terça-feira, 24 de janeiro de 2006

O campo em mim

Há coisas que não se compram nas lojas de brinquedos. Pensei nisso hoje, enquanto a minha filha tomava banho. Não havia patos nem patinhos de borracha. Não havia peixes nem submarinos. Não havia nada, só um bocado de sabão azul. E ela não precisou de mais nada para ficar ali uns bons 40 minutos, e reclamar por mais quando lhe disse: chega, stand up que vamos jantar. Antes, tínhamos ido à mercearia da avó do Ruben, aqui na esquina da rua. O miúdo tinha uma caixa de cartão de fruta acabadinha de desempacotar, e uma imaginação que não acabava mais. Fez uma tenda, um abrigo nuclear, uma casca de ovo a partir-se, um trenó deslizante, um tapete voador. Foi um campista feliz, um cientista maluco, um pinto recém-nascido, um pai Natal fora de época, um mago extraordinário. A raposa estava delirante e ria-se à gargalhada. Isto tudo em apenas cinco minutos, e com uma simples forma ‘acartonada’, sem utilidade nenhuma e com morte anunciada num contentor de reciclagem perto de si. Duas curtas histórias de um longo dia, que me lembraram os episódios marcantes da minha infância cheia de campo, na aldeia da minha avó. O carvalho com mais de 300 anos, uma árvore gigante de quem o vento se pelava de medo, e por baixo da qual brincávamos aos meninos da selva. O burro que morreu de velho e o meu avô enterrou no quintal, foi um desgosto, aquilo era melhor que um Jaguar. As louva-a-deus que saltavam dos cachos de uvas doces para a tesoura de poda três vezes maior que as nossas mãozitas, e o pânico instalava-se na vinha. A broa que a minha avó amassava em cima de uma tripé que devia estar no CCB, e lá ficávamos de manteiga na mão, à espera de ver as côdeas sair do forno a fumegar. A confissão que fiz ao padre da aldeia, um homem com nariz de batata cheia de bexigas, porque eu tinha partido, sim eu tinha, eu tinha mas não foi de propósito, tinha partido a seringa de vidro da minha tia-avó, enfermeira de serviço na aldeia. As bebedeiras do meu avô na visita pascal, tudo em prol do governo divino, mas que raio, aquilo era pão e vinho freguesia sim, freguesia não. As folhas de couve que sempre depenicava enquanto passeávamos no meio da horta, com as mangueiras a regar e os pés descalços nos carreiros de água lamacentos. Aquela vez em que fomos apanhadas, eu e a minha prima, em flagrante delito, correndo atrás de uma galinha para lhe espetar um cavaco no cu (?), a ver se tinha ovo. As matanças do porco e a lavagem das tripas no riacho da aldeia, purga que metia nojo like a virgin, sempre como se fosse a primeira vez! A pega inesquecível e involuntária que fiz a uma ovelha da minha tia-avó (ainda hoje desconfio de ovinos), puxa, aquilo só durou 3 segundos mas eu envelheci 3 meses. Os disparos que o meu pai me deixou roubar à pressão de ar, arma de fogo campestre, que poucos pardais fez tombar. A salgadeira no alpendre, de onde tirávamos a cabeça do porco para fazer filmes de horror com os mais novos. A candeia de azeite a queimar o ar da adega onde os pés do meu avô espremiam cachos pela noite fora. A colmeia no alto da rampa, onde fui picada por mais de três Maias muito mais sabidas que os astros e tudo, tudo o que não se compra em loja nenhuma do mundo.
Um bocado de sabão azul faz milagres!

7 comentários:

mai xinti disse...

:)You're beautifull....

péssima disse...

: )
Eu não tenho sabão azul (apesar de não haver melhor para bolas de sabão com carrinhos de linhas) mas a minha casa é um monte de ‘lixo’ para quem não está habituado.
As caixas dos ovos são campos de incertezas, nas brincadeiras dos meus filhos. Dos rolos de papel higiénico fazem-se pistas de berlindes. As caixas de cartão canelado são reutilizadas até estarem tão esquadrinhadas que só aspiradas é que se controlam. A esferovite são nevões ou areias movediças. As garrafas vazias de Sumol são espadas de outras dimensões. As bacias da roupa dão óptimos meios de transporte. As cordas e cordões são lianas e trelas. As molas de roupa e tampas de tacho são tantas coisas que nem as menciono. As canetas e lápis são as laterais de pistas que percorrem a casa, desde o quarto deles à sala. O engraçado é que com tanto brinquedo ‘normal’ eles não conseguem usá-los sem ser enquadrados no ‘lixo’ que por aqui se acumula.
E eu sou pior que eles. Tenho um encaixe de tonner, em pasta de papel, como elemento de arte numa das minhas prateleiras, tenho três suportes de meloa do Lidle para os quais tenho uns planos fantásticos, entre muitos outros lixos que já desistiram de tentar deitar fora.
Há por aqui pequenas grandes coisas das quais não abdicamos...

Anónimo disse...

Esse nariz de batata não era por acaso do Padre Melo?!
Acho que me consegui livrar dele nas confissões!
Algo verdadeiramente campestre era passear no campo aliviarmo-nos e depois usar uma folha de couve portuguesa!! :)

Isabel Freire disse...

Céus, Célia,... estás aí! Também tu te confessaste ao Padre Melo? Lembras-te das sessões de sueca que havia na sacristia (acho que também lá tinhas uma 'peça familiar' muito próxima!!!!)
Aquilo é lindo! Acreditas que ainda não levei lá a raposa? Planeio fazê-lo em breve e tinha muita piada se nos encontrassemos por lá!
Bjs

Anónimo disse...

Quando fores lá diz! Eu também gosto de lá ir... As estrelas são lindas... E como é bom sentarmo-nos ao sol a comer laranjas apanhadas no momento e mandar as cascas para o chão! Lixo biodegradável!...

Anónimo disse...

Essa "peça" familiar ainda por lá anda, se é quem eu penso!? Agora deve atormentar este padre e também as senhoras do coro!! No entanto nunca soube nada das sessões de Sueca!
Beijinhos para ti também

Isabel Freire disse...

opss... só agora vi que tinhas respondido, Célia. Fica combinado. Prometo que aviso. Entretanto temos de combinar algo aqui mais perto.
X-coração