Por Germano Xavier
"Nada que eu possa falar/
fala por tudo que eu sei/
sei que te amo, e quero/
ser feliz sem fim..."
(Beto Guedes e Ronaldo Bastos)
Tinha ele retornado de onde estivera. Contas e mais contas e mais contas a quitar. O sapato velho já com dois ou três buracos. Calça de brim, cor amendoada, sinal de forças amolecidas. A meia quase branca era percebida, cadarço rastejando, todo sujo. Era um homem quase feliz, com partes completamente calvas na cabeça, alguns fios brancos de contestável serventia e antigo aos seus 67 anos de idade. A vida lhe havia reservado uma porção de experiências que, por fim, depois de tudo e de todos, acabaram por fazê-lo sábio já desde moço, apesar de sua inquietude eterna. Fumava pito e pigarreava por isso. Um presente do pai. Na verdade, o pai nunca houvera lhe presenteado nada. É que quando o marido da senhora Justina morreu, o usado cachimbo foi parar nas mãos do único herdeiro. Aliás, herança composta por uma casinha rude de paredes amarelas, duas ou três mesas de madeira, tamboretes forrados com couro de novilha, um par de xícaras e uma leiteira enferrujada pelo desuso. Além, é claro, do pito, cujo fornilho era preenchido com tabaco de quinta categoria, geralmente encontrado nas barraquinhas de fumo de rolo quando nos dias de feira livre na pacata cidade onde penava sua sobrevivência.
O homem vivia e sobrevivia. Durante toda a sua existência, havia amado muito. Amou quando o amor era apenas uma ardente paixão adolescente, ou quando o amor operava em longas cartas transbordantes de emoção e júbilo e que, por vezes, nunca conseguiam chegar ao destino quisto. Amou quando o amor era o diário repleto de poemas cheios de lirismo e quando o amor era, simplesmente, um coração ferido e lastimoso, escondido a sete chaves dentro de um peito doído. Amou, também, quando o amor, remotamente ou já de perto, e como quem sabe, apresentava-se como uma paixão para toda uma vida, o que é de maior dificuldade de encontro. Amou cedo e amou tarde. Amou com pressa e pacientemente amou. Amou no tempo e amou destemperadamente. Amou sem paixão e apaixonadamente também amou. Amou sem amor e com amor. Porque talvez não fosse o amor um lugar de mesmices e, desse modo, não haveria explicações ou razões para o Gabo pôr tanta cólera nos tempos do amor. Todavia, não obstante o currículo invejável de tanto amar, o velho, em descanso bom de alpendre e crepúsculo, não hesitava em perguntar, e perguntar principalmente a si próprio, sobre o motivo do amor. “Ah, o amor... o que é mesmo o amor?” E ficava ali horas a fio, perdido e pitando e pigarreando, mais e mais...
Era mesmo um velho homem sábio, que já sem dúvida pousara os olhos em questões de certo e errado, ou sobre os corretos e mais profícuos modos de se perscrutar uma alma, ou ainda coisas de mentira ou de verdade, façanhas, desventuras, menos e mais, passado ou presente. Dizia sempre que o passado, como o próprio nome denuncia, já passou e não existe mais. Duvidou da primazia e inteligência democrática de Atenas, leu o cerco que fizeram perante Moby Dick, foi da milícia antifascista, perseguido, exilado, repatriado, et caetera e tal. Leu Rabelais e Joyce e disse “eles são exemplos de satíricos”. Concordou com Lévi-Strauss e pregou nas salas de arte e literatura que arte mesmo só aquela que comunica algo, e que os abstracionistas não tinham o que fazer fazendo aquilo que seria apenas o desejo de fazer. Compilou sonetos portugueses do século quinze. Leu teorias gerais e o escambau. Era, e não se sabe se continua sendo, carbonário, entidade colérica. Dizia que a humanidade era instituição doente, que mormente estava doente. E enquanto pitava, e enquanto a fumaça cinza se derramava no ar, desmanchando-se numa dança angustiante, defendia o pensamento nascido no dentro do peito, o de que o mundo e as pessoas estariam precisando de uma injeção fortíssima de sentimentalismo expresso, daquela de mais forte e voraz caimento. Lembrava horas e horas de antigos colegas e de conversas, como a que travou com um aluno seu no curso de filosofia. Citou exemplo de uma discussão com uma antiga namorada e foi narrando para o aluno que ouvia...
“Quem és tu para falar em sentimentalismo expresso?”
“Sei, devo confessar-te o meu silencioso manifesto. Porém, acredite, não é de hoje o meu vil galanteio!”
“Impudente! Cínico!”
“Calma, não quero brigar. Se me achas ator de uma desfaçatez minha, que me encarne e me apessoe. Não tenho eu a horrível intenção de magoá-la. Pobre de mim. Tenho, sim, uma quietude amplificada pela agudez de minhas ânsias mais desejosas.”
“Mas você me fala disso agora, depois que me despedaço... e é como se me ferisse a secas facadas. Logo, assim, desprezar-te-ei, por não mais me ater às tuas confianças.”
“Acerca disso, o Nélson diria: ”Poupai Ana Maria dos homens solitários, que por isso desejam mais...” Dessa maneira a ti me portaria, veraz em meus sentimentos sem voz, quase roucos, simples, de proporções colossais e extremamente humanas. Afloramentos que encontrariam nas palavras o veículo mais interessante para encontrar você.”
“Continuo a achar-te de um cinismo único. O queres comigo?”
“É o querer de ti, se em ti passo a mão nas formas de seguras resoluções. Acreditas tu, em tão ligeira avolumação?”
“Não. O amor é impossível quando de ligeiros golpes. O amor necessita de um tempo, de um asfalto. Destarte, em ti não hei de acreditar, e nem deveria.”
“Devo dizer-te da fluidez dos ventos deste mundo. O que é pode não ser mais, dependendo apenas do que se tem de referência. “Tudo flui”, Heráclito diria.”
(...)
Um homem velho, apesar da carne velha e sem tenacidade, possui coração que continua batendo, mesmo depois de maculado. O coração continua batendo, batendo, batendo... e batendo compassadamente se descompassava ao mínimo movimento das rosas. Havemos de considerar, antes de tudo, nossa humanidade. Afinal de contas, quem não é humano? E amar, para o homem, não era escândalo. Escândalo seria não desejar voar, feito um passarinho, livre, livre, livre ao cobiçar a liberdade na face das asas. E, mesmo sendo em horas impróprias, cantaria ele, sem vergonha de ser, na eloqüência das palavras, os amores que tinha e os que não tinha. “Onde o amor? Existe amor? Se ganha? Perde-se? O que tem amor? Para que amor? Doença? Cura? O que é amor?” Suspeito que saibas de alguma coisa, mas tenho a certeza que há o medo do mundo, dos olhos sempre abertos, dos falares das outras e dos outros. Há o medo de ser falena, e se o medo não existisse, talvez o velho jamais teria pensado em um dia voar, tomar o mundo como quem o transforma, como quem é capaz de tê-lo ao encontro de si próprio.
(...)
“Se tudo fosse tão fácil assim!”
“Mas é fácil, e há de ser, sempre, posto que “tudo é falta de amor: um câncer no seio ou um simples eczema é o amor não possuído!” E é na sua totalidade e onipresença que construo as bases e os meus alicerces mais sinceros.”
“Estou começando a sentir nojo de você. Como podes, engenhar mentiras tão grotescas! Isso é uma afronta aos meus conceitos! Justo você, que tanto ofereci apreço... longe daqui!”
“Perdão. O amor é mesmo um ser que provoca incredulidade, tamanha sua força. O amor é dúvida. Quem sabe, o amor fique a te esperar na esquina da rua por onde passas, desavisada, todas as manhãs de todos os teus dias. Qual o talhe do Amor?”
“Por que agora?”
“Acho que sou um tipo descobridor dos sete mares, dos sete sóis, das sete luas... tenho a impressão de já ter escrito essas palavras. Não enxergo o amor em matéria lapidada no teu olhar, em teu seio tão frutífero, em tuas ancas de mulher. Vejo uma espera, uma agonia, um sofrer de menina-mulher disfarçado numa lepidez que é sua, e não recebido dele: o Amor. O amor em você é uma serra, ali, parada, imóvel, sem reação, alma doída por ser tão distante dos sentidos. E hoje o teu nome é desencanto.”
“Não tens o direito de dizer tão alto essas palavras! Você não me conhece!”
(...)
Talvez o velho não soubesse do amor. Assim sendo, viveria. Ou, talvez, e quanta tristeza!, o amor não o tivesse e aí, sim, seria morte. E na platéia, a olhar o féretro, com os dedos em riste e a mais borrachuda voz, surgiria o Camus para dizer que o homem é mesmo assim, com duas ou mais faces, “não consegue amar sem se amar”. E, mesmo morto, sobre o catafalco banhado com o brilho morto do ouro que só a morte empresta, em sua simplicidade e discrição, o velho calcar-se-ia em pensar no amor que teve para, só depois de lograr a hora do adeus, no mesmo arfante e embriagante desejo de dominar o amor, como dele ser vivo ser que se apaixonou na eterna magia dos tempos, considerar, sem medo e permanecido em êxtase, que amar é apenas uma conseqüência do amor.