30.4.11
Da autopromoção
15.4.10
Poemas na memória #2
DUNAS
Que vemos aqui, entre as dunas de areia batidas
de luar, sozinhos com os nossos pensamentos, Bill,
sozinhos com os nossos sonhos, Bill, tão leves como
os véus que adejam sobre a cabeça das mulheres
que dançam,
sozinhos com urna imagem, uma imagem a seguir
a outra, de todos os mortos,
os mortos mais numerosos que os grãos de areia
amontoados um a um aqui, sob o luar,
amontoados no horizonte e com a forma que as mãos
do vento lhes querem dar,
que vemos aqui, Bill, além daquilo que desespera
os sábios,
além daquilo que faz chorar os poetas, que faz com
que os soldados se lancem para a frente e percam
a vida à luz do sol: que será, Bill?
Carl Sandburg (EUA, 1878-1967), Antologia Poética, selecção e tradução de Alexandre O'Neill, Edições Tempo, Lisboa,1962.
Original aqui.
14.4.10
Poemas na memória #1
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O guincho do ganso selvagem
Incapaz de resistir
À tentação do meu isco.
Enquanto eu, na confusão do amor,
Incapaz de o apanhar,
Fico a ver a ave levar as redes com ela.
E quando a minha mãe voltar carregada de aves,
e me vir de mãos vazias,
que lhe vou dizer?
Que não apanhei ave alguma?
Que fui eu a ficar apanhada nas tuas redes?
In Poemas de Amor do Antigo Egipto, tradução do Inglês de Hélder Moura Pereira, Assírio & Alvim, 1998.
Nota: este poema, como os restantes do livro, terá entre 3.085 e 3.567 anos.
13.4.10
Da quarentena
Tudo isto por causa deste silêncio que dura há cinco dias e do tal projecto que, dadas as suas características, não irei pôr aqui, ficando na gaveta onde, afinal, não tenho nada. Vamos ver o que vai surgindo.
Hoje é este vídeo para maiores de 18 anos. Tem cenas eventualmente chocantes, com 2.500 anos e mais.
11.2.10
Henrique Fialho - Roundhouse
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26.12.09
William Blake: Night Thoughts (1797)
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(para Nuno Dempster)
Não há síntese,
mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem
com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.
Por isso, a minha vida é isto:
trabalhar com as mãos,
amalgamar na boca as cores da ferrugem
e descrer nos triângulos de ouro
da omnipotência:
Deus, a existir, é uma convergência
de patifarias,
com predicados de morte nos cabelos
e os olhos cegos à miséria
que em nome do homem reproduz.
Por isso, ilustro os meus cadernos
com sóis antigos,
adubos incomuns
– e ponho nos meus sonhos
os fantasmas,
a imagem de uma pulga,
com o seu perfil
ausente e circunspecto,
porque assim se faz a perenidade
e, até agora,
nenhuma linguagem foi criada
para tanta inocência.
A norte sobrevivo,
com a neve a queimar-me o coração
e os anjos sobre as árvores:
os anjos negros de que as visões
se iluminam
e de que o meu choro se expande
em cântico e oferenda
para que Urizen e Ahania
respirem,
ainda que ofegantes,
sobre a página.
Ilustro a profecia
e sou, na terra,
também eu profeta,
fazendo dos azuis e dos vermelhos
horas nocturnas,
sensíveis sagrações,
golpes de chumbo
na intensidade
com que entre nós e os mortos
o provir se estabelece,
e o que é divino recupera
do rosto numeroso da horda
do momento.
O mundo é isto:
Satã a observar Adão e Eva,
o círculo da luxúria,
as canções de inocência,
Bathsheba no banho,
e o rastro de sangue
do exílio
em que reconheço os meus contemporâneos
a subverter a agonia,
sempre sitiados pelo nojo
e a insânia.
O que mais amo é o meu temor
perante as lanças,
o doce anjo,
o tigre:
e as minhas lágrimas secam
nesse páramo,
onde, após o deserto,
só o deserto perfaz a casa,
a minha casa sob o firmamento.
De onde vim
só vi devoração
– tenho nos ombros os sinais dos ferros,
e os meus olhos cegaram pela insídia
com que outros olhos me viram
ao passar;
e ensurdeceu o meu ouvido,
e perdi o olfacto,
e, às minhas mãos,
chegou a febre
de Job,
a febre da ignomínia.
Tigre, meu tigre,
no bosque cintilante
a tua simetria
perdura além dos séculos,
enquanto os astros lançam os seus dardos
para que subsistas na floresta nocturna
e eu te reconheça como único aliado.
E assim volto às chamas do desígnio,
e canto,
e pinto:
porque sei bem que não tenho nome.
O mundo é isto:
cristal fundido e baba
de que os cavalos se afastam
para que a serena viagem tenha início.
E ri o ar,
e ri a floresta
– e ri a verde colina
e a sombra dos pássaros,
e a nossa estridência é como uma fábula
onde só há crianças,
e pão,
e corvos sobre as águas.
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Não odeio ninguém.
Sobre a pobreza
juro
fidelidade à terra,
este lugar de sonhos ancorados
e hinos a exaltar
o pastor,
a vigília,
o leite e o mel.
E, pela minha morte,
conjugarei o silêncio profundo,
Sísifo no espelho
e o arco-íris:
topázio,
ocre,
azul fumo,
índigo,
um branco de zinco,
verde absoluto,
vermelho
arenisco,
mínio,
cinábrio,
rosa violáceo
e negro,
negro como o infinito espaço.
Não há síntese:
mas só mundos paralelos
onde os animais rastejam,
que eu vi a pomba e vi o sacrifício,
a pedra e o punhal ─
e o poder do galope,
e os cavalos como cristais nas árvores.
O que mais amo é o meu temor
das lanças:
as anilinas fervem
nessa febre,
penetram-me os ossos,
fundem-se ao meu corpo,
pulsam no meu crânio
e do leve fascínio
sei que o meu nome
é o nome de um foragido ou um proscrito,
que avança sempre em frente,
em linha recta,
em círculos,
até que, numa vitória rasa,
a terra ganha
e à morte outra morte se sucede.
Não odeio ninguém,
ponho nos meus sonhos os fantasmas,
a imagem de uma pulga,
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– eu, que incerto e ágil,
sou como o tigre
que uma mão imortal
aproximou
do lugar dos segredos
e da vida.
E assim volto às chamas do desígnio,
e canto,
e pinto.
13.6.09
Julgo que nasceram no mesmo dia
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Ricardo Reis, pormenor de mural, Almada Negreiros, 1958.
(De) Três Sonetos a Lídia,
em Louvor de Ricardo Reis
1
Nada nos sobrevive se não temos
ainda os olhos puros, e a corrente
não conseguimos ver na transparência
dos dias mais antigos e serenos.
A sombra não a queiras, Lídia, é turva
e, ao escurecer a água, turvas ficam
as águas que eram claras, e do rio
se quedam na memória as águas sujas.
Se sentires a sombra não esqueças
que antes dela brilhou o limpo sul
por detrás das colinas que então vias.
Somente assim a vida nos mereça,
os olhos dedicados a essa luz
que dos choupos a ti sempre volvia.
In Dispersão - Poesia Reunida, 2008, Nuno Dempster.
23.12.08
28.7.08
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Às vezes, arranjamos um dia para nos sentarmos à mesa, sob a figueira. Repartimos como antigamente a carne, o vinho, o pão, a frescura sumarenta dos pêssegos, e fingimos viver sem cuidados. Ao longe, as cidades ardem, a multidão nas ruas, a morte nos guetos, os poderosos em seus prédios altíssimos, guardados por tanques e polícia. E, quando nos levantamos, vemos a mesma miúda a fitar-nos, fugida das cidades, os olhos opacos de futuro. Não têm uma boneca que possa chamar-se Matilde? — pergunta-nos sempre.
© nd
26.7.08
Pietà
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O monge tinha fé e por isso imolou-se no fogo e, como ele, tantos ao longo da corrente do tempo, desde a eclosão das divindades. Dir-se-ia que vêm ao mundo só para morrer assim. No entanto, esse destino não existia, nada está decidido, o fim é, todo ele, uma síntese de cruzamentos e, em última análise, o fruto que a mãe, sem saber, pousa no reverso da alegria.
© nd
24.7.08
Adolescente ainda, as palavras eram sons que me levavam de fulgor em fulgor, de febre em febre: escrevia como olhava o mar, imaginando cidades na margem invisível do horizonte. Escrevia pela ânsia de viver, pela luz em que julgava ir tornar-me. Há muito que essa luz se apagou e que não escrevo assim. Nem já para fingir viver. Foi longo o caminho de aprendizagem, e trago comigo as personagens que ficaram em mim e que fui encontrando nestes livros todos. Vivemos juntos e sonhamos juntos enquanto durmo. Sem elas eu não existia. O que escrevo, em sua maior parte, não me pertence. Pertence-lhes. E hoje escrevo para resistir, para que nenhuma delas morra senão quando eu morrer.
© nd
23.7.08
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Fresco de Pompeia, séc. I (d.C.), Museu Nacional de Arqueologia, Nápoles.
Se entrasses pela porta de um filme de Antonioni, todos olhariam o enigma do teu rosto. Não o saberiam ler, no entanto haviam de ansiar dissolver-se nele como se, de repente, fosse a vida que nunca tocaram, o espelho de um vislumbre perfeito. A mim, que te vejo tantas vezes, sucedeu um dia não me bastar essa imagem, ter de ir buscar outra muito mais distante, e hoje és também a mulher do fresco de Pompeia.
© nd
21.7.08
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Criança numa cadeira com a mãe, pintura em vaso grego do séc. V a.C.