Por Germano Xavier
Biografia provisória de Doró.
* Nos dias de bem antes...
- Doró morenín do mato nasce, como toda gente há de nascer, depois de dar muitas cambalhotas no ventre da mãe.
- travessurar só em Pastinho, um dos mundos do mundo, e o mundo dele.
- fica órfão das coisas de fora.
- aprende a chorar de alegria.
- aprende que todo quintal é um planeta.
- pela primeira vez, anda nu das roupas da alma.
- aprende a correr de cassaco grande.
- percebe que um dia ele iria crescer, e que isso era inevitável. nesse mesmo dia, nota que era bom de dom.
- decide pupilar a vida inteira.
* Nos dias de quase-ontem...
- fica órfão das rasuras.
- aprende a ser como o vento, soprador.
- conhece o poder da invisibilidade.
- conhece uma lagarta ainda nem crisálida, por quem se apaixona.
- realiza sua primeira experiência gozosa, fazendo a Grandeza escancarar um sorriso.
- mata, sem querer, um passarinho do santo e, como para recompensar o ato feio, resolve lavar nuvens.
- toma gosto pela arte da ameninação.
- aprende a becar.
- obedece à desobediência e, no mesmo instante, resolve ir à caça dos rebeldes sem causa.
- enxerga a visão dos machados dourados, prenúncio para a salvação.
- aprende a não contar vantagens por ser uma fonte, mas sim a desaguá-la nos outros.
* Nas proximidades bem próximas...
- sofre a dor do Desmijo.
- aprende piedades.
- toma gosto pelos milagres de Vozinha-Mãe, mas mesmo assim a barriga não pesa.
- aprende manejo de bola de pano.
- descobre inteligência.
- abandona as burrices.
- une-se às lonjuras.
- torna-se cutucador e chutador.
- aprende a esquecer.
- rompe suas ligações com o que não é poesia.
- conhece as passagens.
- compõe céus, branquezas, sorrisos e tantas outras estréias.
- contrói uma casa de esperanças.
- e véve.
VI
anuviado era o céu de Pastinho
lugar de idade pouca do moreninho
de facúndia boa na lembração
dos dias antigos e de chuva muita
lugar de Vozinha-Mãe fazedora de milagre
sabedora das datas de tiro e queda
bem nos idos de antanho fazia doró
caminhar até o sítio de Vozinha-Mãe
levando na bagagem do rosto
uma alegria triste de dentes
e aí já se esperava o levantar sôfrego
e claudicante de Vozinha-Mãe indo
no quesito do fogão de adobe queimado
que ardia o fogo com madeira de comida
sentado o do mato espiava a concha
nadando no caldo do feijão de mão
feito uma pisa levada amassando a bunda
do mancebo e aquelas mãos rugosas
trazendo para o lume o delírio do alimento
daí faltava pouco era misturar a farinha
com as pedrinhas carnudas
e fazer com o rodo das mãos o milagre
bolinha de feijão com farinha no ponto
que fortalecia o soprar das largatas
que fazia doró um vento só
de asa grande pra alcançar as nuve
e pra fugir de cassaco grande
e de espanto maior que seus dons de arte
eita que Vozinha-Mãe também era uma fonte
de verdade era era uma fontona
isso assim no dizer de Doró
isso assim no dizer de Pastinho
lugar de funduras
lugar de lonjuras