Mal pisei a rua de casa, ouvi chapinhar no tanque. Virei à esquerda. Minha avó
afadigava à selha sob a trepadeira que deixava cair flores e folhas, meus navios
de brincadeira naquele bocadinho de mar alto e espumoso, por vezes, encapelado.
Esfregava metódicas peças de roupa e só deu por mim quando, esbaforida, me
postei na frente. Levantou os olhos do tanquezito e antes de dizer o que fosse,
disparei satisfeita, o padrinho da Teresa tem um carro, avó. Minha avó silenciou,
empenhada na esfrega de umas calças de
homem, pernas que nunca mais acabavam.
Continuei, o carro está mesmo ali na rua da Liu. Carregadinho de roupa e
caixas. A Teresa disse que é do padrinho caixeiro viajante. Minha avó, que
passara já a outro par de calças, lançou-me novo olhar impenetrável e fez o meu
desencanto, já o vi, está lá desde manhã, chegou logo depois da entrada na
escola, que já não se ouvia a algazarra que vocês fazem no pátio. Fiquei um nadinha
a brincar o desânimo com as folhas que vogavam na água e ela, sai mas é daqui que ainda
sujas a bata. Entretanto, enfiou o braço selha abaixo, retirou a rolha de
cortiça e a água começou a escoar, primeiro em ritmo contínuo e depois,
enquanto ela ajudava com a escova, a gorgolejar qual peregrino que não
apetece o caminho. Minha avó fez sinal que me afastasse, lançou mão de um balde
de água e atirou-a às paredes do tanque para eliminar restos de sabão e
sujidade. Antes de lançar o balde ao poço, comandou de má catadura, vai despir
a bata e lanchar, deixa a vida dos outros em paz. Recuei. Gostava do passo seguinte. Havia o som contente da roldana a descer o
caldeiro, o golpe certeiro com que minha avó o tombava na água, e o caminho
que o balde fazia desde a fundura, a roldana chiando vagares lacrimosos, o som de pingos na frescura da água lá em baixo, em eco cada vez mais distante. E as avencas das paredes
a ressuscitarem, sacudindo a clorofila num arrepio de manso prazer, chove, que
bom. Por fim, o esforço dos braços a alçar o balde até à bordinha do poço e a água que entornava na calha, cantando até à
selha. E era assim até encher. Nada em minha avó sugeria graciosidade feminina.
Mas o certo é que vê-la trazer a água da fundura me alegrava. Eternizava nela
os olhos de mirar deuses e fadas. Admirava-lhe o poder imenso, acreditava que
domava a água e, quiçá, o que bem lhe apetecesse. E, enquanto me afastava de má
vontade, cumprindo com as ordens, não pude impedir-me de pensar que recebera
mal as novidades da vizinhança. Talvez invejasse o caixeiro viajante, quem sabe
se não desejava ter corrido o mundo como ele em vez de ficar a vida toda a
lavar roupa para fora. Ou talvez o conhecesse e não lhe fosse simpático. Mas
que importava isso, um padrinho é um padrinho, vem de visita e pronto, vai à sua
vida.
Contudo,
passou o fim de semana. Passaram a segunda e a terça feira. Chegou a quarta feira. E
o automóvel do padrinho continuava à porta da Teresa. Se perguntava a minha avó, ela atacava, caladinha, não se fala da vizinhança. Por outro lado, bem a via a cochichar com tia Dorinda e deitando olhadelas à casa da Liu. Nunca entendi os
segredinhos dos adultos que dizem às crianças, segredar é feio, não se
faz, e depois levam a vida aos segredos e mandam-nos brincar se desconfiam que
queremos saber o assunto. Quando inquiri de Teresa, ainda entendi
menos. Respondeu-me apenas, ele não tem patrão e só vai vender quando quiser, mas, quando vem,
fica uma semana ou assim. E se eu e a Liu muito lógicas, os padrinhos não
moram na nossa casa. A Teresa atalhava severa, como quem estabelece pedra basilar, o meu padrinho mora com a gente.
Estranhei a conversa e perguntei a minha avó, mas ela abespinhou, que é que tu tens a ver com isso,
abelhuda. Mete o nariz nos cadernos e nas cópias.