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domingo, 10 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia VIII


Dia 8: terça, 9 de outubro de 2021 

Último dia da Giornate de Pordenone, ontem. O programa de sua modalidade online foi duplo: um trio de curtas-metragens da norte-americana Vitagraph, rodados em 1910, rotulados “Vitagraph Japonism” pela organização do festival, e o sensacional “Maciste all’Inferno” (1926), dirigido por Guido Brignone e protagonizado por um dos mais amados heróis da cinematografia muda italiana, Bartolomeo Pagano. 
O programa “Vitagraph Japonism” foi para mim uma descoberta. Como pesquisadora da produção cinematográfica e literária produzida e/ou em circulação no Brasil entre fins do século XIX e primeiras décadas do XX, invariavelmente encontro mostras da influência do Japão no Brasil, sobretudo a partir de fins da primeira década de 1900 – influência que se estende aos Estados Unidos, sobretudo pela grande presença de imigrantes orientais que aportam em cidades como Nova Iorque, centro de produção cinematográfica. 
Já no Rio de Janeiro, um esporte como o jiu-jitsu dissemina-se, enquanto a população abastada carioca passa a trajar luxuosos quimonos fornecidos por uma importadora japonesa instalada no coração da cidade. No âmbito teatral, companhias nipônicas circulavam extensivamente o Brasil – Ary Bezerra Leite destaca a sua presença em estados do Nordeste, onde, a exemplo do que ocorria no Rio de Janeiro, tais grupos vez por outra apresentavam espetáculos de variedades que incluíam o cinema. 
No caminho inverso, observamos a reinvenção do Japão pela cultura ocidental. Em 1909, um grande sucesso carioca é a versão cinematográfica da bem-sucedida teatral opereta britânica “A Gueixa”, de Sidney Jones (1896), produzida por William Auler e exibida com acompanhamento musical cantado ao vivo pela companhia que aparecia na fita. No âmbito musical, outro sucesso nestas plagas era a valsa “Mikado”, dos também compositores ingleses Sullivan e Gilbert (1885). No literário, João do Rio emoldura à japonesa diversas personagens que compõe entre 1910-1915, de belezas frias e morais imperscrutáveis. 
É o caminho da reinvenção de uma cultura oriental apreendida desde a superfície que trilharão os filmes “The love of Chrysanthemum”, “Ito, The Beggar Boy” e “Hako’s Sacrifice” (todos da Vitagraph, como já apontei acima), estreados num espaço de um pouco mais de um mês entre eles e rodados praticamente nos mesmos cenários – segundo Ben Brewster, o estúdio da companhia na Avenida Flatbush, no Brooklyn. 
Tais obras reproduzem algumas constantes na apreensão do Japão pela cultura ocidental, a exemplo da utilização de elenco ocidental, orientalizado pela maquiagem, e da teatralização dos gestos tendo como modelo a pintura japonesa – outro must da decoração ocidental daquela época. Num momento em que os filmes norte-americanos já faziam uso de cenários tomados da natureza, observamos enquadramentos duros cujas profundidades são construídas a partir de sucessivos telões pintados, que dão aos filmes a aparência de quadros vivos. 
“The love of Chrysanthemum” é originário da obra literária que depois servirá como base da célebre ópera de Puccini “Turandot”: o romance “Madame Chrysanthème” (1888), de Pierre Loti. A jovem Chrysanthemum, casada com um homem muito mais velho que ela, apaixona-se por um turista norte-americano (no filme, Maurice Costello, que depois se torna um dos primeiros galãs da sétima arte). Enquanto na ópera existe mais reciprocidade na história de amor, no romance e no livro o turista deseja sobretudo divertir-se às custas da jovem apaixonada, que acaba se suicidando pelo amor não correspondido. 
Os outros dois filmes são protagonizados pela menininha Adele de Garde: o garoto pedinte da primeira obra, que acaba adotado por um casal sem filhos depois que a mãe morre de fome; e a menina abnegada que recebe como retribuição de Hako, a quem ela ajudara, o crisântemo que a fará ganhar o prêmio graças ao qual ela pagará as dívidas do pai preso. Atriz de grande naturalidade, Adele de Garde fará as duas obras das quais participa parecerem menos engessadas. 

“Maciste all’Inferno”, o segundo programa do dia e último da Giornate, faz jus ao espaço que ocupa no festival. É uma obra espantosa, que hoje existe em parte graças à preservação que a nossa Cinemateca Brasileira fez de uma cópia sua colorida (segundo dois procedimentos: a viragem e o embebimento) em nitrato, utilizada em parte no processo de restauração sofrido em meados da década de 1990. Em 2009, houve um novo restauro do filme, levado a cabo pela Cineteca di Bologna e pelo Museo Nazionale del Cinema de Torino, versão a que assistimos ontem. 
Maciste é um dos principais heróis do cinema silencioso: o homem bondoso, de largas dimensões e força hercúlea, que surge em première no notório “Cabíria” (1915), aqui é uma mistura do “Orfeu” da opereta de Offenbach “Orfeu no Inferno”, do goethiano “Fausto” e do Dante da “Divina Comédia” – embora “Maciste all’ Inferno” estabeleça esta última obra como a sua influência mais direta. 
A história se passa num vilarejo nevado situado aparentemente na Suíca – não há qualquer esforço de atrelamento histórico, tanto que a obra é denominada “diavoleria in 5 atti” (algo como “diabrura em 5 atos”). Maciste, de trajes burgueses, administra a sua fazenda e é apaixonado pela jovem Gabriella, a quem o diabo tenta com a presença de um belo jovem, que a abandona grávida. 
É desnecessário percorrermos todos os inúmeros incidentes do drama, colocados em moção pela personagem mefistotélica saída da pena do roteirista Riccardo Artuffo. Após Maciste salvar o bebê de Gabriella, o diabo o arrasta a esse inferno composto a partir da livre mistura dos trágicos aos cômicos: das diabinhas que, em trajes menores, desfilam pelos domínios do diabo, visando a arregimentar novos seguidores; ao compêndio dos vícios separados por qualidades, à maneira da “Divina Comédia”, obra fundacional da língua italiana cujos versos são citados textualmente no filme; e, enfim, ao gigante e horrendo ser que se alimenta das carnes dos pecadores, o qual parece saído das obras de Méliès rodadas décadas mais cedo – os efeitos especiais são produzidos por Segundo de Chomón, um dos pioneiros do primeiro cinema, daí que esse Maciste, embora tenha sido produzido no final do cinema silencioso, estabelece um diálogo mais profundo com a magia do primeiro cinema do que com as produções cinematográficas do termo dos anos de 1920. 

A deglutição que a obra realiza da tradição literária ocidental e o rótulo de “diabrura” atribuído a ela por seus criadores lhe dão um éthos chistoso e demolidor bastante próximo do que realizavam, na época, as vanguardas estéticas. Não que a obra não se leve a sério – a oração do filho de Gabriella pedindo a Deus a volta de Maciste, que é responsável por tirá-lo do inferno, estabelece liames com a moralidade convencional da cinematografia comercial da época. No entanto, o restante da obra não pode ser ignorado. Tive, portanto, alguma dificuldade de compreender a música que Teho Teardo e a Zerorchestra criaram para ela. 
Eu não conhecia o trabalho de Teardo, cuja carreira voltada à música eletrônica impressiona. Já a Zerorchestra, de quem sou fã, tem uma pegada jazzística que sempre caiu como uma luva às comédias que ela vem acompanhando nas edições anteriores da Giornate. Este “Maciste all’Inferno” é por certo um desafio, no entanto, a música lenta e torturada composta para o filme, bem como a preferência pelo som eletrônico ao acústico, fazem a primeira metade da obra se arrastar. Seus pontos culminantes são, penso eu, os solos de violino que marcam as curvas dramáticas da história. No entanto, o inferno particular de Maciste, fruto da mistura entre a tradição cultural erudita ocidental e a cultura de massas, é potente demais para não nos impregnar. 

Encerro aqui a oitava resenha em oito dias de Giornate, missão que duvidei conseguir levar a cabo, considerando-se a minha imersão em trabalhos muito menos palatáveis do que esse. À guisa de balanço breve, louvo o esforço da organização do evento de criar esta versão online sua aos amantes do cinema silencioso que não podem, pelos mais variados motivos, prestigiá-lo presencialmente. E não posso deixar de ainda uma vez constatar, embora a ame, a ausência de cinema latino-americano (nem estou me referindo a cinema brasileiro) entre as obras exibidas ao vivo ou em streaming. Se não temos indústria de cinema nos tempos do silencioso, temos uma porção de filmes que merecem ganhar o mundo.