «Amo-te!». E é normal que um “amo-te” dito no início de uma relação seja muito bonito, mas ainda está vazio. Se vejo duas pessoas que estão juntas há 50 anos a dizer «Amo-te!», tenho de me arrepiar. Essa palavra já tem de estar tão cheia de sentimento, força, verdade, que exige um respeito enorme. Até vos digo mais, cada vez que a pronunciamos, a palavra torna-se mais pesada e por isso mais pensada. São poucas as coisas de que me arrependo, mas uma delas foi ter tratado esta palavra com leviandade. E nem posso dizer que foram actos de juventude irracional. Sempre soube a importância da palavra e ainda assim, deixei-a escapar. Não que não gostasse da pessoa a quem a disse, mas depois reflecti… Esta palavra-força conquista-se! Ao entrega-la sem luta estava a menosprezá-la. E com isto estava a menosprezar-me! Errei… mas aprendi. E criei até resistência. Apesar de ser uma pessoa que gosta sem limites, refreei-me no acto de amar.
(pára de andar e olha em frente)

- Até que a encontrei! Aí não tinha dúvidas. O que passei a sentir, sobretudo a partir de termos feito a pausa, era amor. E o amor, aprendi depois, não pode ser silenciado. Pode ser controlado, mas não calado. Atrevi-me então a dizer «Amo-te!» sem ter medo de errar. E a melhor recompensa foi ter ouvido o mesmo. Primeiro, timidamente. Mas depois com a certeza de quem fala verdade.
(suspira)

- Digo-vos, é a das melhores coisas que existem. Ouvir a palavra «Amo-te!», quando é dita conscientemente, é comparável a muito poucas coisas. Eu lembro-me que me apetecia congelar cada momento desses. Aliás, graças às novas tecnologias, pude guardar uma mensagem a dizer simplesmente «Amo-te!» durante dias, semanas, meses, anos… Lembro-me de uma viagem que fizemos a Bruges.
(pára, relembrando a viagem; sorri melancolicamente)

- Percorremos os canais da cidade de barco e aí trocamos juras de amor! Tudo parecia eterno… Estive a falar de palavras e sentimentos, mas também nós, enquanto pessoas, estávamos mais maduros. Ela estava belíssima! Dava por mim a olhar para ela inúmeras vezes. Não com o olhar cego dos primeiros tempos, mas com a calma que o tempo nos confere. Ela tinha uma beleza serena… Sim, acho que esta é a melhor definição dela. Não tinha uma beleza fácil, supérflua, exuberante, mas sim uma beleza profunda, recatada. A beleza de uma Maria Eduarda d’ “Os Maias”. Lembro-me que adorava fazer duas coisas nessa altura. Uma delas era vê-la a arranjar-se para ir sair. Ela sabia como era bela mas pedia-me sempre a opinião para ter o conforto da certeza. Sabem, faz-me lembrar o que cantava o Eric Clapton.
(canta)
            It’s late in the evening; she’s wondering what clothes to wear.
            She puts on her make-up and brushes her long blonde hair.
            And then she asks me, “Do I look all right?”
            And I say, “Yes, you look wonderful tonight.”
            (…)
            I feel wonderful because I see
            The love light in your eyes.
            And the wonder of it all
            Is that you just don’t realize how much I love you.[3]

- Era exactamente assim, e eu adorava esse ritual. A outra coisa que adorava fazer era vê-la dormir. Dava-me realmente prazer observar toda a beleza dela em descanso. Ver o rosto calmamente pousado na almofada. Aquele sorriso permanente preso aos lábios! Tenho de confessar que cheguei a ficar horas a ver aquele sono tão sossegado. Sempre achei que aquele sono era como a nossa relação: calma, mas segura. Tínhamos aguentado as primeiras ondas e mas não tínhamos enfrentado grandes tormentas. Como eu adorava ter podido parar o tempo!
(a sala fica escura)


ACTO III

Depois de alguns segundos, é iluminado um cartaz, que se encontra na parte direita do palco. Nesse cartaz lê-se: “3º Acto / 24 meses / A dificuldade”. Ilumina-se agora a parte esquerda do palco, onde o actor olha o cartaz até este se apagar.

- Depois de uma época tão boa, chegaram as dificuldades. Apesar de já estarmos juntos há dois anos, este foi um obstáculo de respeito. Mas deixem-me contar a história como deve ser. Ainda não tinha referido que ambos estudávamos na mesma turma na Universidade. No nosso terceiro ano decidimos ir estudar para o estrangeiro. Óptimo, certo? Nem por isso, já que ficamos a 1500 km um do outro.
- Lembro-me das últimas semanas antes de partirmos. Havia uma mistura de ansiedade e receio. Por outro lado, tínhamos uma imensa vontade de experimentar uma vida nova. Até porque estávamos um pouco cansados de estar no mesmo sítio, com as mesmas pessoas, a fazer as mesmas coisas. Havia então a necessidade de partir para o mundo. Por outro lado, o receio do desconhecido! Apesar de termos uma relação sólida, a distância e a nova realidade seria um desafio enorme. Ela foi a primeira a partir. Foi muito complicado! Quando fui despedir-me dela ao aeroporto, não sabia se seria a última vez que a via enquanto namorado. Isto porque nunca sabemos o futuro, e quando não possuímos algum controlo da situação, as dúvidas triplicam. Digo-vos, não foi mesmo nada fácil. (sorri e canta)
            Ain’t no sunshine when she’s gone
            It’s not warm when she’s away
            Ain’t no sunshine when she’s gone
            She’s gone much too long
            Any time she goes away
           
            Ain’t no sunshine when she’s gone
            Wonder if she’s gone to stay
            Ain’t no sunshine when she’s gone
            And this house just ain’t no home
            Anytime she goes away [4]

- Depois foi a minha vez. Ao contrário do que se pode pensar, nos primeiros tempos não sentimos muitas saudades. Caímos de pára-quedas numa cidade estranha e cheia de gente desconhecida, por isso nos primeiros tempos andamos de tal forma perdidos que não temos cabeça para mais nada. É tudo novo, e ao tentar absorver tantas coisas, não pensamos no que deixamos para trás. Mas é claro que gastei muito dinheiro em telefone, quer para Portugal, quer para ela. Conheci imensa gente em Itália. Pessoas que estavam ali só para estudar, pessoas que estavam ali para se divertir, e pessoas que estavam ali para fazer ambas (como eu). Conheci pessoas com namorada, sem namorada, com namoradas mas como se não tivesse, sem namorada mas como se tivesse. Incrível! Alguns diziam-me que não compreendiam como é que eu conseguia resistir aos avanços das mulheres. Tentavam convencer-me com uma das regras do Código Internacional das Relações: “Não pode ser considerada traição, se as duas pessoas estiverem em países diferentes.” Outros respeitavam a minha opinião e até diziam que me admiravam.
- Passado um mês e meio, decidi ir passar uns dias com ela. A viagem foi horrível mas fui recompensado. Foram uns dias maravilhosos! Como é normal a seguir a uma parte boa, uma má chegou. Foi a pior fase. Depois de ter estado com ela, as saudades apertaram mais e ainda faltava muito tempo para voltar a Portugal. Nestas alturas, os dias eram estranhos… Passavam…
(senta-se e lê a terceira carta)
        
Meu amor,
            os meus dias sem ti são medidas de tempo. Nem as noites, onde contigo partilhei o sono e o sonho, são mais do que horas de desespero. Só mesmo no mundo onírico dos sonhos me sinto bem! Aí te encontro e passeio contigo por praias imagináveis e cidades invisíveis. O pôr-do-sol dura o dia todo, e com esta luz pareces imortal! Não falamos. Não é preciso. Basta um olhar para nos entendermos. Com ele, digo «Eu amo-te!» e com outro respondes «Eu sei.». Pergunto «E tu?» e respondes «Tu sabes!». E eu não preciso de mais porque te tenho a meu lado e não te vou largar.
            Mas depois acordo… E começa mais um dia de medida de tempo.
            Volta para mim, meu amor!

(levanta-se e começa a andar; a vela mantém-se acesa, sendo a única luz que ilumina a mesa)

- Nada mal! Pelo menos, as saudades fizeram com que escrevesse melhor. Bem, a segunda parte da estada em Itália correu melhor! Ela veio ter comigo, eu voltei a ir ter com ela. Enviei flores, recebi cartas, enviei cartas... Apetecia-me estar sempre a arranjar coisas novas lhe dar. Gostava de saber cantar como o Elton John para lhe oferecer uma canção.
(canta)
            It’s a little bit funny this feeling inside
            I’m not one of those who can easily hide
            I don’t have much money but boy if I did
            I’d buy a big house where we both could live

            If I was a sculptor, but then again, no
            Or a man who makes potions in a traveling show
            I know it’s not much but it’s the best I can do
            My gift is my song and this one’s for you

            And you can tell everybody this is your song
            It may be quite simple but now that it’s done
            I hope you don’t mind
            I hope you don’t mint that I put down in words
            How wonderful life is while you’re in the world. [5]

- Acho que ela ia gostar!
(sorri)

- Creio que apesar das dificuldades, arranjamos maneira de as ultrapassar. Apoiamo-nos imenso nas pessoas que conhecemos, aliás, fizemos vários amigos que se mantêm. Esta experiência permitiu-nos também dar mais valor aos amigos e familiares que estão distantes. Para além de falar com os meus pais, adorava receber cartas e postais dos amigos em Portugal. Aliás, prometi a mim mesmo passar mais tempo com eles quando voltasse. É claro que tudo isto era igualmente verdade com ela! Depois de tanto tempo separados, sabíamos que aproveitaríamos muito melhor o tempo juntos. E assim passamos cerca de nove meses separados. Não foi fácil, em vários momentos desesperei, mas passamos bem as dificuldades.
- Voltamos a Portugal mais maduros e a nossa relação, ao ter resistido a este teste, tornou-se mais forte. Sabíamos também que estaríamos agora um ano inteiro juntos, e isso tornou-nos mais calmos.
(a sala fica escura)   


ACTO IV

Depois de alguns segundos, é iluminado um cartaz, que se encontra na parte direita do palco. Nesse cartaz lê-se: “4º Acto / 36 meses / A consolidação”. Ilumina-se agora a parte esquerda do palco, onde o actor caminha sorrindo e dirigindo-se à mesa.

(senta-se e lê a quarta carta)
         Meu amor,
            depois de estarmos separados…eis-nos juntos novamente. A força do nosso amor resistiu a barreiras de espaço e tempo! Deixou de ser uma simples paixão ardente, para ser um amor sólido. Já nada nos perturba nem afecta. Estamos mais maduros! Aprendemos que sendo dois podemos ser um! Se um de nós tem uma fraqueza, os dois transformam-na em força. Se um está em baixo, logo os dois dão a volta por cima. Dizem que somos o casal perfeito, que fazemos um par muito giro, e eu sorrio. Temos uma vida inteira para viver!
Não te quero perder, meu amor! 
           
- Pois é, de volta à nossa vida. Como todas as experiências que correm bem, só ficaram as boas recordações. Todos os momentos maus, todas as saudades, todas as tristezas, foram esquecidos! Depois de umas férias bem merecidas, foi com confiança que começamos o último ano da Universidade. Sabíamos que iríamos ter vários desafios e novas responsabilidades, mas tudo foi facilmente ultrapassado. Quando um se ia abaixo, o outro ajudava-o. E assim os dois tornavam-se fortes! Realmente, toda a gente olhava para nós e considerava-nos um só. Estávamos sempre juntos e os nossos gostos eram cada vez mais parecidos. Enfim, tudo corria bem!
(levanta-se e começa a andar)

- Em termos físicos, ela estava melhor que nunca. A sua beleza serena amadureceu e passou definitivamente a ser uma mulher lindíssima. Penso que seriam mulheres como ela que inspiravam todos os grandes poemas de amor. Como nunca fui grande poeta, socorro-me das palavras do grande Ary dos Santos.
(declama)    
            No teu poema
            Existe um verso em branco e sem medida
            Um corpo que respira, um céu aberto
            Janela debruçada para a vida

            No teu poema
            Existe a voz calada lá do fundo
            O passo da coragem em casa escura
            E aberta uma varanda para o mundo
            Existe a noite
            O riso e a voz refeita à luz do dia
            A festa da Senhora da Agonia e o cansaço
            Do corpo que adormece em cama fria
            Existe um rio
            A sina de quem nasce fraco ou forte
            O risco, a raiva, a luta, de quem cai ou que resiste
            Que vence ou adormecemos antes da morte

            No teu poema
            Existe o grito e o eco da metralha
            A dor que sei de cor mas não receito
            E os sons inquietos de quem falha

            No teu poema
            Existe um cantochão alentejano
            A rua e o pregão duma varina
            E um barco assoprando a todo o pano
            Existe um rio
            O canto em vozes juntas, em vozes certas
            Canção de uma só letra e um só destino a embalar
            No cais da nova nau das descobertas
            Existe um rio
            A sina de quem nasce fraco ou forte
            O risco, a raiva e a luta de quem cai ou que resiste
            Que vence ou adormece antes da morte

            No teu poema
            Existe a esperança acesa atrás do muro
            Existe tudo o mais que ainda me escapa
            E um verso em branco à espera do futuro. [6]

- Quem me dera saber escrever assim! Estes tempos foram óptimos. Devo confessar que tive algum receio. O retorno à rotina assustava-me. Sempre achei que a monotonia da rotina era o maior inimigo de uma relação. Horas, dias, semanas, meses, anos… Sempre juntos! Tenho muito respeito pelos casais que estão juntos durante anos e anos. É claro que conhecer os gostos e hábitos do outro tem o seu lado positivo, mas existe o perigo de nos cansarmos e que o desejo pela novidade seja mais forte que a certeza do rotineiro. Aliás, tenho a certeza que essas relações não podem ser destruídas por algo exterior. Se algo as abala, é algo que surge do interior, do seio do casal ou pelo menos de uma das pessoas. (sorri tristemente, como que lembrando ou prevendo algo).

- Nem a distância, nem o tempo, nem a intriga, consegue acabar com uma relação destas. Nem mesmo a traição! A traição?
(grita, assustado)

(pára, pensa durante alguns segundos)

- Sim, a traição!
(aceita, resignado)

- Foi mais ou menos a três meses de completar três anos de relação que descobri que tinha sido traído.
(pára, novamente)

- Como é que descobri, perguntam alguns de vós. Da maneira mais habitual: por acaso! Lembro-me de ser dia de São Valentim e não tendo nada para lhe oferecer, decidi escrever algo no diário dela. Quem me dera ter sido de propósito! Quem me dera poder culpar-me por ter aberto o diário naquela página maldita! Quem me dera poder incriminar-me por ter lido aquelas duas linhas fatais! Fechei imediatamente aquele caderno, para apagar da minha memória o que tinha visto. Não consegui!
(abana a cabeça)

- Quando tinha sido, calculo que seja a vossa dúvida. Quando estava na Alemanha, responderão naturalmente. Não, enganam-se! Aconteceu ao fim de quatro meses de relação, ainda antes de termos feito a paragem. Ah, dirão alguns de vós, não é assim tão grave! Sim, mas queria ver se pensavam assim se fossem vocês no meu lugar. Que fizeste? É essa a pergunta agora, não é?
(perscruta com o olhar os espectadores)

- Não disse nada! Quer dizer, tentei não dizer nada. Porquê? Ela tinha um exame qualquer no dia seguinte. Porém, eu tenho uma característica, não sei se defeito ou qualidade. Por vezes, a minha cara é mais expressiva que mil palavras. Dizem-me que devia ser actor! Eu que represento tão mal, a não ser a verdade! Ela perguntou-me o que se passava, e eu cedi. Contei-lhe o meu pecado! Disse-lhe o que tinha descoberto e antes mesmo de terminar, já ambos chorávamos. Ela disse-me que tinha sido uma estupidez, uma coisa sem importância. Perguntei se nenhuma das amigas com quem ela estava a tinha tentado impedir. Disse-me, então, que nessa altura ainda não tinha contado às amigas que eu existia. A minha alma gelou nesse momento!
(pára, congelado).

- Disse-me entre lágrimas que se tinha arrependido de tudo o que fez, mas que entenderia se eu quisesse acabar tudo.
(sorri)

- Sabem, sempre pensei como reagiria a uma traição! Acho que todos vós o fizestes. Existem aqueles que dizem que matavam, outros que se matavam. Eu sempre achei que terminaria a relação de imediato. Mas não o fiz!
(sorri de novo)

- O que mais me entristeceu não foi a traição em si. Tenho a certeza que ela nunca mais o viu e que ele não lhe ofereceria aquilo que eu poderia oferecer. Até porque o acto já tinha sido há três anos, três anos cheios de vivências a dois que com certeza apagaram esse mísero momento. O que me deitou abaixo foi a mentira! Não só o facto de não contar a verdade, quer a mim quer às amigas, mas também o facto de termos falado imensas vezes em traição e ela me ter dito que nunca o tinha feito. Estava de tal forma triste que não conseguia estar irritado… Bem, a verdade é que perdoei. Mais do que a traição, perdoei a mentira. Claro, depois de ela me ter assegurado que jamais aconteceria novamente.
- E foi assim que quando menos esperava surgiu a maior das dificuldades. Algo ligado ao passado. Mas, como disse antes, quando as relações chegam a um certo nível, não é algo exterior, neste caso algo do passado, que a pode destruir. Agora, mais do que nunca, sabíamos que, tal como na música, haja o que houver, venha o que vier, o amor triunfa.
(canta)
            Never knew I could feel like this
            Like I’ve never seen the sky before
            I want to vanish inside your kiss
            Everyday I’m loving more and more.

            Listen to my heart, can you hear it sings?
            Telling me to give you everything
            Seasons may change, winter to spring
            But I love you until the end of time.

            Come what may, come what may
            I will love you, I will love you
            Until my dying day. [7]

(a sala fica escura)


ACTO V

Depois de alguns segundos, é iluminado um cartaz, que se encontra na parte direita do palco. Nesse cartaz lê-se: “5º Acto / 42 meses / O fim”. Ilumina-se agora a parte esquerda do palco onde vemos o actor desesperado.

- O fim? Não.
(grita; avança de encontro ao cartaz e destrói-o)

- Como é que uma relação destas pode chegar ao fim?
(anda de um lado para o outro)

- Depois de tudo o que passamos! Não! Esta relação perfeita! Não, não quero acreditar! O quê? Já não me amas? Como é que isso pode ser se ainda te amo tanto. Já sentes isso há algum tempo? Mas porque é que não me avisaste? Tenho a certeza que… O quê? Já me tinhas avisado? Mas como, se nada notei. Tens de entender, eu tive doente. O meu avô morreu. E… tenho a certeza que tudo vai melhorar agora. O quê? Precisas de um tempo sozinha? Não.
(irrompe em mais uma fúria)

- Não entendes? Nós não podemos acabar assim. A nossa história de amor é grande. É uma história como a de Romeu e Julieta ou a de Pedro e Inês… As histórias deles só acabaram com a morte.
(pára; a mesa ilumina-se; dirige-se para lá, senta-se, abre a caixa e tira o revólver)

- O fim.
(calmamente, encosta o revólver à cabeça)

- Mas,
(afasta rapidamente o revólver)

- que faço eu? Eu que amo a vida mais que tudo, penso agora neste acto vil e cobarde? Estarei eu louco? A vida foi feita para ser vivida. Bem ou mal! Com amor ou sem ele! Se ela não me quis, não pode ser culpa minha.
(lê a quinta carta)

Meu amor,
            acabou! Escrevo-te pela última vez, sem saber se alguma vez lerás esta carta.
            Não consigo acreditar no fim! Não consigo acreditar que tudo não passe agora de memórias. Só passado, sem presente nem futuro! Entristece-me que tenha chegado ao fim uma relação tão perfeita. Relembro as coisas que fizemos, os lugares que visitamos, as pessoas que conhecemos, os momentos que vivemos… e choro! Não consigo aguentar. Antes de adormecer, deitado na cama, choro porque me lembro, choro porque não posso voltar atrás no tempo, mas sobretudo choro porque acabou. Não consigo olhar para trás e ficar feliz! Não tenho feitio para ver algo acabar e ficar contente. Se acabou, não devia ter começado. Foi um fracasso! Quem me dera apagar tudo…
            Morreste-me, meu amor!
(põe a cara entre as mãos e começa a chorar)
           
- O fim!
(recompõe-se)

- Há sempre algo de terrível nesta palavra. Tenho esta sensação que tudo o que acaba, não deveria ter sido começado. Eu sei que é injusto, mas a sensação de vazio do fim, entristece-me. Sei que esta carta é demasiado trágica. Certas coisas saem-nos da boca, ou da caneta neste caso, demasiado depressa para podermos pensar nelas. Lembrar tudo o que fizemos, tudo o que passamos… E saber que isto acabou.
(levanta a cabeça e ergue as mãos)

- Será que não existe mesmo retorno? Eu tenho a certeza que tudo poderá melhorar. Eu esforçar-me-ei mais.
(diz esperançoso)

- Mas,
(cai novamente em desespero)

- eu sei que esse não é o problema! O problema é que acabou. E isso entristece-me. (apaga a vela e cai de joelhos; canta)
            It was only one hour ago
            It was all so different then
            Nothing yet has really sunk in
            Looks like it always did
            This flesh and bone
            It's just the way that we are tied in
            But there's no one home
            I grieve...
            For you
            You leave...
            Me
            So hard to move on
            Still loving what's gone
            Said life carries on...
            Carries on and on and on...
            And on
            The news that truly shocks
            Is the empty, empty page
            While the final rattle rocks
            Its empty, empty cage...
            And I can't handle this
            I grieve...
            For you
            You leave...
            Me [8]
(sorri tristemente)
           
- Não deixa de ser engraçado.
(levanta-se)

- Dizem que as relações têm crises de sete em sete anos. Imagino que como vivemos num mundo acelerado e intenso, metade do tempo tenha chegado. Nunca pensei que algo pudesse abalar a nossa relação. Não agora. Não depois de tudo o que passamos.
- Mas eu tinha razão. Razão amarga, mas certa. Quando as relações são sólidas, só o fim do sentimento a pode acabar.
(passeia lentamente pelo palco, pega na flor, cheira-a, e depois pousa-a)

- E agora? Acho que estava preparado para tudo, menos para isto. Até parece que tenho de reaprender a viver. Acabaram-se os telefonemas ao fim do dia, as visitas ao fim de semana, as férias juntos… Acabou-se! Falta-me um suporte.
- Não me podias ter feito isto! Eu não estava preparado. Não sei se te consigo perdoar. Eu perdoei tudo até agora! O teu egoísmo, a traição, tudo… Mas não consigo perdoar isto! Parece que para ti estes três anos e meio não passaram de tempo. Como podes ser tão fria? Ah, não venhas com essa treta de não me querer magoar!
(grita)

- Eu seria incapaz de te fazer o mesmo. Será que não consegues entender que ninguém te amará como eu?
(pergunta exaltado, mas lentamente acalma-se)

- Todos os meus amigos me insultaram porque não entendiam porque é que tinha acabado contigo. Não foi fácil explicar que tinhas sido tu! Foi neles que me apoiei nesta altura. Voltei a passar mais tempo com eles. Tenho de concordar, as namoradas vão e vem, mas os verdadeiros amigos ficam sempre.
- Não é fácil passar esta fase! As saudades são muitas. Ainda sinto a falta dela. Há sempre a hipótese de o destino nos juntar novamente, mas para já a mágoa é muita. E no entanto não consigo apagar o que sinto…
(canta)
            Oh, come what may, come what may
            I will love you, I will love you
            Until my dying day.
   
FIM



[1] “Dos Gardenias”, por Compay Segundo
[2]  “Fado do Estudante”, por Vasco Santana
[3]   “Wonderful tonight”, por Eric Clapton
[4]   “Ain’t no sunshine”, de Bill Withers
[5] “Your Song”, por Elton John
[6]   “No teu poema”, por Carlos do Carmo
[7]   “Come what may”, por Ewan Mcgregor e Nicole Kidman
[8] “I grieve”, por Peter Gabriel
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