Mais real que a realidade
Não gosto de documentários. Quanto mais documentários vejo menos gosto. Em breve irei ver Os Lisboetas, que é muito bom - garantem-me - e, tenho a certeza, mesmo que goste vou continuar a desprezar documentários. As razões são tantas que mesmo que me demonstrem que algumas delas revelam ignorância e outras são descabidas sempre sobrariam algumas muito sensatas e outras, simplesmente, indiscutíveis, por serem pessoais.
O último filme dos irmãos Dardenne foi o terceiro grande filme que vi em 2006, logo depois de Uma história de violência e de O Novo Mundo. E entre várias razões sobressai esta, que já intuíra em filmes anteriores: os irmãos Dardenne fazem filmes como quem faz documentários. Infelizmente, quase toda a gente que faz documentários, fá-los como se fizesse filmes (como se quisesse, soubesse, almejasse fazer filmes). A diferença está à vista: os irmaõs Dardenne são tão bons e tão isentos de falsas modéstias, presunções e prepotências (e, ao mesmo tempo, tão bons) que querem fazer um filme, contar uma história, assumir, de forma clara, séria e responsável, que aquela é a sua história, a sua ficção; simplesmente, fazem-no tão nas dobras da realidade, tão em cima do dia-a-dia, tão mergulhados no mundo, que a sua visão do mundo (e é uma visão comprometida) se confunde com um olhar neutro, de passagem. Coisa que, devendo ser o objecto e fim de um documentário, falha quase sempre, por presunção. Um bocado como (um certo) jornalismo. Mas adiante.
Ao quarto filme dos irmaõs Dardenne, L'Enfant, confirma-se o que tinha vindo a sentir e a pensar: os irmão realizadores interessam-se por uma espécie de moral inevitável. Procuram uma límpida amoralidade, impossível, algo romântica, severa, ora alegre, infantil, ora crua, cruel, angustiante. Foi assim com A Promessa, tanto assim com Rosetta, depois com O Filho, agora com A Criança.
Estão-se nas tintas para artíficios e engodos. Excepto um: pegam numa câmara de filmar e esquecem-se que são realizadores. Não há música, apenas som ambiente, não há picados ou contra-picados que um homem não possa fazer sem ajuda de máquinas. Há uma história para contar e o contá-la em filme ficção percebe-se justamente pela hiper-realidade. Explico. Onde se percebe que os irmãos Dardenne estão a realizar um filme é por não deixarem nada de fora. Ou pelo que percebemos que escolheram incluir. Ao contrário dos documentários, em que sobre a capa da realidade, por vezes se pretendem branquear opções. Mas há mais, claro, este hiper-realismo dos irmãos Dardenne (que não é caso único no cinema europeu) faz-se mais pela ficção do que qualquer documentário poderia permitir. O ponto é este: os irmãos Dardenne sabem como é a realidade que querem demonstrar e, por isso, não a procuram nem a esperam, criam-na e filmam-na. A sua mestria está na escolha do que pretendem mostrar. As dobras da sociedade. E o génio está aí: ao escolherem apagar-se dos seus próprios filmes os irmãos Dardenne conseguem o oposto, conseguindo igualmente o que poderiam pôr em perigo se escolhessem um cinema activista. Ao não tomarem posição sobre os temas que escolhem os realizadores retiram-se como foco de crítica, fica apenas a história. E as histórias dos Dardenne são sempre de discriminação, são sempre para além do mediano, do contornável, do discutível. Aliás, a sua técnica e estilo de filmagem aponta nesse sentido: acompanhamos os personagens, sempre em ritmos vertiginosos, difíceis, cansativos para, repentinamente, sem aviso, tudo estacar. E ficar perante nós - o que sempre estivera - aquele retrato brutal da vida levada nas dobras da sociedade, a qual não precisa de ser engajada ou assumida, porque a própria história e esse momento paróxico, são, em si mesmas, engajadas, assumidas, discriminatórias de osso à vista.
Pense-se em Rosetta desdobrando-se em empregos, vivendo numa roulotte dentro de um parque de campismo, onde languesce a mãe, alcóolica, prostituindo-se casualmente; mãe que ela tenta manter sóbria, por entre empregos que se desfazem, traições ao único ser que lhe estende uma mão, aguentando uma úlcera ou lá o que é... ou pense-se em Bruno e Sonia, adolescente, adolescentes tardios, com um filho nos braços, com um esconderijo, debaixo da ponte, com caixas de cartão para cobertores, ela sem emprego, ele não querendo emprego, preferindo os pequenos assaltos, vender o filho. E, num e noutro filme, sempre estamos, um pouco atrás, um pouco de lado, acompanhando tudo, perseguindo os personagens, descobrindo as suas vidas, sem uma censura, sem um aviso, sem preparação. Até que, num e noutro filme, não se suporta mais. Nem as personagens, nem nós.
Dos dois filmes retenho duas imagens: as estradas, vias rápidas que, repetidamente as personagens têm de passar. Esse cruzamento alegórico, a sociedade média passando nos seus carros e, nas margens, cruzando-a, os que restam: os ganchos, os biscates, os pequenos crimes; e, por fim, o choro, um choro desesperado, total, para além do qual nada mais há, ou mesmo que haja, já não importa, dali para a frente começa tudo de novo e aceitam-se apostas. Mas isso já nada tem que ver com os irmãos Dardenne. Nem nunca teve. Eles limitaram-se a contar uma história. Mais real que a realidade.
DM
O último filme dos irmãos Dardenne foi o terceiro grande filme que vi em 2006, logo depois de Uma história de violência e de O Novo Mundo. E entre várias razões sobressai esta, que já intuíra em filmes anteriores: os irmãos Dardenne fazem filmes como quem faz documentários. Infelizmente, quase toda a gente que faz documentários, fá-los como se fizesse filmes (como se quisesse, soubesse, almejasse fazer filmes). A diferença está à vista: os irmaõs Dardenne são tão bons e tão isentos de falsas modéstias, presunções e prepotências (e, ao mesmo tempo, tão bons) que querem fazer um filme, contar uma história, assumir, de forma clara, séria e responsável, que aquela é a sua história, a sua ficção; simplesmente, fazem-no tão nas dobras da realidade, tão em cima do dia-a-dia, tão mergulhados no mundo, que a sua visão do mundo (e é uma visão comprometida) se confunde com um olhar neutro, de passagem. Coisa que, devendo ser o objecto e fim de um documentário, falha quase sempre, por presunção. Um bocado como (um certo) jornalismo. Mas adiante.
Ao quarto filme dos irmaõs Dardenne, L'Enfant, confirma-se o que tinha vindo a sentir e a pensar: os irmão realizadores interessam-se por uma espécie de moral inevitável. Procuram uma límpida amoralidade, impossível, algo romântica, severa, ora alegre, infantil, ora crua, cruel, angustiante. Foi assim com A Promessa, tanto assim com Rosetta, depois com O Filho, agora com A Criança.
Estão-se nas tintas para artíficios e engodos. Excepto um: pegam numa câmara de filmar e esquecem-se que são realizadores. Não há música, apenas som ambiente, não há picados ou contra-picados que um homem não possa fazer sem ajuda de máquinas. Há uma história para contar e o contá-la em filme ficção percebe-se justamente pela hiper-realidade. Explico. Onde se percebe que os irmãos Dardenne estão a realizar um filme é por não deixarem nada de fora. Ou pelo que percebemos que escolheram incluir. Ao contrário dos documentários, em que sobre a capa da realidade, por vezes se pretendem branquear opções. Mas há mais, claro, este hiper-realismo dos irmãos Dardenne (que não é caso único no cinema europeu) faz-se mais pela ficção do que qualquer documentário poderia permitir. O ponto é este: os irmãos Dardenne sabem como é a realidade que querem demonstrar e, por isso, não a procuram nem a esperam, criam-na e filmam-na. A sua mestria está na escolha do que pretendem mostrar. As dobras da sociedade. E o génio está aí: ao escolherem apagar-se dos seus próprios filmes os irmãos Dardenne conseguem o oposto, conseguindo igualmente o que poderiam pôr em perigo se escolhessem um cinema activista. Ao não tomarem posição sobre os temas que escolhem os realizadores retiram-se como foco de crítica, fica apenas a história. E as histórias dos Dardenne são sempre de discriminação, são sempre para além do mediano, do contornável, do discutível. Aliás, a sua técnica e estilo de filmagem aponta nesse sentido: acompanhamos os personagens, sempre em ritmos vertiginosos, difíceis, cansativos para, repentinamente, sem aviso, tudo estacar. E ficar perante nós - o que sempre estivera - aquele retrato brutal da vida levada nas dobras da sociedade, a qual não precisa de ser engajada ou assumida, porque a própria história e esse momento paróxico, são, em si mesmas, engajadas, assumidas, discriminatórias de osso à vista.
Pense-se em Rosetta desdobrando-se em empregos, vivendo numa roulotte dentro de um parque de campismo, onde languesce a mãe, alcóolica, prostituindo-se casualmente; mãe que ela tenta manter sóbria, por entre empregos que se desfazem, traições ao único ser que lhe estende uma mão, aguentando uma úlcera ou lá o que é... ou pense-se em Bruno e Sonia, adolescente, adolescentes tardios, com um filho nos braços, com um esconderijo, debaixo da ponte, com caixas de cartão para cobertores, ela sem emprego, ele não querendo emprego, preferindo os pequenos assaltos, vender o filho. E, num e noutro filme, sempre estamos, um pouco atrás, um pouco de lado, acompanhando tudo, perseguindo os personagens, descobrindo as suas vidas, sem uma censura, sem um aviso, sem preparação. Até que, num e noutro filme, não se suporta mais. Nem as personagens, nem nós.
Dos dois filmes retenho duas imagens: as estradas, vias rápidas que, repetidamente as personagens têm de passar. Esse cruzamento alegórico, a sociedade média passando nos seus carros e, nas margens, cruzando-a, os que restam: os ganchos, os biscates, os pequenos crimes; e, por fim, o choro, um choro desesperado, total, para além do qual nada mais há, ou mesmo que haja, já não importa, dali para a frente começa tudo de novo e aceitam-se apostas. Mas isso já nada tem que ver com os irmãos Dardenne. Nem nunca teve. Eles limitaram-se a contar uma história. Mais real que a realidade.
DM
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