A Estratégia de Satan em Raul Seixas
Em seu excelente texto “A Segunda Queda de Lúcifer”, o doutor em História e escritor Ademir Luiz afirma: “a tal máxima de que o maior truque do Demônio foi fazer com que a humanidade não acreditasse que Ele existe não passa de bobagem”. Caso a coisa toda não seja apenas “uma bobagem”, Luiz entra, talvez inconscientemente, no jogo do Cão, ao complementar: “Se Ele de fato existisse, com certeza perderia a paciência e subiria à superfície para acabar com a bandalheira que andam fazendo com seu(s) Nome(s)”. Se o “Coisa-Ruim” realmente usa o truque, mais uma cabeça (muito) pensante o reforça. Mas não se pretende aqui falar do Diabo nem do escritor, e sim de alguém que, de certa forma, utilizou estratégia parecida, ao dar falsas pistas do que realmente pretendia, indicando caminhos que levavam a becos sem saída para todos aqueles que se aventuram a tentar entender o artista por meio das letras de suas músicas. O tema aqui é a negação-para-afirmar de Raul Seixas, o grande nome do rock brasileiro de todos os tempos.
Em uma de suas músicas mais conhecidas, “Cowboy Fora-da-lei”, o polêmico compositor declara: “Eu não sou besta pra tirar onda de herói / Sou vacinado, eu sou cowboy / Cowboy fora da lei”. Aparentemente, Raul (o próprio, não um mero personagem, dado o sempre presente tom autobiográfico de suas letras) não queria se comprometer, buscava a segurança da omissão e do anonimato. Parecia desejar a obscuridade, por ela não atrair inimigos (“Mamãe, não quero ser prefeito / Pode ser que eu seja eleito / E alguém pode querer me assassinar”), dava a entender que pretendia se isolar numa zona de conforto, tranquilo na segurança de quem não incomoda ninguém.
É óbvio que quem conhece, mesmo que superficialmente, a trajetória desse baiano ilustre, sabe que nada está mais distante da realidade: Raul nunca se negou a dar a cara a tapa, de ir contra a corrente, de enfrentar o “monstro SIST”, que Seixas chamava de “retado” e garantia: o tal bicho “tava” doido pra transar com ele, Raul. Levando a coisa para um âmbito mais inteligível: SIST é o “Sistema”, com seu conjunto de leis escritas e não-escritas, extremamente presentes em nosso modelo social contemporâneo (fonte). O mesmo Sistema que tanto perseguiu o cantor, tanto ideológica quanto fisicamente, nos tempos da ditadura, com tortura e exílio.
A história de “Cowboy fora da lei” é bastante interessante e tem a ver com o assunto principal aqui. Parceria de Raul e Cláudio Roberto, foi lançada em 1987 e inspirada em Tancredo Neves, cujas teorias de conspirações made in Brazil “informam” ter sido envenenado pelo regime militar, daí o trecho “Mamãe, não quero ser prefeito / Pode ser que eu seja eleito / E alguém pode querer me assassinar”. Fato curioso é que pesquisas daquela época davam Raul Seixas entre os preferidos do povo para a prefeitura de São Paulo (imagine só, Raul prefeito! Tão nonsense quanto Sílvio Santos na Presidência da República… ou não?). Na música, segundo algumas interpretações, há a insinuação de que os jornais mentiram ao dar a morte de Tancredo como algo decorrente de uma enfermidade casual (“Eu não preciso ler jornais / Mentir sozinho eu sou capaz”). Fechando a referência, a menção à partida prematura do Presidente quase-eleito (“Oh, coitado, foi tão cedo”).
Com base nisso, pode-se imaginar que Raul, já escaldado pelos embates e conflitos com essa sociedade violenta e radical, preferiu sossegar um pouco. Na verdade, o disco de 1987, Uah Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, está entre os menos combativos do artista. Há até uma frase bem estranha na totalidade da atitude do cantor, “Não bulo com governo, com polícia, nem censura / É tudo gente fina, meu advogado jura”. Embora vestida de ironia, a declaração parece mostrar que o Velho Guerreiro (nada a ver com o Chacrinha) estava cansado. Impressão reforçada no disco de 1988, A Pedra do Gênesis, em que a letra de “Não quero mais andar na contra-mão” traz um Raul Seixas capaz de rejeitar “fumo”, “pó” e “perfume” trazidos por duas amigas e uma “titia”, respectivamente da Colômbia, Bolívia e Argentina. No mesmo disco, a estranhíssima “Areia da Ampulheta”, numa levada que lembra música gospel de segunda categoria, faz uma autobiografia resumida de alguém que se diz, entre outras coisas, “O ignorante cultivado”, “O cão raivoso inconsciente / O boi diário servido em pratos”, “O pivete encurralado”, “O triste-alegre adestrado”, “o que carrega a sua bandeira / De todo o lugar o mais desonrado / Nascido no lugar errado”. Ouvindo a canção pela primeira vez, o fã pode até (se) perguntar “Que Raul é esse?”, mas há evidências de que, por baixo de toda a cinza, existem ainda brasas: “O vagabundo conformado / Sem nunca se ter reformado” dá bem a ideia de que o Maluco ainda continuava Beleza. No último verso, uma prova da fina ironia raulseixista: “Eu sou, eu sou você”. O filho da mãe descrevia, o tempo todo, não a si mesmo, mas àquele que o ouve!
E é nesse disco, também, que se encontra uma das músicas mais viscerais, em termos de letra, uma das que mais foram direto ao ponto, sem a recorrência das metáforas que pouquíssima gente, ainda hoje, entende: “A Lei”. O autor de “Gita” sempre fora um “cowboy fora da lei”, abraçando causas radicais e seguindo pessoas que a “sociedade” jamais aceitaria, como Aleister Crowley. Numa síntese das idéias do bruxo britânico, nosso Rei do Rock fez um rol de coisas que o Homem “pode fazer”, a saber: tudo. Simples assim. Evidente que a letra foi execrada por boa parte das pessoas e teve proibida sua execução em praticamente todas as rádios do país que receberam a bolacha. Defendendo nessa composição que “Todo homem tem direito de amar a quem quiser” (com o leque de opções escancarado em gênero, número e grau) e que “Todo homem tem direito de morrer quando quiser” (uma clara alusão ao suicídio como direito do ser humano), é de se duvidar que, por um segundo que fosse, Raul tenha acreditado que a música seria bem acolhida em solo tupiniquim. Mas, como se sabe, ele não dava a mínima para esse “detalhe”.
Comprando briga com a lei dos homens (“Todo o homem tem o direito de viver a não ser pela sua própria lei”) e com a lei de Deus (“Pois não existe Deus senão o homem”), ali estava o Raul que todos estavam acostumados a ouvir.
Foi o último disco de Raul, que morreu no dia 21 de agosto de 1989, aos 44 anos (descontando, obviamente, A Panela do Diabo, com Marcelo Nova, que mereceria um texto à parte).
O fato é que, assim como o Roupa Nova e Wando, Raul jamais deixou de ser tocado e cantado Brasil afora (analisa-se aqui a popularidade, desnecessário dizer – mas a gente diz assim mesmo! – que as praias do sexteto recordista em trilhas de novelas e a do brega mineiro Wanderley Alves dos Reis são muito outras!). E da mesma forma que Michael Jackson e Elvis Presley, Raul continua a vender depois de morto, guardadas, claro, as devidas proporções mercadológicas. Já foi tese de mestrado e doutorado inúmeras vezes, os livros, artigos e resenhas a seu respeito são incontáveis. Influenciou de forma interessante o pensamento e a ideologia de gente sem acesso à filosofia convencional. Mas tornou familiares a essa parcela do público nomes como Sócrates, Platão, Sartre.
A principal referência, contudo, foi Schopenhauer (fonte), citado sutilmente em “Trem 103”, de 1968: “Eu quero voltar / Por onde eu vim” remete à schopenhaueriana frase “Consciente de voltar por onde vim”, em “A hora do trem passar” (1973, “Já não sei se é hora de partir ou de chegar”) e em 1974, com o trem mais famoso, o “das Sete”. Mas a citação mais comentada de Schopenhauer em Raul é mesmo “Mosca na Sopa”: o filósofo alemão escreveu “Se a mosca, que agora zumbe em torno de mim, morre à noite, e na primavera zumbe outra mosca nascida de seu ovo, isso em si é a mesma coisa”, e Raul aproveitou a imagem criando uma mosca que pintou pra abusar e sacudir a mesmice e o marasmo das pessoas acomodadas; estas, quando finalmente conseguem matar uma mosca, imediatamente são acossadas por outra que vem no lugar da finada. Mosca-consciência, mosca pergunta-que-não-quer-calar, mosca de mil interpretações, como, aliás, quase tudo em Raul. Para não deixar dúvidas a respeito da fonte de onde mais bebeu (a ponto de dizer numa entrevista que o início da “metamorfose ambulante” se dera com a leitura do germânico), Raul se apropria de um trecho do capítulo “Morte” (do livro de Schopenhauer “Dores do Mundo”) para usar em “Nuit”, presente em seu álbum com Marcelo Nova: “E quão longa é a noite, / a noite eterna do tempo / se comparada ao curto sonho da vida”.
Um dado interessante é que, em meio a esse verdadeiro fluxo ferroviário metafórico (tantos trens…), em sua última obra Raul dava sinais de que pretendia dar um rumo novo à sua existência: na música “Carpinteiro do Universo”, do disco com Nova, declara estar sempre “sempre tentando mudar a direção do trem”. O que ele queria dizer com isso? Seria mais uma negação para melhor afirmar? Ou estaria ele “falando sério”? Infelizmente, A Panela do Diabofoi o canto do cisne do artista, e jamais se saberá que nova metamorfose estava a caminho…
Em tempo: há uma adaptação para os quadrinhos, em 3 páginas, por Maringoni, da letra de “Cowboy fora da lei” que você pode conferir aqui.
Por Celso Moraes de Faria
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