Foi
no remexer de certa caixa onde convivia uma abundância de diplomas e
classificações escolares que rememorou a situação. Reviu o ar intrigado da
empregada em bamboleio cambaio até si e, num murmúrio, como quem enuncia senha
secreta, minha senhora está ali um rapaz. Diz que tem uma coisa para si mas não
ma quis entregar. E adensando o mistério, eu não o conheço, não deve ser destes
lados. E ela, pois que venha. E quedou expectante, observando o andar trôpego
da mulher que se afastava. Depois, duas
pancadas suaves. Ela, faça favor. E, no capacho, um jovem desconhecido, mãos e
fato macaco sujos de tinta, as ondas escuras do cabelo em desalinho. Postou-se-lhe
na frente entre o indeciso e o envergonhado, retirou qualquer coisa do bolso e
disse, um dia destes andava ali junto ao rio e achei isto. Encolheu os ombros,
já não serve, mas talvez a senhora goste. Depositou um rectângulo sobre a mesa,
cumprimentou e saiu fechando a porta. Foi pelo depósito e notou de imediato que
era um Bilhete de Identidade. Virou-o. O coração baqueou. O Alberto. Consigo. Na sua mão. Tão bonito
e tão criança. De bilhete na mão correu para a porta, abriu-a, mas eu…mas nós
não…. E nada do moço. A empregada veio lá dos fundos a justificar, minha
senhora, o rapaz trazia uma carrinha de caixa aberta, aquilo é pintor de
certeza, as latas da tinta chocalhavam por todo o lado. E espreitando a rua quase
deserta, olhe, já nem se vê. Voltou para dentro, bilhete na mão. Já na sala,
deu-se à contemplação do Alberto infantil, o de antes de crescer, um sujeitinho
que ela nem se dera ao trabalho de imaginar. E lhe sorria pacífico, um cacho
de caracóis loiros a emoldurar o rosto. Um garoto que nunca sonhara e nem tentara
conhecer, mas devia viver ainda no Alberto que lhe coubera. Como se pudéssemos amar
apenas uma fracção da vida da pessoa, impôr-lhe o nosso limite, desde aqui até
ali. Ela lembrava-o assim, no pedaço de tempo que lhes coubera. No tempo de jovem Alberto. Mas esse aparava o cabelo
tão amiúde que cerceava, quase na raiz, todo o anseio de caracóis. E agora sorria-lhe
da infância encaracolada. Do alto dos seus oito nove anos, boca carnuda, sem malícia e ainda
fora do tabaco de tanta companhia, olhos que se percebiam claros, a refulgir a
luz da idade. E a assinatura desconhecida. Caprichada e em letra escolar. Simples e sem letras finais em cauda comprida. Alberto Ângelo.
(cont.)
Bom dia Bea, deixa-nos a dúvida, porém nada incómoda, se nos serve a realidade ou ficção, e a certeza de que é uma magnífica conhecedora da alma de cada palavra.
ResponderEliminarToda a ficção leva dentro a realidade; ou não convence, não é Joaquim. Eu que me conheço há tantos anos, que tenho andado comigo a vida toda, acredite, não sou magnífica em coisa nenhuma. E não é complexo, é a certeza de que muito poucos homens o são. Nem sequer boa. Consigo, às vezes, naquilo que gosto, ser assim assim e tenho ou tive alguns bons rasgos. Coisa breve. Mas fizeram-me sorrir as suas palavras.
ResponderEliminarUm dia bom para si, Joaquim.
Belo nome de rapaz:)
ResponderEliminar~CC~
Extraordinário.
EliminarTenho um guarda-jóias, pelo menos assim lhe chamo, onde guardo correspondência que troquei com amigos e antigos namorados.
ResponderEliminarMemórias boas.
Chama-lhe o que é, um guarda-jóias. Parvamente, rasguei as poucas cartas de amor e amizade que recebi. Não tanto as de amor que se cingiam a palermas pedidos de namoro. Porém, as de amigos já desaparecidos, quanto prazer teria em lê-las hoje. Mas nada me durava. Paciência.
ResponderEliminarO que pode ser revivido quando se abre uma caixa e nos objetos estão memórias dentro! E nós, leitores, visualizamos a cena e ouvimos o som do motor e das latas de tinta. Para não falar dos sentimentos que quase estalam e se amontoam naquele momento. E tudo graças à sua escrita, Bea.
ResponderEliminarFico à espera de novo episódio. Obrigada.
Bom fim de tarde.
Olá Maria, Bom Dia:). Pois não é esse o intuito de quem escreve e de quem lê, mergulhar num mundo que não é o seu mas compreende e, de algum modo, lhe pertence?
EliminarConcordo plenamente e no qual, de uma forma ou de outra, cada leitor se revê. Quando tal acontece, como nos seus textos, é redentor e bom.
EliminarRedentor não será, mas admito que sejamos todos muito parecidos quanto a sentimentos e o mais. Se fora a originalidade o que se buscasse, muito pouca gente escrevia:).
EliminarCaixas de cartão como guarda joias é uma ideia muito bonita, pois muitas coisas que guardamos são jóias para nós.
ResponderEliminarQuer-me parecer que este último texto vai virar novela. Oxalá! Beijinhos.
Olá, prosa, bom dia:). É apenas uma historinha pequena, como verás.
EliminarCurioso para ler a continuação.
ResponderEliminarBom dia, Pedro:).
ResponderEliminarUma prosa que nos desperta para a leitura!
ResponderEliminarAquela igreja na Foz do Douro, apesar de alguma luminosidade é muito acolhedora!bj
Ah!... Atualmente não sou nada de caixas de papelão mas já usei e abusei delas sobretudo das de sapatos! 😊
EliminarPois é, Gracinha. Eu não disse isso, mas senti-o. É um lugar onde apetece descansar. Mas um, eu e Deus, é mais penumbroso. Parece-me a mim.
Eliminar:). Há uma época para tudo, não é, Gracinha.
ResponderEliminarBoa noite.