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quarta-feira, 6 de junho de 2012

CONTO TAKE ME HOME

Ray Bradbury

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When I was seven or eight years old, I began to read the science-fiction magazines that were brought by guests into my grandparents’ boarding house, in Waukegan, Illinois. Those were the years when Hugo Gernsback was publishing Amazing Stories, with vivid, appallingly imaginative cover paintings that fed my hungry imagination. Soon after, the creative beast in me grew when Buck Rogers appeared, in 1928, and I think I went a trifle mad that autumn. It’s the only way to describe the intensity with which I devoured the stories. You rarely have such fevers later in life that fill your entire day with emotion.

When I look back now, I realize what a trial I must have been to my friends and relatives. It was one frenzy after one elation after one enthusiasm after one hysteria after another. I was always yelling and running somewhere, because I was afraid life was going to be over that very afternoon.

My next madness happened in 1931, when Harold Foster’s first series of Sunday color panels based on Edgar Rice Burroughs’s “Tarzan” appeared, and I simultaneously discovered, next door at my uncle Bion’s house, the “John Carter of Mars” books. I know that “The Martian Chronicles” would never have happened if Burroughs hadn’t had an impact on my life at that time.

I memorized all of “John Carter” and “Tarzan,” and sat on my grandparents’ front lawn repeating the stories to anyone who would sit and listen. I would go out to that lawn on summer nights and reach up to the red light of Mars and say, “Take me home!” I yearned to fly away and land there in the strange dusts that blew over dead-sea bottoms toward the ancient cities.

While I remained earthbound, I would time-travel, listening to the grownups, who on warm nights gathered outside on the lawns and porches to talk and reminisce. At the end of the Fourth of July, after the uncles had their cigars and philosophical discussions, and the aunts, nephews, and cousins had their ice-cream cones or lemonade, and we’d exhausted all the fireworks, it was the special time, the sad time, the time of beauty. It was the time of the fire balloons.

Even at that age, I was beginning to perceive the endings of things, like this lovely paper light. I had already lost my grandfather, who went away for good when I was five. I remember him so well: the two of us on the lawn in front of the porch, with twenty relatives for an audience, and the paper balloon held between us for a final moment, filled with warm exhalations, ready to go.

I’d helped my grandpa carry the box in which lay, like a gossamer spirit, the paper-tissue ghost of a fire balloon waiting to be breathed into, filled, and set adrift toward the midnight sky. My grandfather was the high priest and I his altar boy. I helped take the red-white-and-blue tissue out of the box and watched as Grandpa lit a little cup of dry straw that hung beneath it. Once the fire got going, the balloon whispered itself fat with the hot air rising inside.

But I could not let it go. It was so beautiful, with the light and shadows dancing inside. Only when Grandpa gave me a look, and a gentle nod of his head, did I at last let the balloon drift free, up past the porch, illuminating the faces of my family. It floated up above the apple trees, over the beginning-to-sleep town, and across the night among the stars.

We stood watching it for at least ten minutes, until we could no longer see it. By then, tears were streaming down my face, and Grandpa, not looking at me, would at last clear his throat and shuffle his feet. The relatives would begin to go into the house or around the lawn to their houses, leaving me to brush the tears away with fingers sulfured by the firecrackers. Late that night, I dreamed the fire balloon came back and drifted by my window.

Twenty-five years later, I wrote “The Fire Balloons,” a story in which a number of priests fly off to Mars looking for creatures of good will. It is my tribute to those summers when my grandfather was alive. One of the priests was like my grandpa, whom I put on Mars to see the lovely balloons again, but this time they were Martians, all fired and bright, adrift above a dead sea. ♦

New Yorker.

MORREU RAY BRADBURY

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“The great thing about my life is that everything I’ve done is a result of what I was when I was 12 or 13” ,disse ele em 1982.

terça-feira, 15 de maio de 2012

TRECHO ubik

Philip K. Dick

Ereta em seu esquife transparente, revestida por uma exalação de névoa gelada, Ella Runciter estava de olhos fechados, as mãos permanentemente erguidas na direção do rosto impassível. Fazia três anos que ele não a via, e é claro que Ella não tinha mudado. Nunca mais mudaria, pelo menos na forma física visível. Mas a cada ressucitação para a meia-vida ativa, para um retorno da atividade cerebral, por mais curto que fosse, Ella morria um tanto. O tempo restante, para ela, pulsava e sumia, esgotando-se lentamente.

Saber disso justificava sua falta em ativá-la com mais frequência. Ele racionalizava assim: aquilo a condenava, reanimá-la constituía um pecado contra ela. Quanto aos desejos declarados por ela  mesma, antes de sua morte e em encontros no início da meia-vida, eles haviam se tornado nebulosos na mente de Runcinter, o que não deixava de ser conveniente. em todo caso, ele sabia o que estava fazendo, era quatro vezes mais velho que ela.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

o entusiasmo

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Perder as ilusões, o entusiasmo, é o pior que se pode pensar. Uma vida que nunca foi vivida é o pior que pode acontecer a alguém.Mario Vargas Llosa

segunda-feira, 30 de abril de 2012

ENTREVISTA Marçal Aquino

Entrevistadores:
Carlos Eduardo Moura
Silvio Anunciação

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Marçal Aquino, um representante da “nova literatura” brasileira
O escritor, jornalista e roteirista Marçal Aquino é, atualmente, o que se pode chamar de um escritor da nova literatura brasileira. Não é um “transgressor” e “rebelde”, nem tem a pretensão de sê-lo. Mas tem estilo. Suas obras – entre elas “Faroestes”, “Amor e outros objetos pontiagudos” e os recentes “Cabeça a Prêmio” e “Fomes de Setembro” – têm personagens complexos, prosa ágil, direta e contundente. Aquino tem currículo também. Na ficha corrida do escritor estão o roteiro para o filme “O Invasor”, de Beto Brant (premiado no festival de Sundance), o livro “Faroestes” (finalista do prêmio Jabuti de 2002) e “Amor e outros objetos pontiagudos” (ganhador do prêmio em 1999). Marçal foi também roteirista de mais dois filmes de Beto Brant (“Os Matadores” e “Ação Entre Amigos” e, este ano, está trabalhando o roteiro de “Cabeça…”, junto com Karim Aïnouz, diretor de “Madame Satã”). Na entrevista, feita por telefone, Marçal falou sobre literatura, realidade brasileira e cinema

A maioria dos seus personagens é formada por policiais corruptos, matadores, bandidos, enfim, personagens que vivem numa barbárie urbana. Como é isso?
Olha, eu discordo um pouco, acho que não tem só bandido e matador na minha literatura. Tem um olhar sobre uma certa periferia dos grandes centros e tem um olhar que é quase rural também. Me interessa muito essa coisa da realidade, a matriz da minha literatura é a realidade. Não significa que eu pegue o fato e o transcreva, porque aí eu estaria fazendo jornalismo e isso eu já faço pra ganhar a vida. A literatura tem um outro tipo de mirada. O ponto de partida pra mim sempre é a realidade, mas o resto é por conta da imaginação.

Esse tipo de literatura que você faz é pra causar algum tipo de desconforto e “reverter” esse quadro, que se parece com a situação do país?
Eu penso em contar histórias. Agora a literatura deve causar desconforto. Eu acho que a literatura não é feita pra confortar ninguém, não é por aí. A literatura deve, no mínimo, provocar dúvida, reflexão, embora, antes de mais nada, a literatura deva dar prazer (risos).

Qual é o processo pra você buscar os personagens?
Meu processo de criação é assim: eu não sei muito bem o que vai acontecer. Eu tenho só um pedaço da história, às vezes, só o começo, às vezes, só o título, e sei que ali tem algo secreto que me interessa desvendar. O personagem vem pronto para mim, ele vem inclusive com nome. Eu sei, por exemplo, que aquele nome é pertinente para ele. São raras as vezes que tenho que trocar o nome de um personagem. E aí eu digo pra você o seguinte: ele é todo mundo e ninguém, ele é uma soma de características. Não existe um personagem como aquele na realidade, ele é próprio da literatura, embora ele esteja aludindo a uma realidade já existente.

E isso está próximo ao seu cotidiano?
Eu gosto muito de andar pela rua, pra olhar pessoas, ouvir frases, eu sou um andarilho nesse sentido. Em qualquer cidade que eu chego, eu faço questão de me perder no centro da cidade pra olhar como é o povo, como falam… Isso é um depósito de histórias e possibilidades.

Esse negócio de realidade virou uma febre nos últimos anos, tanto na literatura como no cinema. Como você vê esse aparecimento de obras que falam da realidade? Quem você destacaria no meio disso tudo?
O momento é muito particular, tanto da literatura quanto do cinema. Eu acho muito saudável, porque é uma forma de você discutir, de propor reflexões sobre essa realidade. Evidentemente, como acontecem êxitos como “Cidade de Deus” e “Carandiru”, tem pessoas que olham aquilo como fórmula e tentam fazer coisas parecidas. Mas o tempo e o próprio público se encarregam de separar o joio do trigo. Quando, por exemplo, eu escrevi “O Invasor”, eu não estava ligado nesse modismo, acho que nem tinha saído o “Cidade de Deus” ainda, então eram coisas que eu queria discutir, e acabou virando um filme interessante, que eu gosto muito, e que discute essa realidade. Existe, sim, um pouco de modismo. Mas, ao lado disso, tem gente muito talentosa fazendo tanto literatura quanto roteiro – esse roteiro do “Cidade de Deus”, aliás, é primoroso, o Bráulio Mantovani escreveu partindo de outro livro primoroso do Paulo Lins.

Dos anos 90 pra cá, há toda uma geração de escritores, que foi classificada como transgressora no livro organizado pelo Nelson de Oliveira (“Geração 90: Os Transgressores”, ed. Boitempo). E surgiram muitas críticas, questionando se essa literatura era realmente transgressora ou não…
Tem duas perspectivas nessa questão. A primeira delas é que embora eu tenha participado da primeira coletânea que o Nelson fez, chamada “Geração 90: Manuscritos de Computador” (ed. Boitempo), naquele momento eu já conversava com pessoas e dizia: “Isso aqui é uma licença poética do Nelson”. Porque não são pessoas da mesma faixa etária, elas não têm um programa comum; é um grupo de escritores que aparece escrevendo num certo momento que mostra muita vitalidade. E nesse sentido o trabalho do Nelson é maravilhoso como mapeamento. A segunda perspectiva é a questão do “transgressor”, outro rótulo criado pelo Nelson pra agrupar os escritores. Eu já ouvi o próprio Nelson falar que a característica desses escritores era a narrativa não-linear quase infantil. O mérito dele é registrar quem está aparecendo. O problema da literatura nos últimos anos era sempre aquela coisa de publicar o primeiro livro. Na metade dos anos 90 pra cá, teve o fenômeno das pequenas editoras. Então, essa proliferação de editoras cria canais pra essa moçada toda conseguir veicular. E também tem o fator Internet. Eu me lembro na década de 70, quando eu comecei, pra ter contato com os outros escritores era através de correio. Você imagina hoje, com a Internet, você consegue não só passar a sua mensagem, mas a sua obra.

Mas e os “transgressores”?
Aqui em São Paulo tem muito essa coisa da convivência próxima, porque são muitos escritores convivendo no mesmo espaço. A gente tem uma relação de amizade, que extrapola a análise literária. Mas não gosto de todo mundo.

Quem você citaria como destaques?
O próprio Nelson de Oliveira me interessa. Outro é Luís Rufato. O trabalho dele é uma coisa fantástica, de primeira qualidade. Gosto muito do que o Ronaldo Bressane escreve. Leio o (Marcelo) Mirisola com carinho e muito interesse também, esperando que ele venha a dar prosseguimento na sua trajetória literária. Tem o Joca (Reiners Terron), que eu gosto sobretudo dos contos, o Cláudio Galperin, o Cadão Volpato e o Sérgio Fantini. E gosto da velha guarda também.

Existem dois escritores que são bem polêmicos por criticar bastante essa corrente da literatura brasileira que trata de realidade, violência etc., que é o Paulo Polzonoff e o Alexandre Soares Silva. O que você acha das críticas deles?
O Polzonoff eu acho muitas vezes que ele tem razão, como quando ele escreveu uma crítica sobre o livro do Chico Buarque, o “Budapeste”, que é uma das melhores leituras que o livro do Chico teve. Agora, às vezes eu acho que, ao criticar certos livros, ele sai do livro e vai pro autor. Mas, de qualquer maneira, vê-se que é um sujeito que lê bastante e escreve bem. Pessoalmente, eu lembro de uma vez que ele tinha criticado um livro meu chamado “Faroestes”. E, na seqüência, eu publiquei “O Invasor” e ele elogia o livro e, num certo momento, ele dizia que retirava tudo aquilo que ele tinha dito sobre o outro livro. Eu achei corajoso da parte dele (risos).

Sua obra tem muito de literatura policial. Na sua trajetória, você foi até repórter policial. E literatura policial, de maneira geral, sempre enfrentou certo preconceito. Mas a sua obra sempre foi bem recebida. Como é fazer esse tipo de literatura e ao mesmo tempo ter que fugir dos clichês do gênero?
Eu tenho uma certa dificuldade em me classificar como “escritor policial”, mas o rótulo não me incomoda. Mas, pra mim, literatura policial é aquela clássica, com detetive, a la Raymond Chandler. É curioso, porque eu não procuro escrever um “livro policial”. O “Cabeça a prêmio” era uma história de amor entre um pistoleiro e uma cafetina, então isso acabou trazendo esse mundo mais cinzento pras páginas do livro. Tanto que a trama policial ali é tênue, o que interessa é discutir os destinos humanos. Essa questão, vetusta, de dizer que literatura policial não é literatura, nem me incomoda. Eu leio grandes escritores, o Chandler é apenas um deles. No Brasil, o Rubem Fonseca é uma coisa fabulosa. Eu me vejo como escritor, um cara que quer contar as suas histórias, que às vezes são criminais e às vezes não. Costumo brincar que nos meus livros ninguém voa, se voar, eu explico o porquê.

Você vive de literatura?
Não, vivo de jornalismo. Eu sou um redator free-lancer. Trabalho em casa, escrevendo textos para empresas. O que paga as contas aqui em casa é o jornalismo. Eventualmente eu consigo dinheiro fazendo roteiro pra cinema, mais isso é outra arte marginal, né?

A sua relação com o Beto Brant é boa, né? Já foram três filmes…
É, começou com “Os Matadores”, depois “Ação Entre Amigos” e “O Invasor”. E agora eu fiz a adaptação com ele de um livro do Sérgio Sant’Anna, chamado “Um crime delicado”. Esse projeto está em fase de pré-produção, o Beto deve rodar no meio do ano. Ele gosta do universo que eu abordo nos meus livros. O livro que eu estava escrevendo no ano passado ele já disse vai filmar de qualquer maneira. Eu sempre que assisto a um filme e converso com o Beto, é uma oportunidade de aprender, porque o olhar dele é muito privilegiado.

Na sua vida, a prioridade é a literatura? O jornalismo é uma coisa “menor”?
Não existe essa coisa de “menor”, existem prioridades. Agora, o jornalismo não me atrapalhou. Ele me ajudou, minha maneira de escrever ficou mais sintética, mais concisa, treinou meu olhar de repórter. Eu não tenho desprazer nenhum em trabalhar com jornalismo. E nem em fazer roteiros pra cinema. É aquela história: eu vivo do meu texto.

Publicada originalmente no jornal Semana 3 (ed. 20, fevereiro de 2004)

Carlos Eduardo Moura.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

TRECHO o príncipe

Niccolo Maquiavel

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“As injúrias devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, saboreando-as menos, ofendam menos: e os benefícios devem ser feitos pouco a pouco, a fim de que sejam mais bem saboreados.”

"Precisando um príncipe de saber usar bem o animal, deve tomar como exemplo a raposa e o leão; pois o leão não é capaz de se defender das armadilhas, assim como a raposa não se sabe defender dos lobos. Deve, portanto, ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para espantar os lobos."

“O tempo lança à frente todas as coisas e pode transformar o bem em mal e o mal em bem.”

domingo, 24 de abril de 2011

NADA DE NOVO NO FRONT (um trecho)

Erich Maria Remarque

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Estamos no outono. Dos veteranos, já não há muitos. Sou o último dos sete colegas de turma que vieram para cá.

Todos falam de paz e armistício. Todos esperam. Se for outra decepção, eles vão se desmoronar. As esperanças são muito fortes; é impossível destruí-las sem uma reação brutal. Se não houver paz, então haverá revolução.

Tenho catorze dias de licença, porque engoli um pouco de gás. Num pequeno jardim, fico sentado o dia inteiro ao sol. O armistício virá e breve, até eu já acredito agora. Então iremos para casa.

Neste ponto meus pensamentos param e não vão mais adiante. O que me atrai e me arrasta são os sentimentos. É a ânsia de viver, é a nostalgia da terra natal, é o sangue, é a embriaguez da salvação. Mas não são objetivos.

Se tivéssemos voltado em 1916, do nosso sofrimento e da força de nossa experiência poderíamos ter desencadeado uma tempestade. Mas se voltarmos agora estaremos cansados, quebrados, deprimidos, vazios, sem raízes e sem esperanças. Não conseguiremos mais achar o caminho.

E as pessoas não nos compreenderão, pois antes da nossa cresceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará para suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e depois de nós crescerá uma geração semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simplesmente se resignarão e a maioria ficará desorientada: os anos passarão e, por fim, pereceremos todos.

Mas talvez tudo que penso seja apenas melancolia e desalento que desaparecerão quando estiver de novo sob os choupos e ouvir novamente o murmúrio das suas folhas. É impossível que já não existam a doçura que fazia nosso sangue se agitar, a incerteza, o futuro com suas mil faces, a melodia dos sonhos e dos livros, os sussurros e os pressentimentos das mulheres. Tudo isso não pode ter desaparecido nos bombardeios, no desespero e nos bordéis. Aqui as árvores brilham, alegres e douradas, os frutos das sorveiras têm matizes avermelhados por entre a folhagem; as estradas correm brancas para o horizonte, os rumores de paz fazem as cantinas zumbirem como colmeias.

Levanto-me.

Estou muito tranqüilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar mais nada de mim, não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim - queira ou não esta força que em mim reside e que se chama eu -, ela procurará seu próprio caminho.

Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranqüilo em toda a linha de frente que o comunicado se limitou a uma frase: "Nada de novo no front".

Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim.

sábado, 19 de março de 2011

A MULHER QUE QUERO

Pio Vargas

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Eu quero uma mulher de aço
que seja leve como a pena,
cujo sorriso seja um laço
a me prender como um poema.

Eu quero uma mulher madura
a me guiar durante o dia,
quando for noite ser vadia
a me domar sem armadura
e a me tomar como num sonho,
uma mulher que seja a lua
dentro do sol em que me ponho.

Eu quero uma mulher de ferro
com um aplauso pra quando acerto
e um perdão pra quando erro,
como alguém que seja o brilho
dentro do escuro em que me encerro.

Uma mulher que seja plena
uma amante de verdade
que seja motivo de lembrança
e um intervalo na saudade
que, diurna, me cuida,
mas que, noturna me invade.

Eu quero uma mulher-mãe
que seja vinho, cerveja,
refrigerante, champanhe,
que me entenda se viajo
e se fico me acompanhe.

Eu quero uma mulher toda
que me edifique como homem
e algo depois me exploda.

O ancião diz.

O MESTRE E A MARGARIDA

Mikhail Bulgákov

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Um trecho:

1
Nunca falem com estranhos.

Na hora de um quente pôr do sol primaveril, surgiram dois cidadãos em Patriarchi Prudý. O primeiro, com aproximadamente quarenta anos, trajava um costume cinza de verão, era de estatura baixa, cabelos escuros, rechonchudo, careca, na mão seu respeitável chapéu Fedora. Óculos de tamanho sobrenatural de armação preta de chifre ornavam seu rosto cuidadosamente escanhoado. O segundo era um jovem de ombros largos, arruivado, hirsuto, com um boné xadrez caído na nuca, camisa de caubói, calças brancas amarrotadas e tênis pretos.
O primeiro era nada mais nada menos que Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma volumosa revista de arte e presidente do conselho administrativo de uma das maiores associações literárias de Moscou, abreviadamente denominada Massolit. Já seu jovem acompanhante era o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov, que escrevia sob o pseudônimo de Bezdômny.
Assim que entraram na sombra das tílias verdejantes, os escritores se precipitaram para um quiosque multicolorido com a placa "Cerveja e refrescos".
Sim, convém destacar a primeira esquisitice desse terrível entardecer de maio. Não só perto do quiosque, mas também em toda a aleia paralela à rua Málaia Brônnaia, não havia vivalma. Naquela hora, quando não se tinha forças nem para respirar, quando o sol, após incandescer Moscou, mergulhava numa neblina seca em algum lugar de Sadôvoie Koltsô, ninguém viera para a sombra das tílias, ninguém se sentara no banco, a aleia estava vazia.
- Uma água com gás - pediu Berlioz.
- Não tem - respondeu a mulher do quiosque, e sabe-se lá por que se ofendeu.
- Tem cerveja? - quis saber Bezdômny, com a voz rouca.
- Vão trazer mais tarde - respondeu a mulher.
- Então tem o quê? - perguntou Berlioz.
- Refresco de damasco, e só quente - disse a mulher.
- Então vai, pode ser, pode ser!...
O refresco de damasco formou uma espuma densa e amarela, surgiu no ar um cheiro de cabeleireiro. Depois de beberem, os literatos imediatamente começaram a soluçar, pagaram e sentaram-se no banco, de frente para o lago e de costas para a Brônnaia.
Nesse momento, ocorreu a segunda esquisitice, que só tinha a ver com Berlioz. Ele parou de soluçar repentinamente, seu coração bateu e, num rufo, sentiu como se tivesse despencado para algum lugar e depois voltado, mas com uma agulha cega cravada nele. Além disso, Berlioz foi tomado por um medo infundado, mas tão forte, que teve vontade de sair correndo imediatamente de Patriarchi, sem olhar para trás.
Berlioz olhou em volta angustiado, sem entender o que o assustara tanto. Empalideceu, enxugou a testa com um lenço e pensou: "O que está acontecendo comigo? Nunca senti isso... o coração está falhando... estou esgotado... Acho que está na hora de mandar tudo para o inferno e ir para Kislovôdsk..."
Na mesma hora, o ar tórrido condensou-se diante dele e desse ar fez-se um cidadão transparente, de aspecto estranhíssimo. Na pequena cabeça, um boné de jóquei, um paletó xadrez apertado e também vaporoso... Um cidadão de estatura colossal, mas de ombros estreitos, incrivelmente magro e de fisionomia, quero destacar, zombeteira.
A vida de Berlioz transcorria de tal modo que ele não estava acostumado a fenômenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, ele esbugalhou os olhos e pensou, confuso: "Isso não pode ser real!"
Mas infelizmente era real, e através daquilo se via um cidadão alongado e transparente, que balançava diante dele, ora para a esquerda ora para a direita, sem tocar no chão.
Nesse instante, o pavor tomou conta de Berlioz de tal forma que ele fechou os olhos. Quando os abriu, viu que tudo tinha acabado, a miragem evaporara, o xadrez desaparecera e, a propósito, a agulha cega se desprendera de seu coração."

O ancião diz.

quinta-feira, 17 de março de 2011

OS DEVANEIOS DO GENERAL

Érico Veríssimo

NortonI

Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.

O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.

O sol! As poças d’água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.

O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras… E recordações… Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.

O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.

O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.

Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.

Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia…

Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu… Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político… A oposição comia fogo com ele.

O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na “Voz de Jacarecanga” um artigo desaforado… Não trazia assinatura. Dizia assim: “A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada”. Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou “Patife! Canalha!” Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.

— Sente-se, canalha!

O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.

— Abra a boca! — ordenou.

Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.

— Come! — gritou.

Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.

— Coma! — sibilou o general.

Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.

— Coma, pústula!

E o homem comeu.

Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.

— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.

Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.

No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses “banheiros” que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.

O general remergulha no devaneio.

93… Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento… Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!

Morte… O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite… Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo… se houver outro mundo.

Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas… Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os “maragatos”. Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: “Inimigo não se poupa. Ferro neles!”

Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes…) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar… Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: “Inimigo não se poupa”.

O general agora recorda… Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.

Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:

— Petronilho!

A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.

— Petronilho! Negro safado! Petronilho!

Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?

— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?

— Está lá fora, vovô.

— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.

— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?

— Quero um copo d’água. Estou com sede.

— Por que não toma suco de laranja?

— Água, eu disse.

A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada… Chiquinho… Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923…

Um dia ele perguntou ao menino:

— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?

— Não. Eu quero ser doutor como o papai.

— Canalhinha! Patifinho!

Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.

— Eu disse água! — sibila o general.

O mulato sacode os ombros.

— Mas eu digo suco de laranja.

— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!

Petronilho responde sereno:

— Não vou, general de bobagem…

O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.

— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!

— Suco de laranja — cantarola o mulato.

— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!

Petronilho sorri:

— Suco de laranja, seu sargento!

Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.

O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.

Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão… Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia…

Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na “hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados”. Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo… Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias… O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: “Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar”.

E recitando coisas esquisitas. “V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido”. Outras vezes olhava para o busto e berrava: “Inimigo não se poupa. Ferro neles”.

Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.

O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu… Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.

Fecha os olhos e recorda a glória antiga.

Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações…

Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último “homem” da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem… Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!

E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.

De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:

— Vovô! Vovô!

Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.

— A lagartixa, vovozinho…

O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:

— Degolei a lagartixa, vovô!

No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:

— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!

E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

Contos do covil.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

DANÇA, DANÇA BONEQUINHA

Hans Christian Andersen

boneca-conto[1]

— Oh, não passa de uma cantiguinha idiota para criancinhas pequeninas — declarou a tia Malle. — Por muito boa vontade que tenha, não vejo qualquer significado na Dança, dança, bonequinha.É uma palermice, um disparate!

Mas a pequena Amália via grande significado na cantiga. Ela tinha só três anos, mas já sabia brincar às bonecas e estava a educar as suas para serem tão inteligentes como a tia Malle.

Costumava ir lá a casa um estudante, que ajudava os irmãos da Amália a fazer os trabalhos de casa e conversava muito com ela e com as suas bonecas. Ele fazia-a rir, porque era muito engraçado e brincalhão, mas nunca fazia troça dela e falava de coisas importantes que ambos compreendiam.

A tia Malle insistia em que ele não sabia lidar com crianças e que as cabecitas delas não podiam entender todos os seus disparates ridículos. Mas a da pequena Amália podia. Na realidade, ela aprendeu a cantiga do estudante toda de cor e costumava cantá-la às suas três bonecas. Duas delas eram novas, uma menina e um menino, e a terceira já tinha um ano e chamava-se Lisa. Lisa ouvia a cantiga — e até entrava nela!

Dança, dança, bonequinha!
Como ela é bonitinha!
Bonito também é o seu noivo, Raul,
De calças brancas e casaco azul,

Com um chapéu alto, encantador,
E sapatos novos que lhe fazem dor!
Ele é belo, ela uma estrelinha,
Dança, dança, bonequinha.

A Lisa do ano passado
Dança com ar engraçado.
Louro é o cabelo que tem
E o seu rosto brilha também.
Parece ser a mais nova,
A velha Lisa, que canta a trova.
Roda e salta ainda uma vez,
Dancem lá todas as três!

Dancem leves como o ar,
Não há nada que enganar.
É preciso que não esqueçam
As piruetas quando dançam.
Com vénia à esquerda e à direita
A dança será perfeita!
Alegrias, meu tesouro,
Bonequinhas, petiz d’ouro.

Bem, as bonecas compreendiam a canção, a pequena Amália compreendia-a e o estudante também. Afinal, ele é que a tinha escrito e ele dizia que era excelente. Só a tia Malle é que não a percebia — mas a verdade é que ela já tinha saído do mundo da infância há tanto tempo que não admirava. A tia Malle podia dizer que a cantiga era um disparate, mas a Amália não achava. E continuava a cantá-la.

É por ela a cantar que a temos aqui.

Contos do covil.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

TRÓPICO DE CÂNCER

Henry Miller

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Trechos:

Hoje sinto orgulho que dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade – eu pertenço à terra! (...)
Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida da humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e pão em vinho, e o vinho em canção. Do composto morto e da escória inerte criam uma canção que contagia. Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça pra baixo, e os pés sempre se movendo em sangue e lágrima, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe corrói as entranhas. (...) E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. Esse resto é falsificação. Esse resto é humano. Pertence a vida e à ausência de vida.
(...) Se sou inumano é porque meu mundo transbordou de suas fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa pobre, triste, miseravel, limitada pelos sentidos, restringidas pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-comuns e ismos.
(...) Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucuras, um mundo que produza êxtase e não peidos secos.
(...) Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança!

Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, háseis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eusou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.
E isto, então? Isto não é um livro. Isto é uma injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentindo comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo...

Nudez de tudo.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

ÁRVORE DE FUMAÇA

Denis Johnson

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Primeiro Capítulo:

Hoje, às três da madrugada, mataram o presidente Kennedy. O marinheiro Houston e os outros dois recrutas ainda dormiam quando correram pelo mundo as primeiras notícias. Havia um pequeno bar na ilha, um pardieiro com enormes ventiladores no teto, um balcão e uma máquina de pinball; os dois fuzileiros que tocavam o negócio foram acordá-los para contar o que sucedera ao presidente. Então se sentaram com os três marujos nos beliches da cabana Quonset reservada para militares em trânsito e ficaram tomando cerveja e observando o ar-condicionado a gotejar água numa lata de café. A Rádio das Forças Armadas da baía de Subic passou a noite no ar, divulgando boletins sobre o inconcebível assassinato.
Agora, no fim da manhã, ao penetrar a selva de Ilha Grande empunhando uma espingarda calibre 22 emprestada, o marinheiro-aprendiz William Houston Jr. começava a se sentir sóbrio outra vez. Diziam que uns javalis selvagens vagavam naquela reserva militar insular que era tudo o que ele conhecia das Filipinas até então. Não sabia o que sentir por aquele país. Só queria caçar um pouco na mata. Diziam que lá havia javalis.
Ia pisando com cuidado, pensando nas cobras e tentando não fazer barulho, pois queria ouvir os javalis antes que o atacassem. Sabia que estava uma pilha de nervos. De toda parte chegavam dezenas de milhares de ruídos silvestres, os gritos das gaivotas e o distante rumor das ondas. Se ele parasse um minuto para escutar, chegaria a detectar a pulsação abafada no calor da própria carne e o ranger do suor no ouvido. Se ficasse imóvel por dois segundos, os insetos o encontrariam e se poriam a zunir junto à sua cabeça.
O marinheiro Houston apoiou a espingarda numa pequena bananeira, tirou a faixa da testa, torceu-a, enxugou o rosto e descansou um pouco, enxotando os mosquitos com o pano e coçando o saco distraidamente. Ali pero, uma gaivota parecia brigar consigo mesma, uma série de ganidos de protesto interrompidos por contraditórios gritos mais graves que soavam como Rá! Rá! Rá! E algo que passou de uma árvore para outra lhe chamou a atenção. Com o olhar fixo nos galhos da árvore, uma seringueira, Houston estendeu o braço para alcançar a espingarda. A coisa se mexeu outra vez. Então ele viu que era uma espécie de macaco não muito maior do que um chihuahua. Não chegava a ser um javali, mas até que valia a pena vê-lo, agarrado ao tronco da árvore pela mão esquerda e os dois pés, cavando a cortiça fina com ar de miúda e exasperada pressa. O marinheiro Houston enquadrou o magro dorso do animal na mira da espingarda. Ergueu o cano alguns graus, apontando para a cabeça do macaco. Sem pensar em absolutamente nada, puxou o gatilho.
O bichinho jogou-se contra a árvore, braços e pernas estirados enfaticamente, e a seguir, abraçando o próprio corpo como se quisesse coçar as costas, caiu no chão. O marinheiro Houston ficou horrorizado com as convulsões que presenciou. Apoiando o braço no chão, o macaco ergueu o corpo e sentou contra o tronco da árvore, as pernas bem esticadas, como uma pessoa a descansar de um trabalho pesado.
Houston avançou alguns passos e, a poucos metros de distância, viu que o pêlo do macaco brilhava muito e que o movimento das folhas, no alto, dava-lhe uma coloração castanho-avermelhada na sombra e loira na luz. O animal olhava de um lado para outro, a respiração rápida, custosa, a barriga a se dilatar tremendamente a cada alento, qual uma bexiga. O tiro tinha sido baixo, saíra pelo abdômen.
O marinheiro Houston sentiu a própria barriga partir-se ao meio. "Caramba!", gritou para o macaco, como se isso melhorasse o estado constrangedor e odioso do animal. Sentiu que sua cabeça ia estourar se a manhã continuasse a arder na selva à sua volta, se as gaivotas insistissem em gritar, se o macaco seguisse olhando para os lados com cautela, virando a cabeça e os olhos pretos como uma pessoa interessada no desenrolar de uma conversa
qualquer, de uma discussão qualquer, de uma briga qualquer que a selva ou a manhã-ou o momento-estava tendo consigo. Aproximando-se, largou a espingarda no chão e pegou o animalzinho nas mãos, uma a lhe segurar o traseiro; a outra, a cabeça. Fascinado, mas logo com repugnância, percebeu que o macaco estava chorando. A respiração lhe saía aos soluços, e as lágrimas lhe escorriam dos olhos quando ele piscava. Olhou para lá e para cá, mostrando-se tão pouco interessado pelo marinheiro Houston como por tudo quanto via. "Ei", disse o rapaz, mas o macaco não deu sinal de ouvi-lo.
O coração do bichinho aninhado em suas mãos parou de bater. Ele chegou a sacudi-lo, mas sabia que era inútil. Sentiu-se culpado de tudo e, sem ninguém por perto para se inteirar do que quer que fosse, chorou como criança. Tinha dezoito anos.
Ao voltar para o bar à beira-mar, Houston viu que um cardume de águasvivas tingia de violeta a praia cinzenta, centenas delas, cada qual mais ou menos do tamanho da mão de um homem, ondulando-se, translúcidas sob o sol. O pequeno porto da ilha estava deserto. Nenhum barco ia para lá, a não ser
a balsa da base naval do outro lado da baía de Subic. Poucos metros mais adiante, erguia-se um par de choupanas de bambu diante da faixa de areia sob árvores magníficas, esporádicas florzinhas roxas sobre os telhados. De dentro de uma delas chegavam os gemidos de um casal fazendo amor, uma puta, imaginou Houston, e um marinheiro. Acocorado na sombra, ele ficou escutando até que os dois parassem de rir, parassem de respirar; então um lagarto começou a gargantear no beiral da choupana: um breve trinado anunciativo e, a seguir, uma série de ásperas risadinhas entrecortadas-tchec-co; tchec-co; tchec-co...

Ao cabo de algum tempo, o homem saiu, um quarentão com corte de cabelo militar, toalha enrolada na cintura e um cigarro preso entre os dentes; e lá ficou, imóvel, segurando a toalha na barriga, os olhos voltados para uma coisa próxima, mas invisível, e a oscilar. Com certeza um oficial. Segurando o cigarro com o polegar e o indicador, deu uma tragada, e uma névoa lhe envolveu o rosto.
"Mais uma missão cumprida."
A porta da choupana vizinha se abriu, e uma filipina nua, a mão no sexo, disse: "Ele não gosta da coisa".
O oficial gritou: "Ei, Lucky".
Um asiático baixinho apareceu à porta, estava fardado.
"Você negou fogo?"
O homem respondeu: "Isso dá azar".
"Carma", corrigiu o outro.
"Pode ser", disse o rapazinho.
O oficial se dirigiu a Houston: "Topa uma cerveja?".
Houston queria não estar lá, mas só então percebeu que se esquecera de ir embora, e agora o homem estava falando com ele. Com a mão livre, o oficial
jogou fora o cigarro e empurrou a toalha para o lado. Disse-lhe-enquanto soltava quase em linha reta um jorro que espumou na terra, destruindo a bituca-"Se você gosta do que está vendo, é só dizer".
Sentindo-se tolo, Houston entrou no bar. Lá dentro, duas jovens filipinas com vestidos de estampas alegres estavam jogando fliperama e falando tão depressa, enquanto as pás enormes giravam no alto, que ele quase perdeu o equilíbrio. Sam, um dos fuzileiros, estava atrás do balcão. "Cala a boca, cala a boca", disse. Ergueu a mão, que segurava uma espátula.
"E eu disse alguma coisa?"
"Espera." Sam aproximou a cabeça do rádio e, como um cego, concentrou-
se no som. "Pegaram o cara."
"Foi o que disseram antes do café da manhã. Eu já estou sabendo."
"Não é só isso."
"Ok", disse Houston.
Tomou água gelada e ficou escutando o rádio, mas, naquele momento, estava com tanta dor de cabeça que não conseguia entender uma palavra. Pouco depois, o oficial chegou com uma vistosa camisa havaiana, acompanhado do jovem asiático. "Coronel, já fisgaram o homem", anunciou Sam. "O nome dele é
Oswald."
O coronel disse: "Que porra de nome é esse?"-aparentemente tão indignado com o nome do assassino quanto com sua atrocidade.
"Um bom filho-da-puta", rosnou Sam.
"Filho-da-puta mesmo", concordou o outro. "Eu quero é que cortem o saco dele. Quero que recheiem o rabo dele de chumbo." Enxugando as lágrimas sem constrangimento, disse: "Oswald é o nome ou o sobrenome?".
Houston pensou que primeiro tinha visto o oficial mijar no chão, agora o via chorar.
Sam se voltou para o asiático. "Senhor, a gente aqui é muito hospitaleira.
Mas geralmente não serve militares filipinos."
"Lucky é do Vietnã", informou o coronel.
"Do Vietnã. Se perdeu?"
"Não, não me perdi", disse o rapaz.
"Esse cara já é piloto", explicou o coronel. "Capitão da Força Aérea do Vietnã do Sul."
Sam perguntou ao jovem capitão: "É mesmo? Por acaso vocês estão em guerra por lá? Guerra?-bada-bada-bada". E, empunhando uma submetralhadora
invisível, agitou as mãos em uníssono. "Estão ou não estão?"
O capitão desviou a vista do norte-americano, formulou as frases mentalmente, ensaiou-as, tornou a olhar para ele e disse: "Não sei se estamos em guerra. Muita gente morreu".
"É isso aí", concordou o coronel. "Isso é que conta."
"O que você está fazendo aqui?"
"Treinamento com helicópteros."
"Você não tem idade nem para pilotar velocípede", riu-se Sam. "Quantos
anos?"
"Vinte e dois."
"Eu vou servir uma cerveja para o japoronga aí. Gosta da San Miguel? Se
ofendeu porque te chamei de japoronga? É um vício que eu tenho."
"Chama ele de Lucky", disse o coronel. "O cara está pagando, Lucky. O
que é que vai?"
O rapaz enrugou a testa e, depois de deliberar intimamente, cheio de mistério,
pediu: "Uma Lucky Lager".
"E que cigarro você fuma?", perguntou o coronel.
"Eu gosto do Lucky Strike", disse o asiático, e todos riram.
Súbito, Sam olhou para o jovem marinheiro Houston como se o estivesse reconhecendo e perguntou: "Cadê a minha espingarda?".
Houston demorou um instante para compreender as palavras. Mas logo
disse: "Merda".
"Cadê?" Sam não parecia particularmente interessado-apenas curioso.
"Merda", repetiu o marinheiro Houston. "Vou buscar."
Teve de voltar à selva. Tanto calor e umidade quanto antes. Os mesmos animais faziam o mesmo barulho, e a situação seguia igualmente terrível, ele estava longe dos lugares da sua memória, e a marinha ainda seria dona dele durante dois anos, e o presidente, o presidente do seu país continuava morto-mas o macaco desaparecera. A espingarda de Sam estava jogada no mato, tal como ele a tinha deixado, e não havia sinal do macaco. Um bicho o levara.
Houston temia vê-lo novamente, de modo que foi com alívio que voltou para o bar sem ter de olhar para o que fizera. No entanto, sabia, sem muita aflição nem mal-estar, que nunca mais iria se livrar daquela imagem. O marinheiro Houston foi promovido uma vez e depois rebaixado. Viu de relance algumas grandes capitais do Sudeste asiático, percorreu ruas quentes, abafadas, nas quais as lanternas oscilavam ao sabor da brisa rançosa, mas nunca
ficou em terra o tempo suficiente para se desacostumar do balanço do navio, somente o necessário para ficar confuso, para ver caras vibrantes e ouvir risos
sofridos. Terminada a viagem, alistava-se em outra, encantado sobretudo com o poder de criar seu destino com uma mera assinatura. Houston tinha dois irmãos mais jovens. James, o mais próximo dele em idade, alistou-se na infantaria e foi mandado para o Vietnã; uma noite, pouco antes de terminar sua segunda viagem na marinha, Houston tomou um trem da base naval de Yokosuka, no Japão, para a cidade de Yokohama, onde tinha combinado de se encontrar com James, no Peanut Bar. Foi em 1967, mais de três anos depois do assassinato de John Kennedy.
No vagão, sentiu-se um verdadeiro gigante, olhando por cima das cabeças de cabelo preto como breu. Os pequeninos passageiros japoneses o encararam sem alegria, sem dó, sem vergonha, até que ele sentisse como se lhe estivessem torcendo o pescoço. Desembarcou e tomou um caminho reto, no chuvisco noturno, acompanhando os molhados trilhos do bonde até o Peanut Bar.
Estava ansioso por dizer alguma coisa em inglês. O Peanut Bar era grande e estava lotado de marujos e desleixados tripulanes da marinha mercante. As vozes eram densas em sua cabeça; a fumaça, densa em seus pulmões. Avistou James perto do palco e foi ter com ele, a mão estendida para um aperto. "Vou embora de Yokosuka, cara! Volto a embarcar!", foi a primeira coisa que disse.
O conjunto musical abafou as palavras do irmão mais velho-um quarteto japonês de imitadores dos Beatles, todos de indumentária branquíssima, com franja. James, à paisana, estava sentado a uma mesinha, olhando para eles, alheio a tudo que não fosse aquele espetáculo, e Bill jogou um amendoim na boca.
James apontou para os músicos. "Que coisa mais ridícula." Teve de gritar para ser ouvido, ainda que mal.
"O que você queria? Isto aqui não é Phoenix."
"Quase tão ridículo quanto você vestido de marinheiro."
"Eles me dispensaram há dois anos, e eu me realistei. Sei lá-resolvi me
realistar."
"Estava bêbado?"
"É, completamente bêbado."
Bill Houston ficou surpreso ao ver que o irmão já não era um garotinho. Usava o cabelo cortado rente, coisa que tornava seu maxilar mais largo e forte, e mantinha o corpo empinado, quase sem se mexer. Mesmo à paisana, era um soldado.
Pediram canecos de chope e concordaram que, fora certas coisas esquisitas, os dois gostavam do Japão-muito embora, até então, James tivesse passado seis horas no país, entre um vôo e outro, e na manhã seguinte fosse tomar o avião para o Vietnã-ou, pelo menos, gostavam dos japoneses. "Vou te contar", disse Bill quando o conjunto fez uma pausa e um pôde ouvir o outro, "os japas deixaram isto aqui uma jóia. Mas lá nos trópicos, cara, é uma meleca. As pessoas têm merda na cabeça."
"Foi o que me disseram. Vou ver."
"E a guerra?"
"O que tem a guerra?"
"O que eles dizem?"
"Em geral, dizem que a gente fica dando tiro em árvores, e as árvores atiram de volta."
"Mas, sério. Aquilo lá é foda, não é?"
"Isso eu só vou saber quando estiver lá."
"Está com medo?"
"No treinamento, eu vi um cara acertar outro cara sem querer."
"Verdade?"
"Na bunda, dá para acreditar? Foi um acidente."
Bill Houston disse: "Eu vi um cara matar outro em Honolulu".
"Como, num combate?"
"Não, é que o filho-da-puta estava devendo uma grana para um outro
filho-da-puta."
"Onde foi, num bar?"
"Não. Que bar o quê. O cara deu a volta na casa do outro, chegou no fundo e gritou para ele aparecer na janela. A gente estava passando por ali e ele me
disse: 'Espera aí, eu preciso acertar uma dívida com aquele pilantra'. Eles conversaram um pouco e então o cara que estava comigo meteu bala no da casa. Encostou a pistola na tela da janela, cara, e pá, assim, de uma vez. Uma 45 automática.
O sujeito caiu de costas dentro do quarto."
"Está brincando."
"Não estou, não."
"Sério mesmo? Você viu?"
"A gente saiu para dar uma volta. Eu não imaginei que ele fosse apagar alguém."
"O que você fez?"
"Só faltei cagar nas calças. Ele virou, guardou a pistola debaixo da camisa e disse: 'Vem, vamos tomar uma'. Como se não tivesse acontecido nada."
"E o que você disse?"
"Achei melhor nem tocar no assunto."
"Sei. Achou melhor. O que você disse, porra?"
"Ah, o problema é que eu não sabia o que ele achava de me ter por testemunha.
Foi por isso que perdi o embarque. Ele ia no nosso navio. Se eu tivesse embarcado com aquele cara a bordo, ia passar um mês e meio sem poder fecharos olhos."
Enquanto bebiam de seus canecos, os irmãos se puseram a vasculhar a mente em busca de um assunto sobre o qual conversar.
"Quando aquele cara levou o tiro na bunda", disse James, "entrou em choque imediatamente."
"Porra. Quantos anos você tem?"
"Eu?"
"É."
"Quase dezoito."
"O exército deixou você se alistar só com dezessete anos?"
"Não. Eu menti."
"Não está com medo?"
"Estou. Não o tempo todo."
"Não o tempo todo?"
"Nunca vi um combate. Quero ver a coisa de verdade, a merda de verdade.
Estou muito a fim."
"Seu porra-louca de merda."
O conjunto voltou a tocar, começando com um número dos Kinks intitulado
"You Really Got Me":
You really got me...
You really got me...
You really got me...
Os dois irmãos não tardaram a brigar por alguma coisa sem importância, e Bill Houston entornou o caneco de chope no colo de uma pessoa sentada à mesa vizinha-uma japonesinha que encolheu os ombros e fez uma cara triste e humilhada. Estava em companhia de uma amiga e também de dois americanos, dois rapazinhos que não souberam como reagir.
Enquanto a bebida escorria pela borda da mesa, James tentava desajeitadamente endireitar o caneco vazio, dizendo: "Isso acontece às vezes. Acontece". A moça não fez um único movimento para se secar. Ficou olhando para o colo.
"O que é que há com a gente afinal?", perguntou James ao irmão, "será que a gente pirou de vez? Sempre que a gente se junta acontece uma coisa ruim."
"Eu sei."
"Uma cagada."
"É, só cagada mesmo. Porque a gente é da mesma família."
"Do mesmo sangue."
"Essa bosta não me interessa mais."
"Deve interessar um pouco", insistiu James, "do contrário, por que você ia fazer essa puta viagem para se encontrar comigo em Yokohama?"
"É", concordou Bill, "no Peanut Bar."
"No Peanut Bar!"
"E por que eu perdi o meu navio?"
"Perdeu?"
"Ele ainda deve estar lá. Mas tomara que já tenha zarpado."
Bill Houston sentiu os olhos se encherem de lágrimas, sufocado por uma súbita emoção com a vida e com aquele país em que todo o mundo dirigia à esquerda.
James disse: "Eu nunca gostei de você".
"Eu sei. Eu também não."
"Eu também não."
"Sempre te achei um imbecil filho-da-puta", disse Bill.
"E eu sempre te detestei", rebateu seu irmão.
"Puxa, desculpa", pediu Bill Houston à japonesa. Tirou uma nota da carteira e jogou-a na mesa molhada, de cem ienes ou de mil, não conseguia ver.
"É o meu último ano na marinha", explicou à moça. Teria lhe dado mais dinheiro, mas estava com a carteira vazia. "Eu atravessei esse oceano e morri. Eles podem muito bem levar os meus ossos. Estou completamente diferente."
Naquela tarde de novembro, no dia seguinte ao do assassinato de John Kennedy, o capitão Nguyen Minh, o jovem piloto da Força Aérea do Vietnã, mergulhou de máscara e snorkel a pouca distância da praia de Ilha Grande. Era a sua nova paixão. A experiência se parecia com a que devia ser a de um pássaro no ar: planar sobre uma paisagem, impelido pela ação de seus próprios membros, voar de verdade, coisa bem diferente de pilotar uma aeronave. Os pés-depato deram-lhe um grande impulso quando ele deslizou acima de um enorme cardume de peixes-papagaio que se alimentava num recife, a multidão de
pequenos bicos a tamborilar no coral feito um aguaceiro. Os homens da marinha norte-americana gostavam de scuba e mergulho e haviam danificado todo
o coral, tornando os peixes tão ariscos que o cardume desapareceu num piscar de olhos quando ele se aproximou.
Minh não era um grande nadador e, sem os outros por perto, pôde se entregar ao medo que deveras sentia. Tinha passado toda a noite anterior com a prostituta que o coronel fizera questão de pagar. A garota dormiu no chão; ele, na cama. Não a quisera. Não confiava muito nas filipinas.
Então, no fim da manhã daquele dia, foram ao bar e souberam do assassinato do presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy. As duas filipinas ainda estavam com eles, cada uma delas agarrada a um dos poderosos braços do coronel, como que tentando prendê-lo à terra até que conseguisse controlar a surpresa e a dor. Passaram toda a manhã a uma mesa, escutando os noticiários. "Pelo amor de Deus", dizia o coronel. "Pelo amor de Deus." À tarde, ele se animou e tomou muita cerveja. Minh procurou não exagerar na bebida, mas quis ser educado e acabou ficando bem tonto. As garotas se foram, retornaram, o ventilador a girar no teto. Um recruta da marinha muito jovem juntou-se a eles, e alguém perguntou a Minh se era verdade que uma guerra
estava sendo travada em algum lugar no Vietnã.
Naquela noite, o coronel quis trocar as garotas, e Minh decidiu lhe fazer companhia, como na véspera, só para deixá-lo satisfeito e mostrar que estava
sinceramente agradecido. Em todo caso, a segunda garota era a sua preferida. Mais bonita aos seus olhos e falava melhor o inglês. Mas pediu para deixar o arcondicionado ligado. Ele preferia desligado. Não conseguia ouvir as coisas com o ar-condicionado funcionando. Gostava de janelas escancaradas. Gostava do barulho dos insetos batendo na tela. Não havia telas assim na casa de sua família no Delta do Mekong, nem mesmo na casa do tio em Saigon. "O que você quer?", perguntou a moça. Tratava-o com muito desprezo.
"Sei lá. Tira a roupa."
Eles se despiram e ficaram deitados lado a lado na cama de casal, no escuro,
só isso. Minh ouviu um marinheiro americano, algumas portas mais adiante,
conversando em voz alta com um amigo, talvez contando um caso. Não conseguiu
entender uma palavra, embora considerasse seu inglês muito bom.
"O do coronel é bem grande." A garota lhe estava apalpando o pênis. "Ele
é seu amigo?"
Minh respondeu: "Sei lá".
"Não sabe se ele é seu amigo. Por que está com ele?"
"Sei lá."
"Quando você o conheceu?"
"Há uma semana ou duas."
"Quem é ele?", quis saber a moça.
Minh disse: "Sei lá". Abraçou-a para que ela parasse de lhe tocar o sexo.
"Você só quer corpo-corpo?"
"O que é isso?"
"Só corpo-corpo." A garota se levantou e foi fechar a janela. Passou a
palma da mão no ar-condicionado, mas não tocou nos botões. "Me dá um
cigarro", pediu.
"Não. Eu não tenho."
Ela pôs o vestido, calçou as sandálias. Não usava roupa de baixo. "Me dá um trocado."
"O que quer dizer isso?"
"O que quer dizer isso?", repetiu a garota. "O que quer dizer isso? Me dá um trocado. Me dá um trocado."
"É dinheiro?", perguntou Minh. "Quanto?"
"Me dá um trocado", insistiu ela. "Quero ver se ele me vende cigarro. Quero dois maços-um para mim e um para a minha prima. Dois maços."
"Pede para o coronel."
"Um Winston. Um Lucky Strike."
"Com licença. Hoje está fazendo frio", disse ele. Levantou-se e se vestiu. Saiu à varanda. Ouviu às suas costas o barulhinho da moça lá dentro, às
voltas com a bolsa, colocando-a na mesa. Ela uniu as mãos, esfregou-as, e um perfume saiu pela janela aberta, pairou no ar, e Minh o inalou. Sentiu um
zumbido no ouvido, as lágrimas lhe turvaram a vista. Ele se livrou de um pigarro denso, inclinou a cabeça e escarrou entre os pés. Estava com saudade de sua terra.
Quando se alistou na força aérea e foi logo transferido a Da Nang para o treinamento de oficial, com apenas dezessete anos, passou várias semanas chorando toda noite na cama. Agora fazia quase três anos que pilotava caças, desde os dezenove. Dois meses antes, completara vinte e dois, e podia esperar prosseguir com as missões de vôo até que uma delas o matasse. Mais tarde, estava na varanda, sentado numa cadeira de lona, o corpo inclinado, os antebraços apoiados nos joelhos, fumando-na verdade, tinha um maço de Lucky Strike -, quando o coronel voltou da boate, abraçando as duas garotas. A acompanhante de Minh trazia um maço na mão e o agitava alegremente.
"Quer dizer que hoje você foi explorar o fundo do mar?"
Sem entender bem a pergunta, Minh respondeu: "É".
"Já entrou num daqueles túneis?", perguntou o coronel.
"Que é isso?-túneis."
"Túneis", disse o coronel. "O Vietnã está coalhado de túneis. Já entrou num deles?"
"Ainda não. Acho que não."
"Nem eu, meu filho", disse o coronel. "Queria saber o que tem dentro."
"Eu não sei."
"Ninguém sabe."
"Os comunas usam os túneis", disse Minh. "O vietminh."
Então o coronel voltou a lamentar o presidente morto, pois disse: "Este mundo cospe fora um homem tão maravilhoso como se fosse veneno". Minh tinha notado que era possível passar muito tempo conversando com o coronel sem perceber que ele estava bêbado.
Conhecera-o poucos dias antes, à entrada do campo de manutenção de helicópteros na base de Subic e, desde então, os dois passaram a se encontrar continuamente. Ninguém lhe apresentou o coronel-o próprio coronel se apresentou -, e parecia não ter nenhum vínculo oficial com ele. Estavam alojados com dezenas de oficiais em trânsito no quartel de um complexo originalmente construído, mas logo abandonado, segundo o coronel, pela Agência Central de Inteligência norte-americana. Minh sabia que valia a pena associar-se a ele. Tinha o costume de detectar as situações, as pessoas, como sorte ou azar. Bebia Lucky Lager, fumava Lucky Strike. O coronel o apelidara de "Lucky". "John Kennedy era um belo homem", disse o coronel. "Foi isso que acabou com ele."

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

OS HOMENS MONSTROS

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O SINALEIRO

Charles Dickens

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“Olá! Você, aí embaixo!”
Quando ele ouviu uma voz chamando-o, estava à porta de sua cabine, com uma bandeira na mão, enrolada na sua vareta curta. Considerando-se a natureza da área, imaginar-se-ia que ele não pudesse duvidar de onde vinha a voz; mas em vez de olhar para cima, onde eu me postara no alto do patamar praticamente por sobre a sua cabeça, ele virou-se e olhou para a Linha abaixo. Havia algo de estranho na sua maneira de fazê-lo, mas eu não, absolutamente não, poderia dizer o quê. Mas sei que era estranho o bastante para atrair minha atenção, embora sua silhueta estivesse parcialmente oculta e ensombrecida na passagem de nível abaixo, e a minha, bem acima dele, tão imersa no brilho incandescente de um crepúsculo rubro que eu tivera de proteger meus olhos com a mão antes de o ver.
“Olá! Aí embaixo!”
Depois de olhar para a Linha abaixo, ele voltou-se novamente e, levantando os olhos, viu minha silhueta no alto.
“Existe um caminho pelo qual eu possa descer e falar com você?”
Olhou para mim sem responder e olhei para ele, sem pressioná-lo imediatamente com uma repetição de minha pergunta ociosa. Foi então que houve uma vaga vibração no chão e na atmosfera, rapidamente transformando-se em uma violenta pulsação e progressiva agitação que me fez recuar, como se ela tivesse força para arrastar-me para baixo. Quando uma nuvem de vapor do trem veloz havia passado por mim, olhei novamente o nível inferior e o vi enrolando novamente a bandeira que ele desfraldara à passagem do trem.
Repeti minha pergunta. Após uma pausa, durante a qual ele pareceu me olhar com uma atenção concentrada, acenou com sua bandeira enrolada em direção a um ponto em meu patamar, distante umas duas ou três centenas de jardas.
Respondi-lhe “Está bem!” e desci àquele ponto. Lá, à força de olhar atentamente ao meu redor, encontrei um caminho escavado e irregular descendo em ziguezague, que segui.
O entalho era extremamente profundo e anormalmente abrupto. Era feito em pedra úmida, que se tornava mais gotejante e molhada à medida que eu descia. Por isso, o percurso foi lento o bastante para me dar tempo de recordar um ar singular de relutância ou obrigação com o qual ele me apontara o caminho.
Após descer o ziguezague o suficiente para vê-lo novamente, vi que ele se postara entre os trilhos pelos quais o trem passara recentemente, como se estivesse esperando que eu aparecesse. Tinha a mão esquerda no queixo e o cotovelo esquerdo pousava na mão direita, cruzada sobre o peito. Sua postura era de tal expectativa e cautela que me detive por um instante, surpreso.
Retomei minha descida e, caminhando cautelosamente até o nível dos trilhos e aproximando-me dele, vi que era um homem moreno e aparência doentia, com uma barba escura e sobrancelhas um tanto cerradas. Seu posto ficava no lugar mais solitário e lúgubre que eu jamais vira. De ambos os lados, um gotejante muro de pedras irregularmente recortadas, que a tudo ocultava, exceto uma faixa de céu; o panorama numa direção apresentava apenas um prolongamento torto desse grande calabouço; na outra direção, mais proximamente, avistava-se uma luz vermelha sombria e a entrada ainda mais sombria de um túnel negro, em cuja arquitetura maciça havia apenas um ar terrivelmente opressivo e irrespirável. Esse lugar recebia tão pouca luz do sol que exalava um cheiro de terra insuportável; e atravessava-o um vento tão frio que fiquei gelado, como se houvesse me distanciado do mundo real.
Antes que ele se movesse, eu fiquei tão próximo que poderia tocá-lo. Sem tirar os olhos de mim nem mesmo então, ele recuou um passo e levantou a mão.
Esse posto era solitário (disse eu) e havia chamado minha atenção quando de lá de cima olhara para baixo. Raramente aparecia um visitante, eu supunha; mas essa seria uma raridade indesejável? Talvez em mim ele pudesse ver um homem que igualmente fora encerrado em limites estreitos durante toda a vida mas que, finalmente livre, fora recentemente despertado para essas grandes obras. Assim dirigi-me a ele; mas não estou certo de que foram essas as palavras usadas, pois, além de eu não ser bom em entabular uma conversa, havia algo no homem que me intimidava.
Ele lançou um olhar muito estranho para a luz vermelha perto da boca do túnel e perscrutou-a, como se algo estivesse faltando ali e depois olhou para mim.
“Aquela luz fazia parte de sua ocupação? Não é?”
Respondeu numa voz baixa: “Você sabe que sim”.
Um pensamento terrível me veio à mente enquanto examinava atentamente os olhos fixos e o rosto saturnino, que se tratava não de um homem, mas de um espectro. Desde então tenho me perguntado se seu espírito não estava contaminado.
Quanto a mim, recuei. Mas, ao fazê-lo, detectei em seus olhos algum medo latente de mim. Isso pôs a correr o pensamento terrível.
“Você olha para mim”, falei, forçando um sorriso, “como se me receasse.”
“Eu não tinha certeza”, respondeu ele, “se o vira antes.”
“Onde?”
Ele apontou para a luz vermelha para onde olhara.
“Lá?”, disse eu.
Com um olhar atento e cauteloso, ele respondeu (mas com voz inaudível) que sim.
“Meu bom amigo, o que eu estaria fazendo lá? Mas, de qualquer forma, eu nunca estive lá, pode estar certo disso.”
“Acho que posso”, repetiu ele. “Sim, acho que posso.”
Seu rosto se desanuviou, assim como o meu. Respondeu às minhas indagações com solicitude e palavras precisas. Ele tinha muito que fazer ali? Sim, diria que sim, tinha muitas coisas sob sua responsabilidade, mas o que se exigia dele eram pontualidade e atenção, não um trabalho real — manual. Para mudar aquele sinal, ajustar aquelas luzes e girar essa maçaneta de ferro de quando e quando era tudo que tinha a fazer. Com relação àquelas muitas horas longas e solitárias que me chamavam tanto a atenção, ele podia apenas dizer que a rotina de sua vida assim se acomodara e que a ela se habituara. Ele aprendera lá uma linguagem — se conhecê-la apenas pela visão e ter formado suas próprias idéias toscas de sua pronúncia pudesse ser chamado de aprendizado. Ele também trabalhava com frações e decimais e tentara um pouco de álgebra; mas tinha dificuldade, desde criança, com números. Era-lhe necessário, quando em serviço, permanecer sempre naquela corrente de ar úmido e não podia nunca subir para a luz do sol, por entre aqueles altos muros de pedra? Ora, isso dependia da hora e das circunstâncias. Sob certas circunstâncias, havia menos trabalho no Ramal do que nos outros, independente de horas diurnas ou noturnas. Quando o tempo estava bom, ele às vezes saía um pouco daquelas sombras inferiores; mas, como estava sempre sujeito a chamadas de sua campainha elétrica, e nessas ocasiões precisava ficar atento a ela com ansiedade redobrada, o alívio era menor do que eu poderia supor.
Ele me levou ao seu cubículo, onde havia uma lareira, uma escrivaninha para um livro oficial no qual ele devia registrar certas entradas, um aparelho telegráfico com seu dispositivo de discagem, mostrador e agulhas e o pequeno sino de que falara. Quando expressei minha certeza de que ele perdoaria minha observação quanto ao fato de que era um homem instruído e (sem ofensa, esperava eu) talvez acima daquele cargo, ele observou que era extremamente raro encontrarem-se exemplos de ligeira discordância desse tipo entre uma grande quantidade de pessoas; que ouvira casos assim nas oficinas, na polícia, até mesmo naquele último recurso desesperado, o exército; e que ele sabia ser assim, mais ou menos, em qualquer equipe de uma grande companhia de estradas-de-ferro. Fora, quando jovem (se me fosse possível crer, sentado naquela cabina; até mesmo a ele era difícil crer), um estudante de filosofia natural e freqüentara cursos; mas havia se comportado mal, perdido suas oportunidades, decaído, e nunca mais se recuperara. Não se queixava disso. Fizera sua cama e deitara-se nela. Era tarde demais para fazer outra.
Tudo isso — que eu resumi aqui — ele o disse de jeito calmo, com seus olhares sérios divididos entre mim e o fogo. Ele intercalava a palavra “Senhor” de tempos em tempos e especialmente quando se referia a sua juventude: como se me pedisse para compreender que ele não pretendia ser senão o que eu nele via. Diversas vezes ele foi interrompido pelo sininho e precisou ler mensagens e enviar respostas. Uma das vezes, teve de postar-se além da porta e agitar uma bandeira enquanto um trem passava e trocar algumas palavras com o foguista. Observei que, no desempenho de seus deveres, ele era notavelmente pontual e atento, interrompendo seu discurso numa sílaba e permanecendo em silêncio até terminar o que tinha a fazer.
Em suma, eu daria as melhores recomendações a respeito desse homem para esse emprego, salvo pela circunstância de que, enquanto falava comigo, interrompeu-se duas vezes, empalideceu, virou seu rosto para o sininho que não estava tocando, abriu a porta da cabina (que ficava fechada para impedir a umidade insalubre) e olhou para a luz vermelha próxima à boca do túnel. Em ambas as ocasiões voltou para o fogo com o ar inexplicável que eu observara, mas não fora capaz de definir, quando ainda estávamos muito distantes um do outro.
Eu disse, quando me levantei para despedir-me: “Você quase me fez pensar que encontrei um homem feliz”. (Mas devo confessar que o disse para animá-lo).
“Creio que era”, replicou ele, na voz baixa com que falara pela primeira vez, “mas estou perturbado, senhor, estou perturbado.”
Ele teria retirado as palavras, se pudesse. Mas dissera-as, contudo, e eu rapidamente agarrei a deixa.
“Com o quê? O que o perturba?”
“É muito difícil explicá-lo, senhor. É algo sobre o que é muito difícil falar. Se algum dia o senhor me fizer uma outra visita, tentarei contar-lhe.”
“Mas eu tenho realmente a intenção de fazer-lhe uma outra visita. Diga-me, quando poderei fazê-lo?”
“Saio de manhã cedo e volto novamente amanhã às dez da noite, senhor.”
“Virei às onze.”
Mostrou-se agradecido e foi até a porta comigo. “Acenderei minha luz branca, senhor”, disse ele, naquele seu tom de voz baixa que lhe era peculiar, “até o senhor encontrar seu caminho para cima. Quando chegar lá, não grite! E quando estiver no topo, não grite!”
Sua atitude parecia fazer o lugar me parecer mais frio, mas eu nada mais disse senão “Está bem”.
“E quando descer amanhã à noite, não grite! Permita-me fazer-lhe uma última pergunta. O que o fez gritar ‘Alô! Alô, aí embaixo’ esta noite?”
“Sabe-se lá”, disse eu. “Gritei algo assim...”
“Não assim, senhor. As palavras foram exatamente essas. Conheço-as bem.”
“Admito que foram essas as palavras. Eu as disse, sem dúvida, porque eu o vi embaixo.”
“Por nenhum outro motivo?”
“Por que outro? Que outro motivo poderia haver?”
“Não teve nenhuma sensação de que lhe eram comunicadas de algum modo sobrenatural?”
“Não.”
Ele me desejou boa noite e levantou sua lanterna. Andei pelo lado da linha de trilhos abaixo (com uma sensação muito desagradável de um trem vindo atrás de mim), até encontrar o lugar de subida. Era mais fácil subir do que descer, e eu voltei para meu hotel sem quaisquer incidentes.
II
Pontualmente, coloquei meu pé no primeiro entalhe do ziguezague na noite seguinte quando os relógios ao longe estavam batendo as onze horas. Ele estava a minha espera no fundo, com sua luz branca acesa. “Não gritei”, disse eu, quando nos aproximamos; “posso falar agora?”. “Claro que sim, senhor.” “Boa noite, então, e aqui está minha mão.” “Boa noite, senhor; aqui está a minha.” Com isso, caminhamos lado a lado até sua cabina, entramos, fechamos a porta e sentamo-nos ao lado do fogo.
“Decidi, senhor”, começou ele, inclinando-se para frente assim que nos sentamos e falando num tom pouco acima de um sussurro, “que não precisará perguntar duas vezes sobre o que me perturba. Tomei o senhor por outra pessoa ontem à noite. O que me perturba.”
“Esse engano?”
“Não. A outra pessoa.”
“Quem é ela?”
“Não sei.”
“Parecida comigo?”
“Não sei. Nunca vi o rosto. O braço esquerdo está na frente do rosto, e o braço direito está acenando. Acenando com violência. Assim.”
Segui seu gesto com meus olhos e era o de um braço a agitar-se com extrema comoção e veemência. “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”
“Numa noite enluarada”, disse o homem, “eu estava sentado aqui quando ouvi uma voz gritar: Alô! Aí embaixo!' Fiz um movimento, olhei daquela porta e vi essa pessoa de pé, ao lado da luz vermelha perto do túnel, acenando exatamente como lhe mostrei agora. A voz parecia rouca de tanto gritar e gritava: ‘Cuidado! Cuidado!’. E depois novamente: ‘Alô! Aí embaixo! Cuidado!’. Peguei minha lanterna, acendi a luz vermelha e corri em direção à figura, dizendo: ‘O que há de errado? O que aconteceu? Onde?’. Eu estava perto da escuridão do túnel. Avancei para bem perto dele, pois estranhei o fato de manter a manga diante de seus olhos. Corri para ele e, quando estendi minha mão para puxar a manga, ele desapareceu”.
“Dentro do túnel?”, indaguei.
“Não. Corri para dentro do túnel, quinhentas jardas. Parei e levantei minha lanterna acima da cabeça e vi as figuras de uma certa distância e as gotas de umidade descendo pelas paredes e escorrendo pelo arco. Corri para fora novamente, mais rápido do que correra para dentro dele (pois tenho um pavor mortal do lugar) e olhei tudo em volta da luz vermelha com a minha própria luz vermelha e subi a escada de ferro até a galeria acima e desci novamente, correndo de volta para cá. Telegrafei para ambos os lados: ‘Houve um alerta. Alguma coisa errada?’ A resposta de ambos foi: ‘Tudo certo?’.”
Afastando o lento toque de um dedo gelado a subir pela minha espinha, expliquei-lhe que aquela imagem devia ser uma ilusão de óptica e que se sabia que essas imagens, originadas por doença dos nervos delicados que comandam as funções dos olhos, muitas vezes perturbavam os pacientes, alguns dos quais haviam reconhecido a natureza de sua ansiedade e até mesmo comprovado-a por experiências consigo mesmos. “Quanto ao grito imaginário”, expliquei, “ouça apenas por um momento o vento nesse vale artificial enquanto falamos com vozes tão baixas e como ele faz dos fios do telégrafo uma harpa extremamente sonora!”
Tudo isso estava muito certo, respondeu ele, depois que já estávamos sentados por bons minutos, e já deveria ter pensado no vento e nos fios, ele que tantas vezes passara longas noites de inverno ali, sozinho e em vigília. Mas rogou-me atentar para o fato de que ainda não terminara.
Pedi desculpas, e ele lentamente acrescentou estas palavras, tocando em meu braço:
“Seis horas após a Aparição, aconteceu o famoso acidente desta Linha e durante dez horas os mortos e feridos foram trazidos de dentro do túnel, sobre o ponto em que estivera a imagem”.
Um calafrio desagradável subiu-me pelo corpo, mas fiz o possível para ignorá-lo. Era inegável, repliquei, que se tratava de uma coincidência notável e na medida certa para impressioná-lo. Mas era inquestionável que coincidências notáveis ocorriam sempre e que elas devem ser levadas em conta ao lidar com assuntos desse tipo. Embora eu certamente devesse admitir, acrescentei (pois julgava prever que ele iria contra-argumentar) que homens de bom senso geralmente não incluem coincidências nas previsões dos acontecimentos cotidianos.
Ele novamente rogou-me que atentasse para o fato de que não terminara.
Novamente pedi desculpas por tê-lo interrompido.
“Isso”, disse ele, pondo a mão em meu braço de novo e olhando por sobre o ombro com olhos vazios, “aconteceu exatamente um ano atrás. Seis ou sete meses se passaram, e eu me recobrara da surpresa e do choque quando uma manhã, ao amanhecer, de pé naquela porta, olhei para a luz vermelha e vi o espectro novamente”. Ele parou, com um olhar fixo para mim.
“Ele gritou?”
“Não. Ficou em silêncio.”
“Ele acenou?”
“Não. Encostou-se ao poste da lanterna, com as duas mãos diante do rosto. Assim.”
Mais uma vez, segui seu gesto com os olhos. Era um gesto de luto. Já vi essa postura em figuras de pedra sobre túmulos.
“Você foi até ele?”
“Entrei e sentei-me, em parte para recobrar o domínio de meus pensa-mentos, em parte porque me sentia a ponto de desmaiar. Quando fui novamente até a porta, a luz do dia brilhava e o fantasma desaparecera.”
“Mas nada mais aconteceu? Foi tudo?”
Ele me tocou o braço com seu dedo indicador duas ou três vezes, acompanhando cada um desses gestos com uma inclinação da cabeça, aterrorizado.
“Naquele mesmo dia, quando um trem saiu do túnel, notei, numa janela do vagão para o meu lado, o que parecia uma confusão de mãos e de cabeças, e algo acenava. Eu o vi, a tempo de fazer um sinal para o foguista parar. Ele desligou e freou, mas o trem arrastou-se outras cento e cinqüenta jardas ou mais. Corri para ele e, enquanto o acompanhava, ouvi gritos agudos e choros terríveis. Uma bela e jovem senhora morrera instantaneamente em um dos compartimentos e foi trazida para cá; deitaram-na neste chão, aqui, entre nós dois.”
Involuntariamente, recuei minha cadeira, enquanto meu olhar ia das tábuas para as quais ele apontava para ele próprio.
“Verdade, senhor. Verdade. Foi exatamente assim que aconteceu, estou lhe dizendo.”
Eu não conseguia pensar em nada para dizer, nada que conviesse, e minha boca estava muito seca. O vento e os fios receberam a história com um longo gemido de lamento.
Ele recomeçou. “Agora, senhor, ouça bem e avalie a perturbação de meu espírito. O espectro voltou, uma semana atrás. Desde então, ele está lá, de quando em quando, intermitentemente.”
“Ao lado da lanterna?”
“Ao lado da lanterna de alerta.”
“O que ele parece estar fazendo?”
Ele repetiu, se possível com uma emoção e veemência maior, a gesticulação anterior de “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”
Depois continuou: “Não tenho paz ou tranqüilidade por causa disso. Ele me chama, durante minutos seguidos, de uma forma angustiada, ‘Aí embaixo! Cuidado! Cuidado!’ Ele fica acenando para mim. Ele toca meu sininho...”
Nesse momento, eu o interrompi. “Ele tocou seu sino ontem à noite, quando eu estava aqui e você foi até a porta?”
Duas vezes.
“Ora, veja”, disse eu, “como sua imaginação o engana. Meus olhos estavam no sino, e meus ouvidos atentos, e se estou vivo, ele NÃO tocou então. Não, nenhuma vez, exceto do modo natural das coisas físicas, quando a estação comunicou-se com você.”
Ele balançou a cabeça. “Eu nunca me enganei, senhor. Nunca confundi a badalada do espectro com a humana. O badalar do fantasma é uma vibração estranha no sino que não provém de nada mais, e não afirmei que não se vê o sino balançar. Não surpreende que o senhor não o tenha ouvido. Mas eu ouvi.”
“E o espectro pareceu estar lá, quando você olhou para fora?”
“Ele estava lá.”
“Ambas as vezes?”
Repetiu com firmeza: “Ambas as vezes.”
“Você poderia ir até a porta comigo e procurá-lo agora?”
Ele mordeu o lábio inferior como se relutasse um pouco, mas levantou-se. Abri a porta e fiquei no degrau, enquanto ele se deteve na soleira. Ali estavam as altas paredes de pedras molhadas do entalho. Ali estavam as estrelas bem acima delas.
“Você o vê?”, perguntei-lhe, observando atentamente seu rosto. Seus olhos estavam arregalados e fatigados; mas não muito mais do que haviam estado os meus quando os dirigira atentamente para o mesmo ponto.
“Não”, respondeu ele. “Ele não está lá.”
“Exatamente”, disse eu.
Entramos novamente, fechamos a porta e sentamo-nos. Eu estava pensando em como aproveitar essa vantagem, se é que podemos chamá-la assim, quando ele retomou a conversa de um modo tão direto, admitindo que não poderíamos discordar seriamente diante do fato, que senti estar em uma posição muito desfavorável.
“A esta altura o senhor compreenderá perfeitamente”, disse ele, “que o que me perturba de modo tão terrível é a pergunta: o que quer dizer o espectro?”
Eu não tinha certeza, disse-lhe eu, de tê-lo compreendido perfeitamente.
“Ele está me avisando do quê?”, disse ele, ruminando, os olhos no fogo e apenas de vez em quando os voltando para mim. “Qual é o perigo? Onde está o perigo? Há um perigo à espreita, em algum lugar na linha. Alguma terrível desgraça está para acontecer. Quanto a isso não há dúvida, nesta terceira vez, depois do que aconteceu antes. Mas com certeza isso me atormenta. O que posso fazer?!”
Ele tirou seu lenço e enxugou as gotas de suor de sua testa febril.
“Se eu telegrafar: Perigo, para um dos lados ou para ambos, não posso alegar nenhum motivo para tanto”, continuou ele, enxugando as palmas das mãos. “Eu iria me arrumar problemas e não adiantaria nada. Eles pensariam que estou louco. O que sucederia seria isto: Mensagem ‘Perigo! Cuidado!’ Resposta: ‘Que Perigo? Onde?’ Mensagem: ‘Não sei. Mas, pelo amor de Deus, cuidado!’ Eles me demitiriam. O que mais poderia fazer?”
Seu sofrimento causava grande pena. Era a tortura mental de um homem consciencioso, oprimido intoleravelmente por uma responsabilidade ininteligível que envolvia vidas.
“Quando ele ficou pela primeira vez sob a luz de perigo”, continuou, afastando da testa seus cabelos escuros e esfregando as mãos pelas têmporas, num gesto de desespero febril, “por que não me dizer onde esse acidente devia acontecer — se ele devia acontecer? Por que não me dizer como ele poderia ter sido evitado — se ele pudesse ser evitado? Quando de sua segunda aparição, ele escondeu o rosto; por que, em vez disso, não me disse, ‘Ela vai morrer. Diga-lhes para mantê-la em casa?’ Se ele viesse, nessas duas ocasiões, apenas para me mostrar que seus avisos eram verdadeiros e portanto para preparar-me para o terceiro, por que simplesmente não me avisar agora? E eu, Deus me ajude, um simples e pobre sinaleiro neste lugar solitário! Por que não ir até alguém com credibilidade e poder para agir?!”
Quando o vi nesse estado, compreendi que, em favor do pobre homem, assim como para a segurança do público, o que me cabia fazer no momento era acalmá-lo. Conseqüentemente, deixando de lado toda discussão entre nós sobre o que era real e o que não era, argumentei com ele que quem quer que exercesse tão conscienciosamente sua função fazia-o bem, e que ao menos para seu consolo ele compreendia seu dever, embora não compreendesse essas aparições malditas. Nesse esforço eu me saí muito melhor do que na tentativa de convencê-lo de que estava errado. Ele ficou calmo; as ocupações inerentes a seu posto, à medida que a noite avançava, começaram a requisitar cada vez mais sua atenção, e eu o deixei às duas da manhã. Eu me ofereci para ficar a noite toda, mas ele absolutamente não quis.
Que eu mais de uma vez olhei para trás, para a luz vermelha, enquanto subia pelo caminho, que eu não gostava da luz vermelha e que teria dormido muito mal se minha cama estivesse sob ela são fatos que não vejo motivo para esconder. Nem gostei das duas seqüências do acidente e da moça morta. Não vejo motivo para esconder isso também.
Mas o que mais me ocupava o pensamento era a reflexão sobre como deveria agir, agora que me fora feita uma tal revelação. Eu verificara que o homem era inteligente, atento, escrupuloso e pontual; mas por quanto tempo ele continuaria assim, nesse estado de espírito? Apesar de sua posição subordinada, ele tinha uma responsabilidade da maior importância. Gostaria eu (por exemplo) de apostar minha própria vida nas possibilidades de ele continuar a executá-la com perfeição?
Incapaz de superar uma sensação de cometer de certa forma uma traição se comunicasse aos seus superiores na Companhia o que ele me dissera, sem primeiro ter uma conversa franca e propor uma solução intermediária para ele, resolvi por fim oferecer-me para acompanhá-lo (e também guardar segredo por uns tempos) ao melhor médico especialista que pudéssemos consultar na região e pedir sua opinião. Uma mudança no seu turno de serviço ocorreria na noite seguinte, segundo ele me informara; ele estaria livre uma hora ou duas após o amanhecer e voltaria logo depois do anoitecer. Tínhamos marcado nosso encontro conforme esse esquema.
A noite seguinte estava agradável, e eu saí cedo de casa, a fim de desfrutá-la. O sol ainda não se pusera quando atravessei a calçada próxima do topo do entalhe profundo. Eu estenderia minha caminhada por uma hora, disse comigo, meia hora para ir e meia hora para voltar, e então já seria hora de ir à cabina do meu sinaleiro.
Antes de prosseguir meu passeio, pisei na borda e mecanicamente olhei para baixo, no lugar de onde o vira pela primeira vez. Não consigo descrever o calafrio que me percorreu quando, junto à boca do túnel, vi o vulto de um homem, com sua manga esquerda sobre os olhos, acenando veementemente com o braço direito.
O indizível horror que me sufocava passou num minuto, pois logo vi que esse vulto era de fato um homem e que havia um pequeno grupo de outros homens em pé a uma pouca distância dali, para quem ele parecia estar encenando o gesto que fizera. A luz de perigo ainda não estava acesa. Junto ao poste, estava uma pequena tenda baixa, que nunca vira antes, com suportes de madeira e lona. Não parecia maior do que uma cama.
Com uma sensação inelutável de que havia algo errado — com um súbito medo do sentimento de culpa pelo erro fatal de ter deixado o homem ali e não ter feito com que enviasse alguém para supervisioná-lo ou corrigir o que ele fazia — desci o caminho chanfrado o mais depressa que pude.
“O que aconteceu?”, perguntei aos homens.
“O sinaleiro foi morto esta manhã, senhor.”
“Não é o homem daquela cabina, é?”
“É sim, senhor.”
“O homem que conheço?”
“O senhor o reconhecerá, se o conhecia”, disse o homem que era um porta-voz, descobrindo solenemente sua própria cabeça e levantando uma ponta da lona, “pois seu rosto não se alterou”.
“Meu Deus! Como isso aconteceu, como isso aconteceu?”, perguntei, virando para um e para outro, enquanto a cabina era novamente fechada.
“Ele foi morto por uma locomotiva, senhor. Ninguém na Inglaterra conhecia melhor seu trabalho do que ele. Mas, não se sabe por quê, ele não saiu do trilho externo. Foi em pleno dia. Ele havia acendido a luz e tinha na mão a lanterna. Quando a locomotiva saiu do túnel, ele estava de costas para ela e foi atingido. Aquele homem ali estava no comando e mostrando como aconteceu. Mostre a este cavalheiro, Tom.”
O homem, que usava uma capa tosca e escura, recuou para o lugar onde estivera antes, junto à boca do túnel.
“Depois da curva do túnel, senhor”, disse ele, “eu o vi no fim, como que numa luneta. Não deu tempo de diminuir a velocidade, e eu sabia que ele era muito cuidadoso. Como ele pareceu não ouvir o apito, eu desliguei a máquina quando estávamos próximos dele e chamei-o o mais alto que pude.”
“O que você disse?”
“Eu disse: Alô, aí embaixo! Cuidado! Cuidado! Pelo amor de Deus, saia do caminho!”
Levei um choque.
“Ah!, foi horrível, senhor. Eu não parei de gritar para ele. Pus meu braço na frente dos olhos, para não ver, e acenei este outro até o último momento; mas de nada adiantou.”
Para não prolongar a narrativa com detalhes acerca de algumas das estranhas circunstâncias mais do que de outras, posso, ao encerrá-la, sublinhar a coincidência de que o alerta do maquinista da locomotiva incluía não apenas as palavras que o infeliz sinaleiro repetira para mim e que dizia persegui-lo, mas também as palavras que não ele, mas eu próprio associara — e apenas mentalmente — ao gesto que ele imitara.

Do Blog Contos Fantásticos.