Foi nesta hora que Violante descabeçou a nova. Um olho no salta-pocinhas empoleirado no escadote a limpar a prateleira dos barros toscos e vidrados, e outro na registadora cheia de dedos numerados e mãos de trocos, anunciou como quem não quer a coisa, o salta-pocinhas arranjou madrinha, não querem lá ver que a Amélia se ofereceu para lhe tratar da roupa. Qual odor invasivo, um vento de admiração insinuou-se por toda a loja. Silêncio. O salta-pocinhas entesou no escadote e o cutelo da carne estacou a meio caminho, machadadas absortas sob o punho do Januário. A estupefacção arrebatava os quatro cantos do mercadito. E, logo logo, o burburinho despudorado, um cacho de mulheres junto à caixa, o quê, como é que é isso, conta lá. Lá atrás, silêncio canino. Perdigueiros de orelha à espreita, os homens respigavam a novidade como quem não quer nada. Violante, gaveta da registadora aberta e satisfeita de si, sem atender o pedido mudo do garoto, pois é o que eu digo, a Amélia toma conta da roupa do salta-pocinhas. Que o gaiato é como os mais, não passa do portão, a Amélia é assim, que se há-de fazer, aquilo nem é bem um portão, é o balcão das trocas. Pois não vemos todos como vende o leite e os queijos. Mas as mudas aparecem cerzidas e sem nódoa, botões cosidos e emparelhados. E, apartando uma barra de sabão que embrulhava em papel de jornal, reconhecia, que até me deu jeito, isso é verdade. Tomara eu dar conta das minhas coisas, quanto mais andar de posse dos trapos do salta-pocinhas. O mulherio, olhos de raio x complacente fixo no fogo que enrubescia a atrapalhação do garoto, reconheceu, anda mais limpo, isso é verdade.
Ora, cumpre informar o leitor que salta-pocinhas, roubado à solidão de um monte, pertencia a família numerosa e grata a
Violante por lho tirar de casa. Menos uma boca. No contratado por bate-boca, constava
o direito a cama, refeições e idas à escola. A contrapartida era ser pau para
toda a obra, sem folgas ou ordenado. Salta-pocinhas,
um saltarico magricela e bem disposto, eterno lápis atrás da orelha, era o
preferido da clientela que, em adequado desvelo de bem querer, breve lhe deu alcunha. Só na escola D. Assunção do Pereiro teimava em chamá-lo pelo nome, Manuel António, vai ao quadro. E, o mais das vezes, salta-pocinhas mudo e quedo, desligado do nome que lhe pertencia desde sempre. Porém, no mini mercado detinha rapidez sorridente e imbatível. Além disso, para
que negá-lo, os clientes sentiam-no como um dos seus, irmanado na má sorte que os fazia contar os pretos e os brancos, poupando a vida das poucas notas que bailavam no interior das carteiras e malas de mão. Era de lei que salta-pocinhas nem um dedo na registadora, fazia a conta no papel de embrulho que o cliente levaria para casa. Sabiam-no em piores condições de vida e isso dava-lhes inédita oportunidade, podiam
pôr a uso a superioridade compassiva, coitadinho do salta-pocinhas. E
sentir-se bafejados pela sorte, acima dos salta-pocinhas da vida. O
dinheiro que ali deixavam era água que o garoto manejava sem pertença; logo, demonstrada
a sua transparente honestidade no mister das compras, viam nele uma espécie de
querubim sem asas, pontinhado e sujo, sempre de cara alegre.