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domingo, 10 de outubro de 2021

Amélia

 

 Foi nesta hora que Violante descabeçou a nova. Um olho no salta-pocinhas empoleirado no escadote a limpar a prateleira dos barros toscos e vidrados, e outro na registadora cheia de dedos numerados e mãos de trocos, anunciou como quem não quer a coisa, o salta-pocinhas arranjou madrinha, não querem lá ver que  a Amélia se ofereceu para lhe tratar da roupa. Qual odor invasivo, um vento de admiração insinuou-se por toda a loja. Silêncio. O salta-pocinhas entesou no escadote e o cutelo da carne estacou a meio caminho, machadadas absortas sob o punho do Januário. A estupefacção arrebatava os quatro cantos do mercadito. E, logo logo, o burburinho despudorado, um cacho de mulheres junto à caixa, o quê, como é que é isso, conta lá. Lá atrás, silêncio canino. Perdigueiros  de orelha à espreita, os homens respigavam a novidade como quem não quer nada. Violante, gaveta da registadora aberta e satisfeita de si, sem atender o pedido mudo do garoto, pois é o que eu digo, a Amélia toma conta da roupa do salta-pocinhas. Que o gaiato é como os mais, não passa do portão, a Amélia é assim, que se há-de fazer, aquilo nem é bem um portão, é o balcão das trocas. Pois não vemos todos como vende o leite e os queijos. Mas as mudas aparecem cerzidas e sem nódoa, botões cosidos e emparelhados. E, apartando uma barra de sabão que embrulhava em papel de jornal, reconhecia, que até me deu jeito, isso é verdade. Tomara eu dar conta das minhas coisas, quanto mais andar de posse dos trapos do salta-pocinhas. O mulherio, olhos de raio x complacente fixo no fogo que enrubescia a atrapalhação do garoto, reconheceu, anda mais limpo, isso é verdade.

Ora, cumpre informar o leitor que salta-pocinhas, roubado à solidão de um monte, pertencia  a família numerosa e grata a Violante por lho tirar de casa. Menos uma boca. No contratado por bate-boca, constava o direito a cama, refeições e idas à escola. A contrapartida era ser pau para toda a obra, sem folgas ou ordenado.  Salta-pocinhas, um saltarico magricela e bem disposto, eterno lápis atrás da orelha, era o preferido da clientela que, em adequado desvelo de bem querer, breve lhe deu alcunha. Só na escola D. Assunção do Pereiro teimava em chamá-lo pelo nome, Manuel António, vai ao quadro. E, o mais das vezes, salta-pocinhas mudo e quedo, desligado do nome que lhe pertencia desde sempre. Porém, no mini mercado detinha rapidez sorridente e imbatível. Além disso, para que negá-lo, os clientes sentiam-no como um dos seus, irmanado na má sorte que os fazia contar os pretos e os brancos, poupando a vida das  poucas notas  que bailavam no interior das carteiras e malas de mão. Era de lei que salta-pocinhas nem um dedo na registadora, fazia a conta no papel de embrulho que o cliente levaria para casa. Sabiam-no em piores condições de vida e isso dava-lhes inédita oportunidade, podiam pôr a uso a superioridade compassiva, coitadinho do salta-pocinhas. E sentir-se bafejados pela sorte, acima dos salta-pocinhas da vida. O dinheiro que ali deixavam era água que o garoto manejava sem pertença; logo, demonstrada a sua transparente honestidade no mister das compras, viam nele uma espécie de querubim sem asas, pontinhado e sujo, sempre de cara alegre.

 

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Amélia

 

 Amélia não condoía com crianças.  Se a curiosidade as plantava espiolhando o espaço proibido, enxotava-as em exaltação odienta, o corpo irado afastando-as do portão. De rosto enfiado pelos ferros da grade, os garotos esquadrinhavam a rua de terra bem vasculhada e, ao fundo, o bebedouro das vacas e o tanquezinho, relevos de cal que avultavam junto à nespereira que, em seu tempo, rebrilhava ao sol cravejada de nêsperas carnudas e em cacho, o apetite crescendo olhos e boca adentro. Espreitar a casa de Amélia era desejo incontível, enredava a criançada em mistério e temor e, levada pelos contos de inverno ao brasido, a imaginação tecia hipóteses mirabolantes e hiperbólicas.  Mau grado a voz desabrida e a vara apertada na mão a dispará-los em fuga, calcanhares a bater no traseiro, acicatava-os o isolamento da velha. Imaginavam sabe Deus que tesouros escondidos, que inefáveis doçuras no interior da casa, que voltas de mistério e secretismo no lugar. Ao espírito infantil, aquele espaço surgia tocado de magia e pavor, um conto ao vivo, corpo presente.

Contudo, Amélia não compadecia. Ainda que  os frutos solassem o chão e a árvore ajoujasse, distribuía ralhetes e ameaças de varapau, vergastas de escorraçar mirones. Daí a começarem a chamar-lhe bruxa, foi um pulinho. Se os invectivava, havia sempre um ou outro que atirava, bruxa, antes de largar a correr. Mas, no mundo dos adultos, Amélia era respeitada, tinham-na visto envelhecer sem maldade, em trabalho e solidão. Havia até quem pensasse entender tal recolhimento. Portanto, caiu como bomba a novidade de Violante. Mais valera dizer que foi rastilho ateado e bem sucedido.

 O supermercado familiar de Violante Travessa vivia a sua hora de ponta, que é como quem diz, a azáfama das onze. Domésticas faziam as compras do dia na pressa de preparar o almoço, avós tratavam de agrados para lanches e almoços de netos. Aqui e ali, um homem desfasado, espécie de ponto e vírgula numa frase. Pelo espaço quase de gineceu, despontavam como flores mais altas num jardim, ainda que um ou outro fosse na realidade mais baixo que elas. Que isto, verdade seja dita, as jovens de hoje já ultrapassam muito homem maduro. Abençoada juventude. Dos representantes masculinos, certificava-se ali um reformado; aquele, de abstractos olhos, era solitário por força da circunstância; o outro, movia-se no à vontade da opção; este, mais jovem e tocado de pressa, certamente cônjuge moderno dos que levam filhos à escola, dão banho, preparam lanches e mochilas, jogam à bola com os miúdos no quintalito das avós, cuidado olha a roupa estendida e os vasos. E, na entrada do super, cartão de boas vindas e melhores despedidas a contar euros singelos, a evidência prática da atenção de Violante que se repartia entre a vigilância de quem entrava e o teclado da caixa registadora, a gaveta a abrir e fechar e, mais lá ao fundo, no espaço do talho, o ruído entrecortado do cutelo desfigurando as peças de carne, a torná-las de panela. E as ordens ao salta-pocinhas, ajuda aqui a D. Alzira, leva lá as compras de D. Mariazinha que estão aí junto às garrafas vazias, vê lá o cliente que está na prateleira dos doces.   

domingo, 26 de setembro de 2021

Amélia

 

Amélia vive solitária na casa do Altinho. A seriedade do gesto e a zanga afivelada no rosto moreno garantem-lhe a distância de outra gente e põem-na a salvo de companhia e conversas. Ninguém sobe ao Altinho senão com motivo. Ainda assim, toca o sinito dependurado no portão sempre fechado e ela acode descendo de mau modo a ladeira e inquirindo motivos sem destrancar o ferrolho. Jamais alguém lhe entrou em casa ou avistou visita ou família que viesse por ela. Os mais velhos lembram-se que chegou em friorenta alvorada de Janeiro, no comboio das sete. Era então uma jovem mulher e carregava mala de peso. Alugara aquele monte pequeno e desprezado, uma janela à frente e outra atrás, as portas de madeira destratada e furada pelo bicho, dedadas de invernias e calores a subir pelas tábuas carcomidas e a desconjuntar. Uma miséria, garantem. Não se sabe por quanto o arrendou, os donos viviam na cidade e nunca por ali se demoraram ou deram confiança. Diz-se que o ganharam de herança, mas os mais novos sempre o conheceram nas mãos de Tia Amélia. Para eles, o Altinho e Tia Amélia são inseparáveis.

Nos tempos idos, senhora de novo poiso, Amélia aproveitou as encostas para pastagem de três vacas que chegaram ainda bezerras e em carrinha de caixa aberta. E é incerto se comprou o Altinho antes ou depois de começar a fazer negócio com os animais. Mas, a chegada de janelas e portas novas sacudiu incertezas, aquilo pertencia-lhe, era proprietária. De longe, os olhos mais afinados viram nascer um jardinzito e adejos de cortina nas janelas. Sobre Amélia havia fraco saber. Que era de poucas falas e, pela pronúncia de vogais escancaradas, parecia ser do sul; que conversava com os animais o que economizava com as pessoas;  que, por artes só dela, ensinava o caminho aos ruminantes e apenas os conduzia ao pasto, à tardinha, coisa nunca vista e ponto de admiração, as vacas regressavam a casa e esperavam a dona ao portão, só não tocavam a sineta. Sempre trajando de escuro,  Amélia parecia não mudar de roupa, cada peça ao serviço da utilidade e a desprezar arrebiques. Mas, contrariando hábitos arraigados, jamais cobriu a cabeça com lenço.  Os velhos lembravam a trança negra que lhe descia pelas costas e que, quando as rugas fizeram caminhos e lhe desaguaram pelo corpo, passou a recolher num carrapito lasso que deixava escapar alguns anéis de cal, primaveras do rosto. E o mulherio espantado, aquilo é que devia ser um cabelo bonito, valha-a Deus, pois se ainda a trança lhe avulta.

Passaram festas e enterros. Nasceram e morreram crianças. Vieram gripes e surtos de doença. E tudo Amélia sobrevoou. Se adoeceu, não chamou alma. Não compareceu num funeral, nem firmou pé em festa laica ou religiosa. O sino da igreja jamais a convenceu e padres e freiras de pregação falavam-lhe ao portão e, embora com respeito, ouviam-lhe a impaciência catalogante a lamentar palavras e tempo inúteis. O monte criou certa garridice por via do trabalho e esmero de Amélia e a sua figura esguia, em constante fora e dentro, tornou-se hábito.  Os dias eram-lhe curtos, tratava das vacas, ordenhava, fazia o queijo fresco. E vendia tudo. Tinha clientes certos que lhe admiravam o asseio e a pontualidade e se chegavam ao portão entreaberto em hora aprazada. Entretanto, muitos passavam na estrada e miravam o montezito que branquejava lá em cima, uma ermida secular. Quem sabe se, sem a conhecerem ou lhe saberem a história, ali imaginavam uma família pacata vivendo em harmonia.

 

domingo, 11 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Sentaram-se em conversa aturdida e, como leitor distraído passando folhas que não lê, assim eles abordaram família, amigos, projectos. O que quereria Alberto por detrás da tagarelice, nunca ela soube. Talvez não quisesse nada. Ela buscava o milagre, a esperança a emurchecer, fenecendo em arco silencioso à medida que o discurso corria.

 Há mananciais de água não potável. Talvez por acção dos lençóis freáticos que os alimentam, talvez por outro motivo. É água que adoece, pode matar. Envenena sem intenção que, de si mesma, sabe apenas que é água. E foi um gólgota. Deu por si no caminho que repudiara, subido na auscultação de palavras e gestos, que as pessoas se carregam inteiras e são comboio de muita carruagem. Com elas trazem família, meio, vícios, virtudes. E o mais.

Havia sol na cozinha de muita luz, ele sentado, as traves das pernas estiradas, quebrando o dominó do chão. Na sua frente, do outro lado da mesa, ela encolhia e hipnotizava na movida da poalha iluminada. Sabia já que era definitivo, não voltariam a estar juntos. Talvez as partículas que dançavam fossem pretexto, sugestão do eterno vaivém da vida. Ou fosse ali, no pedaço soalhento da janela, em claridade inegável, que o impossível se plasmou. Então, foi içando as pontes que tinha estendido para ele, conversaram mais um pouco sobre assuntos inóquos e despediram-se como se fossem encontrar-se dali a bocadinho, até logo. Mas era um adeus. Não lhe contou do bilhete de identidade. Era recordação, coisa do passado que tomara para si. Fora-lhe entregue em mão. Expressamente. Pertencia-lhe.

Olhou definitiva a foto do garoto brilhando por detrás do plástico, vês, ficámos juntos e é fora de dúvida, guardei de ti a melhor parte. Deixei cair o Alberto e o Inglês, faziam-te falta para prosseguir viagem. Entretanto, amaste e foste amado, sofreste, gozaste alegrias e prazeres, erraste e caíste; e, como toda a gente, te levantaste. Guardo-te a imagem do barro originário e angélico, memória inocente de um amor. Um amor feliz. É assim que quero recordá-lo.

 Observou o céu.  O ar enchia-se de trinados e cumprimentos de asa. Era a hora azul. Levou-o para dentro, a aragem que se levantara molestava ambos, crianças e velhos são gente sensível. Depois, subiu a escada e devolveu-o ternamente aos abraços do diploma arborizado murmurando, é bom lugar para os teus sinais. E num meio sorriso, não esqueças onde moras e tens casa: pessoa x, rua da  memória, bloco do coração.

                                                         FIM

sábado, 10 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Se inquirido, “o inglês” encolhia os ombros e afirmava que os irmãos sempre o tinham chamado assim e depois vulgarizara.  Ela gostava do nome,  mas não o utilizava, parecia-lhe que o desenraizava. Dizia, não és inglês, chamas-te Alberto. E ele, Eu sei, pareces a minha mãe. E ria.

Anos depois, Alberto visitara-a uma única vez. A pedido. Lembrava as recaídas, a razão absurdamente engolida, ausência a latejar-lhe no sangue doloroso e o visco peganhento da saudade derramando sobre o inerte dos dias. Tão jovens. O rigor e exigência primaveris a percorrê-los. O amor em corações jovens é bebé, pena que um sopro derruba e, ao menor incentivo, se levanta.  Aguentava as crises sem queixas, sabia-lhes a necessidade. Mas há sempre a hora nona. Nela, a mente muda a agulha e inverte o sentido. Prevalentes, só a esperança a converter impossíveis e a crença no milagre. E Alberto disse, presente.

Chegou sequioso. Seria verão, talvez. Era verão. Ainda o vê destoar naquela cozinha de mulheres onde parecia caber a custo, copo debaixo da torneira. Ainda sabe a forma como, antes, se inclinou a molhar os lábios. Sorrira do hábito antigo, conhecia o gesto. Tanto o observara nos tempos de escola a debruçar-se sobre repuxos de jardim, antes de beber. Um ritual de purificação que lhe lembrava o lavar das mãos durante a missa. Ele bebia em longos tragos enquanto ela, sentada um pouco atrás, na cadeira junto à mesa, manejava sem arte o volante do coração desaguisado, um remoinho de arrependimento e alegria a atafulhá-la de dúvidas, para quê, porquê, de que vale. Indiferentes ao tropel, os olhos compraziam de encanto. Luzindo satisfeita tranquilidade, festejavam-no sem pudor e, como quem enfim encontra poiso, descansavam-lhe ternamente na figura. Anos sem se verem, tanto se afadigara a pôr quilómetros de permeio.

Da foto tipo passe, o garoto sorria-lhe confiante. Quantas possibilidades nesse sorriso arvorado por fotógrafo. Trouxe-o à rua. Mirou-o na luz natural e reconheceu, tudo que então a tolhera ou lhe parecera importante esvanecera, era agora quase nulo, perdida a força que o presente dá a todas as coisas. Mas a ingenuidade tem seu tempo e direitos e vai talhando rotas à medida que  arde, porque toda a vitória é, em simultâneo, uma derrota, pagamos uns aos outros pena, diria Anaximandro. Ou pagamos pena a nós mesmos e a eles.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Olhou em volta. Como soldados em formatura, umas sobre as outras, um monte de caixas alinhadas por tamanho e com etiqueta lateral, encostava na parede. Viera em demanda de uma peça de roupa desaparecida. O que ela sofria à roupa. Peças havia que, por pirraça, não apareciam em lugar nenhum e tinha de aguentar escapadelas irreparáveis. Eram saias desaparecidas durante um ano ou dois, blusinhas que emigravam sem data marcada, casacos de inverno que, apesar do volume, se escondiam sabe Deus onde, mas quase jurava que não em sua casa.  Puxara uma caixa ao acaso e prosseguiu contrariando a etiqueta  que  garantia, aqui não. Mas já a curiosidade a mordia. Levantou-lhe a tampa e lá estava o diploma da comunhão com a assinatura floreada do padre da altura e a fotografia de um anjo de pedra a que alguma brisa talhada a escopo e martelo tinha  feito esvoaçar o cabelo. Na mão de pedra, a hóstia parecia bolacha maria para desjejum e nada tinha a ver com a fina película que lhe sabia ao que imaginava ser bolacha americana sem doce ou cozedura, branca de cal e uns relevos desenhados que não chegou a decifrar porque a hóstia  se colava à língua e logo desfazia.  Esquecida já do que procurava, passava o contentamento de mãos e olhos por certificados e diplomas e ressaltavam-lhe memórias adormecidas, esforços empenhados que hoje consideraria improfícuos, mas na altura soavam sensatos. Foi nesse revivalismo que, sobre um certificado do Dia da Árvore, lhe avultou o Bilhete de Identidade do Alberto. E o coração já não um baque, mas uma moinha de saudade, um dedo em melancolia terna, descendo pela foto plastificada do garoto. O Alberto. De novo. O Alberto de apelido diferente dos irmãos. Quem concebera que aquela criança se chamasse Alberto Ângelo sem que a brevidade do nome tocasse de leve a progenitura. Quem. Talvez a mãe, uma madrinha jovem e crédula levada pelos anéis louros do querubim, uma avó cumprindo promessa. Mirava o sorriso confiante avaliando quando o teria guardado. Não que o tivesse esquecido, pessoas marcantes não se ausentam. Mas o Bilhete, por que o guardara. Quando. Tê-lo-ia feito nesse dia em que um desconhecido lhe remexera o passado levantando tempestades que preferia olvidar. Ou, sem morada certa, transitara da estante para o interior de um livro, do livro para o fundo da mala, da mala para a gaveta da secretária. Ou será que o olhava em noites de inumeráveis cansaços, fazendo-se mútua companhia. Um conjunto vazio o deles. Ela, espatifada de canseira; a foto, fixando o tempo sem volta e a que ela chegou irremediável e tarde. Não. Ela não era disso.  Contudo, os anos passavam e ainda o coração lhe subia na garganta e fraquejavam as pernas se um cotovelo, uma colónia, um cigarro, uma canção que ele amava.  Ainda esperava no impossível. Gente conhecida também se iludia e  decretava, vi a miúda do Inglês. 

 (cont)

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Foi no remexer de certa caixa onde convivia uma abundância de diplomas e classificações escolares que rememorou a situação. Reviu o ar intrigado da empregada em bamboleio cambaio até si e, num murmúrio, como quem enuncia senha secreta, minha senhora está ali um rapaz. Diz que tem uma coisa para si mas não ma quis entregar. E adensando o mistério, eu não o conheço, não deve ser destes lados. E ela, pois que venha. E quedou expectante, observando o andar trôpego da mulher que se afastava. Depois,  duas pancadas suaves. Ela, faça favor. E, no capacho, um jovem desconhecido, mãos e fato macaco sujos de tinta, as ondas escuras do cabelo em desalinho. Postou-se-lhe na frente entre o indeciso e o envergonhado, retirou qualquer coisa do bolso e disse, um dia destes andava ali junto ao rio e achei isto. Encolheu os ombros, já não serve, mas talvez a senhora goste.  Depositou um rectângulo sobre a mesa, cumprimentou e saiu fechando a porta. Foi pelo depósito e notou de imediato que era um Bilhete de Identidade. Virou-o. O coração baqueou. O Alberto. Consigo. Na sua mão. Tão bonito e tão criança. De bilhete na mão correu para a porta, abriu-a, mas eu…mas nós não…. E nada do moço. A empregada veio lá dos fundos a justificar, minha senhora, o rapaz trazia uma carrinha de caixa aberta, aquilo é pintor de certeza, as latas da tinta chocalhavam por todo o lado. E espreitando a rua quase deserta, olhe, já nem se vê. Voltou para dentro, bilhete na mão. Já na sala, deu-se à contemplação do Alberto infantil, o de antes de crescer, um sujeitinho que ela nem se dera ao trabalho de imaginar. E lhe sorria pacífico, um cacho de caracóis loiros a emoldurar o rosto. Um garoto que nunca sonhara e nem tentara conhecer, mas devia viver ainda no Alberto que lhe coubera. Como se pudéssemos amar apenas uma fracção da vida da pessoa, impôr-lhe o nosso limite, desde aqui até ali. Ela lembrava-o assim, no pedaço de tempo que lhes coubera. No tempo de jovem Alberto.  Mas esse aparava o cabelo tão amiúde que cerceava, quase na raiz, todo o anseio de caracóis. E agora sorria-lhe da infância encaracolada. Do alto dos seus oito nove anos, boca carnuda, sem malícia e ainda fora do tabaco de tanta companhia, olhos que se percebiam claros, a refulgir a luz da idade. E a assinatura desconhecida. Caprichada e em letra escolar. Simples e sem letras finais em cauda comprida. Alberto Ângelo.

(cont.)

sábado, 3 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Forçoso é reconhecer, as caixas que lhe acompanharam a vida não eram preferência. Quando não há móveis, carteiras, bolsas; quando a vida se faz no quase nada, há sempre uma caixa ou outra a guardar pertences. A caixinha das peúgas que a mãe pedira na mercearia, cofre de anjos da guarda e santinhos de olhos em alvo e açucenas na mão, convivendo com a mundana vaidade de pratinhas alisadas à unha, ufanas da sua lisura delicada. E as caixas de fósforos que guardava para os grilos apanhados pelos campos, uma paciente palhinha a ir e vir na lura, gri, gri, gri, gri e os crédulos insectos acabavam a comer pedaços de alface numa caixa com furos na tampa “para respirar”.  Transportava-os no bolso, tesouros puxados ao momento e a que acrescentava o extra exclamativo, e o que ele canta. E quando a alface seca, já farta do grilo, restituía-o à terra. Contudo, nunca a caixa dos sonhos lhe pisou a realidade. Tanto gostava de ter uma com duas bandas de papel de seda. Mas, que soubesse, só as combinações caras se acobertavam na glória cetinosa do papel de seda. E isso sim, era invólucro de categoria, fino. Infelizmente, as sortudas não as davam e repeliam trocas, antes se expandindo em explicações de primas e tias lisboetas, senhoras de luvas e chapéu que eram tu cá tu lá com  elemento tão mavioso. Havia sempre a caixa e a história da caixa que não valia menos que ela. Metia ruas com nome, prédios altos e atravessar o mar que era rio sem que o soubessem, coisa de muita água. E havia  um barco que, diziam, era assim como uma casa, tinha chão e  telhado, janelas, portas, bancos e tudo; e andava pela água como os carros nas estradas, sem ir ao fundo.  Está bom de ver que tanta novidade era conjunto de peso e içava a feliz utente ao pódio, subia na consideração geral.  Nunca ela beneficiara desse rasgão de luz, nenhum parente em Lisboa, ninguém que lhe viesse de fora da aldeia trazendo consigo uma boa história.

Depois, a adolescência fez nascer a caixa dos postais. Quantos postais guardara. De gente desconhecida. Horas a olhá-los amorosamente, a lê-los como se lhe  fossem dirigidos, vendo crescer a colecção. Entre tantos dizeres, mantém o início de um: “Inesquecível São”. Quem seria essa São impossível de esquecer, que teria sentido ao lê-lo. E, portanto, o “Inesquecível São” mora ainda nela pela estranha força que emana, quando, talvez, nunca a tenha tido na destinatária, ou sequer no escriba. Que tanta coisa se diz com palavras fortes como cordas de caldeiro e vai-se a ver, estica-se um bocadinho e logo a corda esfarela e é podridão. Mas, se pensa em postais ilustrados, não lhe vêm os que escreveu, vem-lhe, num ápice, o “Inesquecível São”, muito embora a ilustração se tenha perdido no vaivém dos anos.  E ainda pensa se essa mulher incógnita terá corado ao lê-lo, orgulhosa por ser tão presente na memória de um homem.  Se o amor a agitou com suas ondas concêntricas de grato bem querer.  Quem sabe, apenas repudiou o sentimento, vai chamar inesquecível a outra. Mas não rasgou o postal. Hoje, ela é, talvez, o único lugar onde, ele sim, se tornou inesquecível. Não sabe onde pára, esqueceu os dizeres e se o ilustrava uma paisagem ou era figurativo. Sabe apenas o nome e sua adjectivação.  Estranha força, a do leitor e das palavras nele.

(cont.)

 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Sempre fora de guardar coisas em caixas. Vinha-lhe do tempo em que não havia senão o básico em casa e os brinquedos lhe cabiam na caixa de cartão do chapéu do pai. Um chapéu preto de feltro, aba revirada atrás e derrubada na frente. Achava-o bonito, uma fita preta a toda a volta. Contudo, se o pai o usava, tornava-se gente estranha,  alguém com certo ar de feira, um vendedor trapaceiro e brigão. De chapéu, o pai assustava-a. Porém, em cabelo ou de boné, voltava a ser o pai. Tomou medo ao chapéu invejado e nunca ela arriscou experimentá-lo. Secretamente, rodava-o na mão, embevecia na maciez do feltro, passava dois dedos na fita cetinosa e depois subia de novo ao banco para voltar a pendurá-lo no prego da porta do quarto. E ele ali ficava, polícia empertigado tomando conta da penumbra.

 A caixa dos brinquedos era a maior que já vira. À beira dela, as embalagens de sapatos minguavam. As mesmas caixas de sapatos que a mãe espalmava aproveitando para fazer palmilhas, ocupada a desenhar-lhe os pés com um lápis a toda a volta e ela a rir porque o lápis fazia cócegas, a mãe, está quietinha com o pé, não te mexas. Portanto, a caixa dos brinquedos era gigante e fazia as delícias das amiguinhas. Após a brincadeira, empurrava-a para o lugar, debaixo da cama dos pais. Por vezes, o embalo era excessivo e obrigava-a depois a aventurar-se naquele mundo de obscuridade, onde se sentia a violar incompreensíveis segredos.  Rente ao soalho, barriga no chão e braços esticados, tacteava arrastando o corpo ora na direcção dos pés ora na da cabeceira da cama, o nariz desagradado do cheiro a pó e suados cansaços que rançavam as palhas do colchão. Tocava no papelão e acertava a agulha, arrastava-se mais um pouco e, a mãos ambas, orientava a navegação da caixa no bafio espesso daquele mar de odores até a trazer à luz natural. Carregava-a para a rua e as outras garotas divertiam-se a retirar cadeirinhas e mesas onde ninguém cabia, chávenas que duas gotas deixavam rasas, pratos onde uma ervilha era demais. E ela a pensar para que serviam coisas tão pequeninas e por que seria que as outras meninas gostavam tanto delas. E para que queria bonecas que não falavam, não abraçavam nem faziam corridas, e apenas - algumas - mexiam as pálpebras. Tudo que podia fazer com elas era pô-las a dormir ou a acordar. Se a mãe distraía, dava os brinquedos a quem os achava bonitos, que a ela não interessavam. Talvez a mãe gostasse deles porque lhe ordenava que fosse buscar as mesinhas, as cadeiras, as chávenas e pires. Nessa época, desconhecia que a mãe fora também criança, uma criança sem brinquedos e de curta infância. Para ela, a mãe nascera mãe e seria sempre assim. O mundo da infância não pensa em crescer, cresce sem dar conta e não supõe mudanças, é um inalterável hoje.

(cont.)

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Duas Faces


Fui recebido como um lorde. Apaparicado como um rei. E a menina minha prima toda agrados, simpatia e sorriso.  Uma conspiração sorridente. Findo o jantar a que não tenho memória de objecção, foi mesmo soberbo, o dono da casa propôs passarmos ambos ao escritório. E penetrámos no seu santuário. O escritório era então o mundo dos homens.  Fumámos. Conversámos sobre banalidades a que as mobílias escuras se fizeram coniventes. Entrámos a falar sobre o meu curso. Continuámos com o primo a enfatizar os seus  proventos profissionais. E, após este preâmbulo de muito minuto, o homem tomou coragem e encetou a falar-me no dote da filha e no que eu beneficiaria se entrasse num compromisso com a sua menina. Entenda o primo, dizia-me, não é casar. Não é isso. Apenas um compromisso de casamento. E esclarecendo os benefícios do dote, o primo tirava o curso no continente com o desafogo que lhe aprouvesse, gastava o dote. E lançando-me olhares significativos, solteiro, bem entendido, que eu sei bem como são os rapazes novos, também por lá passei. E depois, culminou, vinha para a ilha, montava consultório aqui e casavam. E arranjava muito mais que um dote, tinha a vida feita, digo-lhe eu. O que me diz...
E o leitor, o que diria?  Pois eu titubeei sem querer ofender o pai extremoso. Mas fui firme, eu não ia gastar um dote a terminar curso que fosse meu. Depois da confusão e estupor em que a inusitada proposta me lançou, acrescentei reticências a desculpar-me, estava de partida, não conhecia a menina senão dali, tínhamos muito pouco tempo para pensar em qualquer sentimento que fosse além de amizade.
Quando nos juntámos às senhoras no salão, e apenas para ser simpático, ainda arrisquei umas palavras junto da garota, para sabermos se queríamos um compromisso sério, teríamos de nos conhecer melhor. E logo ela num repente de desejo, ah, mas é que eu não me importo nada de viajar para o continente, quem me dera.
E pode o leitor crer que, ou o meu semblante foi transparência de água pura, ou o trio pensou melhor. Mas, até à hora de cruzar a porta de embarque, temi vê-la de mala na mão correndo ao meu encontro.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Duas Faces


Outro dos meus imbróglios amorosos é insular, reporta-se ao lugar onde meu pai conheceu e se enamorou de minha mãe, frágil princesa de uma ilha que sossobrou à força dos ares continentais. Já eu cursava medicina quando se deu o caso que vou contar. Talvez instado pela tia paterna que me criou – meus pais faltaram-me muito cedo – ou por simples curiosidade pessoal, resolvi passar férias na ilha e estreitar laços familiares com a parentela. Em boa hora o fiz que as ilhas têm beleza própria e singular. Mas, para lá do que viam os meus olhos continentais, em consciência de ilhéu evoluía aspiração muito concreta.
É sabido que, talvez por obediência à lei da atracção de opostos, mulheres das ilhas preferem homens do continente. Ser ilhéu não é o mar de facilidades que se imaginam. Ser ilhéu, parece-me que há-de ser também certa claustrofobia de tão pouca terra em enorme mar, a sensação de que os passos acabam andando em roda de si mesmos, o chão sempre curto para o que a alma anseia. De qualquer modo, seja ou não isto que pensam os ilhéus, saiba o leitor que logo houve intrigados pais que ao ver-me se informaram. E tiraram dados. E fizeram contas. Talvez eu viesse a herdar por via materna uns haveres nada desprezíveis, que afinal era filho da, herdeira de, e portanto, contas feitas, valia a pena. E afinal, médico. E afinal de boas famílias, gente conhecida e piedosa, sem nódoa que se apontasse. E afinal duas pernas e dois braços em corpo são e escorreito. Portanto, no que me pareceu pouco natural -  apenas o vira de raspão -, a dada altura surgiu convite para jantar em casa de um primo, gente conhecida na ilha e com fama de vida próspera. Chamemos-lhe o primo X. Em abono da verdade, leitor, digo-lhe que o nome de família me agradou bastante, parecia-me convincente e com certo pedigree. Terá o leitor de compreender que, nesse tempo, a minha irrisória juventude fugia de apelidos abastardados, como Fogaça ou Pires, e  de faltas de gosto assustadoras, como Narigueta ou Pé Leve. Portanto, cheio de mim, lá fui ao jantar. Ora a herdeira do primo, jovem a quem Vénus pouco favorecera, andava pela minha idade.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Duas Faces



Quando as décadas nos poisam nos ombros e a pátina do tempo se faz sentir, corpo e alma enviam sinais. Uma dor aqui ou ali, a lágrima que se solta mais facilmente, o sono que antes se condensava no período nocturno e agora parece trocar-nos as voltas, adormecemos no sofá a olhar a tv e estamos acordadíssimos a horas mortas. Mas a maior carga, caro leitor, o que mais enche e engorda, é a memória. A memória é balão insuflado pelo tempo. Lembra nítidos episódios de infância, coisas de lá muito atrás, recua-nos a tão crianças que mais parece sermos outra pessoa, no que não deixamos de ter razão, já não somos os mesmos. Ou, como dizia um filósofo da antiguidade – claramente mais antigo que nós -, somos e não somos os mesmos. Pois essa infância e juventude que nos aparecem mais nítidas que o sonho da noite anterior esquecido mal acordámos, dessa infância de há milhares e milhares de dias, ainda recordamos cores, cheiros, calores e frios; é como se certos acontecimentos de antanho sejam de ontem, embora, se o fossem, não os lembrássemos com a mesma acuidade.  Contraponto à clareza de há muitos anos, não nos recordamos onde ainda há pouco deixámos os óculos; desconhecemos o paradeiro da chave de casa e onde é que ela andará que fugiu do chaveiro; esquecemos a promessa de ligar a certa hora àquela pessoa. E é isto a vida. Perdem-se itens da memória de curto prazo, mas melhora a focagem de longo prazo. Nem tudo é mau, se bem que as nossas histórias desinteressem os mais novos e os chaguemos sempre com o mesmo, sabes onde deixei os óculos, não viste o meu chapéu,  reparaste se pus cachecol quando saí. E etc.. Imagino que, na mente deles, só por termos crescido sem a tecnologia digital, sejamos animais pré-históricos.  A memória é essa fiel depositária que não nos deixa mentir a nós mesmos - aos outros, sim, que dela só sabem o que quisermos contar – e não esquece patranhas. Está visto que, na sua fidelidade ao passado, consegue ser, por vezes, muito aborrecida. Mas também gratificante.

Ora eu que aqui estou, celibatário de uma vida  para vos servir, digo-vos que as aspirantes a noivar foram várias e os namoros inúmeros. Sem compromissos.  Dessas várias, vou contar talvez as duas mais exóticas e, pelo menos para mim, surpreendentes.   A primeira, na realidade a segunda no ciclo temporal, foi-me literalmente oferecida pelo pai em Angola, usando o mui preclaro degrau de ma estender como lavadeira. E, palavra, caiu-me tudo ao chão. Era o que menos esperava daquele soba a quem tinha curado uma doença qualquer: que a sua gratidão encarnasse numa mulher de carne e osso, que falava, movia os braços ora quietos ao longo do corpo, e as pernas de quase criança sustentadas por pés largos e descalços, uma palmilha de pele gretada e dureza natural a ampará-los na poeira, olhos baixos no ébano submisso do rosto. Assim. Coisa de, leve-a consigo, tome-a lá, é sua. Como se a garota meio quilo de farinha de mandioca ou uma das galinhas que ciscavam por ali. Não podia recusar o presente sem ofender o soba, mas uma mulher nos calcanhares não me cabia nos planos. Sem escolha, levei-a comigo e ofereci a lavadeira ao sargento a quem ela fez certamente uma barrela completa. Ou ele a ela. Nunca saberemos. Pobres. Pobres mulheres africanas. Moeda de troca pronta a todo o serviço.