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Wednesday, September 11, 2024

Requiem por Salvador Allende


Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi
mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes
primavera no chile primavera no mundo
Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa
leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio
enfrento meu velho borges o muito meu destino sul-americano
Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo
o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia
talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado
ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal
mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber
embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar
acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
quando o irmão miguei veio pequeninamente pela areia
e convulsivamente me falou da situação no chile
veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão
mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra
erguem um poema no silêncio só circundante
Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no
com eles via a vida com eles via os homens via homens
via problemas de homens e as coisas que via eram coisas de homens
hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás
Nos finais de setembro nos princípios de novembro
tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar
dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais
já que projectos sociais projectos cívicos profissionais
ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais
mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda
mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças
que caridosamente deram que assim conseguiram
solucionar os prementes problemas do país
Ouvi falar também desse cargueiro playa larga
praia comprida mas praia deserta e não só na palavra
pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas
A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia
algum poema terminado alienado algum termo conquistado
tão inefável como por exemplo o de tancazo
atribuído ao golpe orientado por pablo rodriguez
homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio
na tentativa vã de destruir frases hoje históricas
do grande cavalheiro que decerto foi allende
e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo
mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então
se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas
País amável calorosa entrada em Santiago
e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas
e que depois de o ter visto e o ter ouvido
ao homem que for homem poderei chamar-lhe
seja qual for o nome salvador allende
Que nestas minhas minerais palavras de poeta
vibre um pouco o vigor da tua voz
bafejando de paz primeiro o bom povo do chile
depois o povo bom de todo o inundo
Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto
os que têm a força mas não têm a razão
pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará
Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar
tu mandas-me no mar a ave branca do teu rosto
vento que vem do mar vento que vem do chile
Aqui neste dia de súbito cinzento
somente povoado pelo meu sofrimento
e pelo pensamento desse sofrimento
voo também vou também eu nesse lenço
que retiro do bolso aqui à beira-mar
e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz
uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar
somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida
ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz
muito obrigada salvador allende
obrigada por essa tua vida de cabeça erguida
só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida
mas não pode levar de vencida a obra por allende começada
selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer
nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo
Foi no ano de mil novecentos e setenta
ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país
que uma coligação do tipo frente popular tomou
pela via legal conta do poder no chile
legalidade sempre respeitada por ti allende
mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela
cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático
Falavas tu dizias a verdade
falavas com palavras de verdade
uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes
saíam as palavras na verdade belas como balas
salvador allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina
de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento
guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz
essa palavra alada como ave ave não só de georges braque
mas de nós todos aves verticais aves a última estação
árvores desfolhadas num definitivo inverno
allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo
com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos
allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar
e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala
pablo neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo
em las piedras dei cielo esse livro puríssimo
e são pedras do céu mas mais do que céu pedras da terra
Sol que te pões e nascerás no chile
leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas
dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato
e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de lisboa
nem por sair nas páginas diárias dos jornais
Do chile chegou-me não há muito a amizade do hernán
que em madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas
e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses
e desse país mais comprido do globo veio-me também
o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade
Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país
estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse
oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico
O washington post falava já do golpe dias antes do golpe
ninguém falava delas mas elas encontravam-se ali mesmo
as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas
vestiam mesmo as fardas do exército chileno
esses americanos gente do dinheiro e do veneno
de um veneno talvez chamado dinheiro
que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon
montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos
assunto de política estrangeira americana
Hernán urrutia meu amigo austral
que em barajas vi olhar voltar
para mim a cabeça pela última vez
marcelo coddo professor em concepción
com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta cardenal
e sobre a jovem poesia nicaraguense
e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome
mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso
um certo olhar visível por detrás de uns óculos
talvez hoje quebrados por quem não considera
talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida
embora porventura tenha visto aquela sequência de fellini
e desconhece que afinal a vida reproduz a arte
Escreve este poema no jornal com as notícias frescas
após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão
e mesmo ter ouvido até a voz desse pedro moutinho
a voz das afluências ao nosso principal estádio o da cova da iria
e dos cortejos presidenciais o dessas tão espontâneas manifestações
voz afinal da cia e da itt e dos demais tentáculos
do imperialismo norte-americano
maneira americana de se estar no mundo
de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do terceiro mundo
terceiro mundo ou melhor último mundo
que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos
que marcham mas decerto em vão na direcção
do centro de santiago onde vingara
a rebelião dos marinheiros vindos de valparaiso
cabeça dos imensos deserdados deste mundo
Sabíamos decerto um pouco em que consistia
essa via chilena para o socialismo
e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular
e discursos de allende naquela cidade distante
embora houvesse muito mais notícias nos jornais
e a gente nos cafés falasse mais em futebol
livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite do outono
sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão
donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos
exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas
Era uma vez um chileno chamado salvador allende que
fez um grande país de um país pequeno onde
talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança
quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade
todos nós fomos um pouco chilenos
Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós
que um homem se detenha quando a história caminha
em frente sempre altiva e serena
como mulher de muito tempo sabedora
Posso dizer por certo como há já muitos anos
acerca dos milicianos espanhóis dizia neruda
allende não morreste estás de pé no trigo
Ruy Belo

Monday, September 11, 2023

Requiem por Salvador Allende

 

Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi

mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes

primavera no chile primavera no mundo

Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa

leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio

enfrento meu velho borges o muito meu destino sul-americano

Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água

sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo

o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia

talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado

ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal

mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber

embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar

acabara um poema enchia o peito de ar junto da água

quando o irmão miguei veio pequeninamente pela areia

e convulsivamente me falou da situação no chile

veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão

mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra

erguem um poema no silêncio só circundante

Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no

com eles via a vida com eles via os homens via homens

via problemas de homens e as coisas que via eram coisas de homens

hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás

Nos finais de setembro nos princípios de novembro

tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar

dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais

já que projectos sociais projectos cívicos profissionais

ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais

mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda

mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças

que caridosamente deram que assim conseguiram

solucionar os prementes problemas do país

Ouvi falar também desse cargueiro playa larga

praia comprida mas praia deserta e não só na palavra

pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas

A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia

algum poema terminado alienado algum termo conquistado

tão inefável como por exemplo o de tancazo

atribuído ao golpe orientado por pablo rodriguez

homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio

na tentativa vã de destruir frases hoje históricas

do grande cavalheiro que decerto foi allende

e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo

mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então

se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas

País amável calorosa entrada em Santiago

e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas

e que depois de o ter visto e o ter ouvido

ao homem que for homem poderei chamar-lhe

seja qual for o nome salvador allende

Que nestas minhas minerais palavras de poeta

vibre um pouco o vigor da tua voz

bafejando de paz primeiro o bom povo do chile

depois o povo bom de todo o inundo

Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto

os que têm a força mas não têm a razão

pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará

Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar

tu mandas-me no mar a ave branca do teu rosto

vento que vem do mar vento que vem do chile

Aqui neste dia de súbito cinzento

somente povoado pelo meu sofrimento

e pelo pensamento desse sofrimento

voo também vou também eu nesse lenço

que retiro do bolso aqui à beira-mar

e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz

uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar

somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida

ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz

muito obrigada salvador allende

obrigada por essa tua vida de cabeça erguida

só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida

mas não pode levar de vencida a obra por allende começada

selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer

nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo

Foi no ano de mil novecentos e setenta

ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país

que uma coligação do tipo frente popular tomou

pela via legal conta do poder no chile

legalidade sempre respeitada por ti allende

mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela

cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático

Falavas tu dizias a verdade

falavas com palavras de verdade

uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes

saíam as palavras na verdade belas como balas

salvador allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina

de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento

guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz

essa palavra alada como ave ave não só de georges braque

mas de nós todos aves verticais aves a última estação

árvores desfolhadas num definitivo inverno

allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo

com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos

allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar

e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala

pablo neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo

em las piedras dei cielo esse livro puríssimo

e são pedras do céu mas mais do que céu pedras da terra

Sol que te pões e nascerás no chile

leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas

dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato

e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de lisboa

nem por sair nas páginas diárias dos jornais

Do chile chegou-me não há muito a amizade do hernán

que em madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas

e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses

e desse país mais comprido do globo veio-me também

o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade

Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país

estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse

oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico

O washington post falava já do golpe dias antes do golpe

ninguém falava delas mas elas encontravam-se ali mesmo

as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas

vestiam mesmo as fardas do exército chileno

esses americanos gente do dinheiro e do veneno

de um veneno talvez chamado dinheiro

que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon

montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos

assunto de política estrangeira americana

Hernán urrutia meu amigo austral

que em barajas vi olhar voltar

para mim a cabeça pela última vez

marcelo coddo professor em concepción

com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta cardenal

e sobre a jovem poesia nicaraguense

e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome

mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso

um certo olhar visível por detrás de uns óculos

talvez hoje quebrados por quem não considera

talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida

embora porventura tenha visto aquela sequência de fellini

e desconhece que afinal a vida reproduz a arte

Escreve este poema no jornal com as notícias frescas

após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão

e mesmo ter ouvido até a voz desse pedro moutinho

a voz das afluências ao nosso principal estádio o da cova da iria

e dos cortejos presidenciais o dessas tão espontâneas manifestações

voz afinal da cia e da itt e dos demais tentáculos

do imperialismo norte-americano

maneira americana de se estar no mundo

de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do terceiro mundo

terceiro mundo ou melhor último mundo

que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos

que marcham mas decerto em vão na direcção

do centro de santiago onde vingara

a rebelião dos marinheiros vindos de valparaiso

cabeça dos imensos deserdados deste mundo

Sabíamos decerto um pouco em que consistia

essa via chilena para o socialismo

e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular

e discursos de allende naquela cidade distante

embora houvesse muito mais notícias nos jornais

e a gente nos cafés falasse mais em futebol

livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite do outono

sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão

donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos

exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas

Era uma vez um chileno chamado salvador allende que

fez um grande país de um país pequeno onde

talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança

quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade

todos nós fomos um pouco chilenos

Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós

que um homem se detenha quando a história caminha

em frente sempre altiva e serena

como mulher de muito tempo sabedora

Posso dizer por certo como há já muitos anos

acerca dos milicianos espanhóis dizia neruda

allende não morreste estás de pé no trigo


Ruy Belo

 

Monday, August 21, 2023

Nau dos Corvos


Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea de cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabar
em nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras.

Ruy Belo

Tuesday, August 08, 2023

OS ESTIVADORES

Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra
Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia
Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que antes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade
Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade
Ode marítima é que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais
Ruy Belo
(27 de fevereiro de 1933 – 8 de agosto de 1978)