Back to Mallick
Diz o Luís, não sem um ponta de inusitada razão que o último filme de Mallick, The New World, é "uma longa e pretensiosa bosta". Ora, uma vez que a duração do filme é um dado objectivo e, pelo contrário, a presunção que o autor empresta à obra é do mais subjectivo que há, resta-nos apenas a bosta. E é aqui que o Luís tem absoluta razão. Descontextualizemos e apuremos:
A bosta, aka estrume, aka húmus (para quando recuperar Raul Brandão para a galeria dos maiores da literatura portuguesa?) é o tema principal da última obra de Mallick. Comecemos por debruçar a nossa atenção sobre esta passagem:
Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...Uma vila encardida - ruas desertas - pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva - o castelo - restos intactos de muralha que não têm serventia. Uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. (... ) Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. (... )Silêncio. (...) Ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas.
Húmus, Raul Brandão
Se isto não é, sem tirar nem pôr, uma bela descrição de Jamestown I'll be damned. Em O Novo Mundo de Mallick, já aqui o disse, podemos ver muito facilmente uma Barreira Invisível parte 2, ou sendo, menos mauzinho, uma variação sobre o mesmo tema do filme anterior do realizador. Mas O Novo Mundo introduz um tema, ou melhor, reintroduz um tema, que enxerta com a guerra e o clash of civilizations. No amor e na guerra...
Não é fácil, evidentemente, perceber, como o Luís percebeu, que do que se fala é dos interstícios, do que subjaz ao quotidiano. Ao aparente. Mallick está numa pérpetua luta, esotérica, dir-se-ia, com os anjos da criação. Cada vez que Mallick filma uma árvore, um silêncio, um mondar, pode sentir-se a busca atenta pelo anjo que perpassa a criação, os habitantes de um mundo intermédio onde só a grandes imagens subsistem. Fundir tudo isto, uma corriqueira história de amor, uma agreste colonização, redunda facilmente em dispersão, para não dizer pior, sensaboria. Mas se acreditarmos, se pudermos divisar esse húmus onde Mallick sempre coloca a câmara, vaporiza-se perante o nosso olhar a carne e as ervas, os ossos e as árvores e ficam apenas imagens puras, aquilo que importa a Mallick.
Como apurado contador de histórias - vejo nele e em Eco boas semelhanças - pode contar a mesma história a dois públicos. Claro que para o leitor/espectador empírico, o que procura o policial, o whodunnit, há em The New World uma forte promessa de desilusão. Falta o ritmo, já se sabe o final e não há verdadeiramente ninguém para odiar ou temer. Mas para o leitor/espectador ideal, aquele que, com Mallick, procura projectar-se das sensações para esse apuro das imagens, há um filme quase em estado puro sobre duas difíceis realidades: a guerra e o amor. E aí Mallick não falha. Como o Luís refere, o realizador-filósofo funde os dois e apresenta-os como o húmus do homem e por isso, à vez (ou simultaneamente) como explicações do seu florescimento ou do seu soçobrar. E do seu possível estado daninho. A guerra, como n'A Barreira Invisível, como grande catarse colectiva onde o homem não pode fugir a revelar-se (como, por exemplo, o Iraque tem mostrado) e, recuperado das Badlands e de Days of Heaven, o amor, como uma espécie de guerra para dentro, a guerra a si mesmo, onde o homem não pode fugir a revelar-se perante si (o que é tanto ou mais dilacerante). Em New World Mallick ensaia a fusão e uma explicação. Grandiosa, é verdade. Partindo de um lugar-comum, inescapável, que a guerra e o amor explicam tudo, Mallick vai mais longe para dizer que o composto guerra-amor é simultaneamente a epifania do homem e do Homem. Que resultará em destruição ou redenção. Para John Smith é a destruição completa: pessoal e de uma civilização. Assim como para Pocahontas. O que, aliás, fortalece a natureza do amor de ambos, com esse duplo poder. Resta John Rolfe que surge como o outro lado desse binómio primordial, em que guerra e amor, passe o paradoxo, estão pacificados e seguros e, assim, se neutralizam. Numa felicidade, que, no entanto, como qualquer húmus, é sempre uma opção. E nunca uma imposição.
DM
A bosta, aka estrume, aka húmus (para quando recuperar Raul Brandão para a galeria dos maiores da literatura portuguesa?) é o tema principal da última obra de Mallick. Comecemos por debruçar a nossa atenção sobre esta passagem:
Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...Uma vila encardida - ruas desertas - pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva - o castelo - restos intactos de muralha que não têm serventia. Uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. (... ) Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. (... )Silêncio. (...) Ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas.
Húmus, Raul Brandão
Se isto não é, sem tirar nem pôr, uma bela descrição de Jamestown I'll be damned. Em O Novo Mundo de Mallick, já aqui o disse, podemos ver muito facilmente uma Barreira Invisível parte 2, ou sendo, menos mauzinho, uma variação sobre o mesmo tema do filme anterior do realizador. Mas O Novo Mundo introduz um tema, ou melhor, reintroduz um tema, que enxerta com a guerra e o clash of civilizations. No amor e na guerra...
Não é fácil, evidentemente, perceber, como o Luís percebeu, que do que se fala é dos interstícios, do que subjaz ao quotidiano. Ao aparente. Mallick está numa pérpetua luta, esotérica, dir-se-ia, com os anjos da criação. Cada vez que Mallick filma uma árvore, um silêncio, um mondar, pode sentir-se a busca atenta pelo anjo que perpassa a criação, os habitantes de um mundo intermédio onde só a grandes imagens subsistem. Fundir tudo isto, uma corriqueira história de amor, uma agreste colonização, redunda facilmente em dispersão, para não dizer pior, sensaboria. Mas se acreditarmos, se pudermos divisar esse húmus onde Mallick sempre coloca a câmara, vaporiza-se perante o nosso olhar a carne e as ervas, os ossos e as árvores e ficam apenas imagens puras, aquilo que importa a Mallick.
Como apurado contador de histórias - vejo nele e em Eco boas semelhanças - pode contar a mesma história a dois públicos. Claro que para o leitor/espectador empírico, o que procura o policial, o whodunnit, há em The New World uma forte promessa de desilusão. Falta o ritmo, já se sabe o final e não há verdadeiramente ninguém para odiar ou temer. Mas para o leitor/espectador ideal, aquele que, com Mallick, procura projectar-se das sensações para esse apuro das imagens, há um filme quase em estado puro sobre duas difíceis realidades: a guerra e o amor. E aí Mallick não falha. Como o Luís refere, o realizador-filósofo funde os dois e apresenta-os como o húmus do homem e por isso, à vez (ou simultaneamente) como explicações do seu florescimento ou do seu soçobrar. E do seu possível estado daninho. A guerra, como n'A Barreira Invisível, como grande catarse colectiva onde o homem não pode fugir a revelar-se (como, por exemplo, o Iraque tem mostrado) e, recuperado das Badlands e de Days of Heaven, o amor, como uma espécie de guerra para dentro, a guerra a si mesmo, onde o homem não pode fugir a revelar-se perante si (o que é tanto ou mais dilacerante). Em New World Mallick ensaia a fusão e uma explicação. Grandiosa, é verdade. Partindo de um lugar-comum, inescapável, que a guerra e o amor explicam tudo, Mallick vai mais longe para dizer que o composto guerra-amor é simultaneamente a epifania do homem e do Homem. Que resultará em destruição ou redenção. Para John Smith é a destruição completa: pessoal e de uma civilização. Assim como para Pocahontas. O que, aliás, fortalece a natureza do amor de ambos, com esse duplo poder. Resta John Rolfe que surge como o outro lado desse binómio primordial, em que guerra e amor, passe o paradoxo, estão pacificados e seguros e, assim, se neutralizam. Numa felicidade, que, no entanto, como qualquer húmus, é sempre uma opção. E nunca uma imposição.
DM
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