Olha só
madama, que coisa menos linda, que bela desgraça, é essa desdita que vem e não
passa, num triste balanço a caminho do mal. Sim, sim, estou me referindo a essa
onda que ancorou aqui nesse nosso Brasil nos últimos tempos e que insiste em
não ir embora: a de vira e mexe alguns aqui, outros acolá, acharem que têm o
direito de ditar censura a obras de arte, julgando que somos criancinhas que
devem ser tuteladas em suas capacidades de julgar o que é bom e o que é ruim, o
que é estético e o que não é, o que tem bom gosto e o que não tem. Mau gosto,
madama, é acharem que podem sequestrar o meu direito de acesso à cultura e às
artes, o meu poder de julgar e avaliar por conta própria, de acordo com meus
próprios parâmetros.
Hitler, aquele
do bigode e das raivas assassinas, mandou queimar livros. E onde se queimam
livros, né, madama, logo se passa a queimar pessoas. A História está aí, para
ensinar; a memória, para lembrar; e o bom senso, para nos ajudar a evitar que
se repitam barbáries. O andar do processo civilizatório não pode ter a opção da
marcha-a-ré. Cabe a nós darmos um freio naqueles que miram o retorno às trevas.
Mas é preciso estar alerta, porque sempre aparece um novo Torquemada ou um novo
Goebbels querendo extinguir os nossos direitos. Mas não passarão! Até porque,
já compilei uma listinha de livros que inspiram essa gente, a serem também
banidos de nossas prateleiras. Veja se a senhora concorda:
O primeiro a
ir para a fogueira é o “Dom Picote”, aquela obra em que um censor anda a cavalo
pela região da Mancha Gráfica, de lança em punho, picotando livros de autores
consagrados, acompanhado de seu assessor acéfalo, o Sancho Tança. Outro é “A
Malvina Tragédia”, em que o autor, Dante Tristieri, percorre Inferno,
Purgatório e Paraíso destruindo todos os livros que encontra pela frente. Baniremos
o antigo “Maudisseia”, escrito pelo grego Maumero, que traz a saga de Maulisses
singrando mares e mundos a caçar escritores e livros. No âmbito da literatura
nacional, destruiremos o clássico “Dom Censuro”, de Mauchado de Assaz, que nos
lega a eterna dúvida sobre a conduta da personagem Vemcapitu: ela censurou ou
não cesurou? “A Censura Mágica”, de Thomas Mau, eliminaremos sem dó nem
piedade. Não escapará de nossa sanha piromaníaca o aclamado “Ensaio Sobre a
Fogueira”, de Josué Salamargo, e daremos fim ao “Fogueira Arcaica”, do Radão
Assar. Assim, madama, faremos uma limpa na biblioteca básica dos censores de
plantão. Claro, não sei se vai adiantar muito, porque, afinal... censorzinho ditatorial
sabe ler, hein?
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 17 de fevereiro de 2020)
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