Foi nesse momento que meu corpo foi abruptamente lançado pelo ar e, ao tempo em que eu voava sobre o asfalto, pensava comigo no ocorrido: “Um carro me atingiu enquanto eu conversava com uma garota no estacionamento da FUNARTE”.
Eu me lembro muito bem, o dia estava lindo, ensolarado e seco. Um árido, porém belo dia de Domingo.
Tinha em minha adega uma garrafa
de uma cachaça de qualidade relativamente boa. Foi um tempo em que experimentei
diversas qualidades de cachaça; todas relativamente boas. Não seria capaz de me
lembrar do nome de nenhuma delas em especial, senão de seus prazerosos efeitos.
Mais ou menos como as mulheres em meus ébrios dias de juventude. Fica na
memória a sensação de que foi bom, mesmo que não me lembre muito bem como foi.
Vivendo numa pequena comunidade
rural, mas sendo oriundo da urbe, tentava me integrar à ruralidade local
estabelecendo qualquer sorte de contato com o meio que me cercava. Beber era
uma ótima forma de fazê-lo. Sair caminhando pela vegetação, tendo “visões”
ancestrais e me conectando ao chão e ao cheiro das coisas do Cerrado, para
então mergulhar num riacho de águas ainda vivas, plenas em bem-estar e energia.
À metade do dia a garrafa já
estava metade cheia, metade vazia. Lá fora, sob forte sol, Pablito, um
andarilho que por lá perambulava e realizava pequenas empreitadas pelos
casarios da comunidade, trabalhava tenazmente com sua enxada. Muito sério, não
queria saber da cachaça que eu insistia em oferecer. “Já tive muito problema
por causa disso!”.
Na vitrola, um disco raro com antigas
cantigas evocadas pelos integrantes do bando de Virgulino Ferreira, o Lampião,
para esquecerem-se da solidão que a vida no cangaço lhes propiciava. “Se eu
soubesse que chorando/ empacava a sua viagem/ meus olhos eram dois rios/ que
não lhe davam passagem...” – e enquanto eu escutava isso, tomava outra talagada,
e todo o espírito ficava ainda mais bonito!
Eu bebia apenas para expandir a
euforia. Para andar pela casa filosofando, cantando e rindo sozinho. Bebia para
me emocionar e por acreditar que a verdade da vida fosse sempre mais bela que
realidade fingida.
Tarde adentro, sol a pino,
segui bebendo. E da voz seca de um Othon Bastos travestido de guerreiro na forma
de cangaceiro que saía do estereofônico, ouvia-se a Oração ao Glorioso São
Jorge: Eu andarei vestido e armado com as
armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés, não me alcancem, tendo
mãos, não me peguem, tendo olhos, não me vejam, e nem mesmo pensamentos eles
possam ter para me fazerem mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas
e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem
o meu corpo amarrar. Era Corisco, sequestrado por Glauber, agora em missão
especial à Terra do Sol.
Sempre imaginei por onde andaria
o Capitão Virgulino àquelas horas. Corisco lá, fazendo o maior sermão que o
Cinema Novo jamais escutara, e eu me perguntando: “Será que o Lamparina liberou
ele dos assaltos?”.
Escutei a oração por inúmeras e
repetidas vezes. Não sendo um cristão-novo ou tampouco convertido, punha fé nas
palavras. Pablito então surgiu de supetão à janela e me advertiu, bronqueado: -
Você não devia ouvir essas coisas assim [bêbado]. Isso é coisa do Sagrado. Tem
que estar em contato com a força...
Referia-se por certo à ayahuasca,
da qual era contumaz tomador. – São diferentes formas de senti-la, redargüi.
E, de fato, o que eu sentia era
sublime, lindo! Não havia como ser desrespeitoso se o que eu sentia era
espiritualmente tão poderoso. Deixei isso claro. Eu estava feliz. E protegido.
O sol ia se pondo quando
resolvi dar uma volta pela cidade. De lá de cima do morro, Brasília
brilhava!...
Poucas horas mais tarde, meu
corpo estaria estendido no asfalto, a alguns metros de uma mulher que jazia
inerte, com o rosto voltado para o chão. Uma cena terrificante. Acabáramos de
nos conhecer. Não houve sequer como saber seu nome, mas apenas tempo de lhe
roubar um beijo e adverti-la: - É perigoso ficar aqui...
Terminado
o lançamento, caí num rolamento sensacional, evitando qualquer ferimento; “...
e nem mesmo pensamentos eles possam ter para me fazerem mal...”. Levantei os
olhos e vi o motorista vindo em nossa direção, desesperado, rua acima. Mais
próximo a mim, ela. Estava lá, jogada, sem a proteção necessária; decerto
ferida.
Num
átimo de segundo eu a segurava em meu colo, como um Romeu que vê Julieta semimortificada.
Mas eu não pensava em suicídio, e sim em reanimá-la. Após um mórbido instante,
vi seus olhos se abrirem; tão docemente como minutos atrás, quando nossos
olhares se cruzaram e eu a cortejava. Ela não sabia de nada, a inocente. Encontrava-se
num mundo lindo, totalmente lindo, perfeitamente lindo. Ela, que tinha uma
clavícula fraturada e a face parcialmente arrebentada, estava muito feliz e não
sabia de nada...
Clamei
por socorro! Muita gente acudiu e começou a nos rodear; paramédicos, bombeiros,
populares e policiais, além do motorista em pânico. “Qual o nome dela”, quis
saber alguém:
- O nome dela? Não sei. Acabamos de nos
conhecer, amigo. Só estávamos nos beijando...
- Da maca para a ambulância, rápido! –
emendou o bombeiro, enquanto os demais retiravam a menina do local.
- Esperaí! Também fui atropelado; vou com
ela na ambulância!
A
sirene gritava e o paramédico que a atendia agia: - Você se lembra do seu nome?
Endereço? Nome da mãe? – e ela me olhava, com o rosto parcialmente ensangüentado,
como se não estivesse acontecendo nada.
Fomos
literalmente desovados no setor de emergência do Hospital de Base de Brasília.
Em meio ao caos, muitos gemidos coletivos, madrugada adentro. Senti a dor
alheia, o descaso, a sujeira e o suplício; mimos oferecidos pelo estado ao
pobre cidadão convalescente. Raio-X quebrado. Necessidade de ir ao banheiro e o
corpo quebrantado. Priscila sofreu – era este o seu nome, afinal -, mas sentiu
cada gesto do carinho por mim dispensado.
Na
manhã seguinte, sua família enfim apareceu para resgatá-la. Queriam levá-la a
um hospital de gente. Sua mãe, nada agradecida, olhou-me de cima a baixo,
enojada, talvez por conta da minha barba desgrenhada ou por conta do bafo da
cachaçada; quem sabe?
Quanto
à Priscila, sentada no banco de trás e calada, jurava que havia visto um anjo da
guarda.
foto: joão sassi