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Thursday, March 16, 2023

Auto-retrato

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.
Natália Correia

Saturday, January 18, 2014

Memória de Ary dos Santos


Ecce Homo  

Desbaratamos deuses, procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança, imaginando
Uma causa maior que nos explique.

Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera heróis e homens e poetas.

Pois deuses somos nós. Deuses do fogo
Malhando-nos a carne, até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,

Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue, raiva, desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.

Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'


No 30º aniversário da sua morte.

Tuesday, October 16, 2012

Memória de Adriano




Faz hoje 30 anos que Adriano nos deixou fisicamente.
Ficou a sua voz, a voz da ternura, para o sentirmos por perto...

Sunday, July 11, 2010

Memória de Vinicius



Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva
Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel
Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu

Vai voando, contornando
A imensa curva norte-sul
Vou com ela viajando
Havaí, Pequim ou Istambul
Pinto um barco a vela branco navegando
É tanto céu e mar num beijo azul
Entre as nuvens vem surgindo
Um lindo avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo
Com suas luzes a piscar
Basta imaginar e ele está partindo
Sereno indo
E se a gente quiser
Ele vai pousar

Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida
Com alguns bons amigos, bebendo de bem com a vida
De uma América a outra consigo passar num segundo
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo
Um menino caminha e caminhando chega num muro
E ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está

E o futuro é uma astronave
Que tentamos pilotar
Não tem tempo nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida
E depois convida a rir ou chorar
Nessa estrada não nos cabe
Conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe
Bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela
De uma aquarela que um dia enfim
Descolorirá

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
Que descolorirá
E se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva
Que descolorirá
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo
Que descolorirá

Vinicius de Moraes
(19.10.1913 - 9.7.1980)