quarta-feira, 28 de abril de 2021

Sombra Chinesa

 

Mal pisei a rua de casa, ouvi chapinhar no tanque. Virei à esquerda. Minha avó afadigava à selha sob a trepadeira que deixava cair flores e folhas, meus navios de brincadeira naquele bocadinho de mar alto e espumoso, por vezes, encapelado. Esfregava metódicas peças de roupa e só deu por mim quando, esbaforida, me postei na frente. Levantou os olhos do tanquezito e antes de dizer o que fosse, disparei satisfeita, o padrinho da Teresa tem um carro, avó. Minha avó silenciou, empenhada na esfrega de umas  calças de homem,  pernas que nunca mais acabavam. Continuei, o carro está mesmo ali na rua da Liu. Carregadinho de roupa e caixas. A Teresa disse que é do padrinho caixeiro viajante. Minha avó, que passara já a outro par de calças, lançou-me novo olhar impenetrável e fez o meu desencanto, já o vi, está lá desde manhã, chegou logo depois da entrada na escola, que já não se ouvia a algazarra que vocês fazem no pátio. Fiquei um nadinha a brincar o desânimo com as folhas que vogavam na água e ela, sai mas é daqui que ainda sujas a bata. Entretanto, enfiou o braço selha abaixo, retirou a rolha de cortiça e a água começou a escoar, primeiro em ritmo contínuo e depois, enquanto ela ajudava com a escova, a gorgolejar qual peregrino que não apetece o caminho. Minha avó fez sinal que me afastasse, lançou mão de um balde de água e atirou-a às paredes do tanque para eliminar restos de sabão e sujidade. Antes de lançar o balde ao poço, comandou de má catadura, vai despir a bata e lanchar, deixa a vida dos outros em paz. Recuei. Gostava do passo seguinte. Havia o som contente da roldana a descer o caldeiro, o golpe certeiro com que minha avó o tombava na água, e o caminho que o balde fazia desde a fundura, a roldana chiando vagares lacrimosos, o som de pingos na frescura da água lá em baixo, em eco cada vez mais distante. E as avencas das paredes a ressuscitarem, sacudindo a clorofila num arrepio de manso prazer, chove, que bom. Por fim, o esforço dos braços a  alçar o balde até à bordinha do poço e a água que entornava na calha, cantando até à selha. E era assim até encher. Nada em minha avó sugeria graciosidade feminina. Mas o certo é que vê-la trazer a água da fundura me alegrava. Eternizava nela os olhos de mirar deuses e fadas. Admirava-lhe o poder imenso, acreditava que domava a água e, quiçá, o que bem lhe apetecesse. E, enquanto me afastava de má vontade, cumprindo com as ordens, não pude impedir-me de pensar que recebera mal as novidades da vizinhança. Talvez invejasse o caixeiro viajante, quem sabe se não desejava ter corrido o mundo como ele em vez de ficar a vida toda a lavar roupa para fora. Ou talvez o conhecesse e não lhe fosse simpático. Mas que importava isso, um padrinho é um padrinho, vem de visita e pronto, vai à sua vida.

Contudo, passou o fim de semana. Passaram a segunda e a terça feira. Chegou a quarta feira. E o automóvel do padrinho continuava à porta da Teresa. Se perguntava a minha avó, ela atacava, caladinha, não se fala da vizinhança. Por outro lado, bem a via a cochichar com tia Dorinda e deitando olhadelas à casa da Liu. Nunca entendi os segredinhos dos adultos que dizem às crianças, segredar é feio, não se faz, e depois levam a vida aos segredos e mandam-nos brincar se desconfiam que queremos saber o assunto. Quando inquiri de Teresa, ainda entendi menos. Respondeu-me apenas, ele não tem patrão e só vai vender quando quiser, mas, quando vem, fica uma semana ou assim. E se eu e a Liu muito lógicas, os padrinhos não moram na nossa casa. A Teresa atalhava severa, como quem estabelece pedra basilar, o meu padrinho mora com a gente.

Estranhei a conversa e perguntei a minha avó, mas ela  abespinhou, que é que tu tens a ver com isso, abelhuda. Mete o nariz nos cadernos e nas cópias.

sábado, 24 de abril de 2021

Sombra Chinesa

 

Mal chegadas à escola,  Teresa, mais velha dois anos, foi absorvida pelas companheiras de classe e despegou de nós. Do que me apercebi na aula, era calada e pouco espevitava para letras e números. Nem a professora nem a nova aluna me pareceram entusiasmadas uma com a outra e o dia, desfeita a surpresa inicial, arredondou dentro da norma.

Como de hábito, saímos da escola a meio da tarde, chapéus de palha na cabeça e olhos franzidos à força de sol, a pele abrindo em corpúsculos de suor que faziam as mãos escorregar na pega da mala. Rumávamos a casa em galheteiro, Teresa no meio, contando doutro horário noutra escola, da professora, dos colegas e sei lá que mais em que embebíamos. Quando já perto da casa delas, arregalámos para o automóvel parado na rua varrida, até aí virgem de carros e que, por certo, estranhava o peso, que é lá isto. Frente à porta escalavrada, manchas mais claras por mor da tinta a descamar, a velhice do postigo sem vidro. aprumando envaidecida por asa etérea de étamine que estremecia ao menor sopro, estava o objecto do nosso espanto. Teresa reparou-nos o ar varado, todo perplexidade, e disparou, olha, o meu padrinho já chegou, está ali o carro.

Todos os garotos tinham um padrinho e uma madrinha. Mas o único automóvel da aldeia pertencia ao senhor Evaristo, figura sempre em pose de manequim de loja, colete e bigode aparado, gravata com alfinete de pedrinha a faiscar e mãos brancas de unhas limpas e arredondadas na ponta. O senhor Evaristo vivia na única casa com muro de verdura religiosamente aparada e um caminho em cobra que desdobrava até à casa térrea e muito branca onde, por via de um portão cerimonioso, só entravam os autorizados. Todos cumprimentávamos o senhor Evaristo com deferência e pelo menos eu supunha que trabalhava em documentos secretos, o dia inteiro sentado a uma secretária igual à da professora. Tinha um carrinho pequeno que parecia um ovo e, à época, fascinava miúdos e graúdos, apesar do desprimor de vê-lo quase colado no vidro da frente se conduzia. Por vezes, a mulher acompanhava-o nas viagens e também ela surgia à beirinha do pára-brisas mais parecendo querer atravessá-lo sem desmanchar a pose de costas muito direitas. Era uma senhora alta, de cabelo curto e ligeiramente encaracolado, calçava sapatos quase rasos, diziam que para não ficar mais alta que o marido, saias justas compridas e camisas claras de laço no pescoço. Todas as mulheres a invejavam com bonomia, o seu vestuário não rimava com vida de trabalho e isenta de requinte e mordomias, mas ainda assim a admiravam, que a atracção de opostos não se restringe às leis da física. 

Posto o reduzido conhecimento geral de veículos automóveis e dado não existir padrinho, madrinha ou parente - mesmo afastado - que se deslocasse em viatura própria, corremos até ao automóvel. Por mim, estou certa que o olhava com a admiração que dedicaria à lua se o astro, repentinamente, se lembrasse de nos honrar com a sua presença. Teresa, adquirido algum dinamismo, parecia até um pouco vaidosa e foi explicando, o meu padrinho é caixeiro viajante e andava lá pelo Norte, ontem não pôde vir com a gente. Se calhar já me trouxe os brinquedos e tudo. Olhámos para dentro  do carro e vimos um monte de caixas e peças de roupa interior ao desbarato. Teresa estugou o passo e nem nos convidou a entrar, mas também não o pensámos. Esperavam-nos em casa e a lei era sair da escola e regressar directamente a penates. Além disso, eu estava mortinha por contar a novidade a minha avó. Nem sequer pensei que éramos vizinhas de Liu e da rua de nossa casa podia ver-se o automóvel. Contente e esgrouviada, desatei a correr, a mala a sacolejando lápis e cadernos, avó, avó, avóóóó…

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Sombra Chinesa

 

Foi numa manhã soalheira que a notícia se espalhou e, como pólvora, correu o povoado bafejada pelos ventos favoráveis do bate-boca das mulheres. A filha do Pelinhos voltara. Por essa altura, era eu garota entretida a soletrar toda a letra miúda que me surgia pela frente e, para azia de minha avó - única mãe que conhecia -, gastava os tempos livres a brincar às professoras, fazia ditados e cópias a mim mesma, alternando entre aluna e mestra. Portanto, quando tia Dorinda entrou com a novidade nos olhos e a ajeitar o peito do avental sobre o impressivo altar de carne com que a natureza a dotara, não liguei à novidade. Desconhecia o tal Pelinhos e a família. Minha avó, que lavava roupa para fora e tirara a manhã para a engomar, pôs o ferro no descanso, deu-me uma olhadela rápida e avisou, não sais daí sem comer tudo, ouviste. Assenti num gesto de cabeça e ela, abandonando a pilha de lençóis, toalhas turcas e as peças de vestuário convenientemente dobradas à parte, puxou Dorinda para a rua. Pela deslocação da voz, senti que iam até à esquina. Entretanto, eu mordiscava sem vontade a torrada infindável e que crescia a cada dentada. Empurrava-a a descer com o café amaciado da quentura por minha avó que, diariamente, repetia os gestos: deitava-o no meu pucarinho de esmalte azul pintalgado de branco e, antes de mo entregar, ia arrefecê-lo na água do alguidarinho pequeno, arrematando entre dentes, gaiata mais escaldadiça, bebe tudo frio, tudo sem graça.

Daí a uns minutos, minha avó voltou sozinha e despachada, levou o ferro até à porta aberta da cozinha, afastou a rede de pesca e espevitou as brasas soprando na base e fazendo cair cinza por todos os orifícios, os carvões de súbito arrebitados, a chisparem no interior e deitando faúlhas. De volta à mesa onde engomava, olhou o meu enfado, viu as horas e reclamou, ainda a torrada está assim, são quase horas da escola.  E eu em súplica, só mais duas dentadas, avó. Ela, três dentadas e vais lavar as mãos e a boca antes de vestir a bata, ouviste. Apressei-me a mastigar, mas a dificuldade era engolir aquele bolo que se passeava na boca da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, adocicava a cada volta e era quase impossível de tragar;  veio-me o vómito e minha avó num repente, pronto, não precisas comer mais senão ainda vem tudo fora. E pousando o ferro de novo, vai lá lavar-te. Depois, vestiu-me a bata, passou-me o pente molhado no cabelo e fui buscar a mala.

Dei uma corrida até à casa mais próxima onde a Liu me esperava paciente. A Liu chamava-se Leonilde, mas era tão pequenina que mesmo a professora aceitara o diminutivo por que todos a conhecíamos. A primeira surpresa veio-me dela, estava acompanhada. Quando me aproximei vi que, suprema elegância, a garota usava óculos. Ora, não havia na povoação quem usasse tal artefacto. Apesar do seu inédito, verifiquei que não saía muito beneficiada, o óculo do olho esquerdo tinha a lente tapada e dava-lhe um ar esquisito. A Liu apresentou-nos  no acto, ela chama-se Teresa e vem para a nossa escola. E antes que eu abrisse a boca, a Teresa sorrindo, sou a neta do Pelinhos e agora sou vizinha da Liu. E a Liu muito ancha, a minha mãe alugou metade da nossa casa. Minha avó contava que o pai da Liu tinha morrido de doença ruim quando ela era pequena e a mãe a criava sozinha e trabalhava em dobro. A mãe da Liu que corria de um trabalho a outro, umas horas aqui, outras ali, era mulher para todo o serviço e eu via-a pouco. 

Começámos a andar e não resisti, por que é que tens isso nos óculos. A Teresa olhou-me do alto da sua brancura escanzelada, lançou mão dos óculos e disse, olha lá para mim – e sem transição – tenho a vista torta e preguiçosa e por isso é que o médico tapou a vista boa, assim esta tem que trabalhar. E, na surpresa do nosso queixo caído, foi-se à lente tapada e destapou-a. Estão a ver, é uma borracha; tira-se e põe-se, mas a minha mãe não quer, diz que relaxo o elástico e que me dá uma sova se ficar largo. E lá fomos as três muito orgulhosas. Eu e a Liu, por levarmos ao lado a novidade; e ela, impando nessa certeza.

sábado, 17 de abril de 2021

Sombra Chinesa

 

Quando a manhã se insinua já eu estou em mim, apaziguado o mundo dos sonhos de que regresso incógnita e sem idade, no desvario de não saber onde estou, ou mesmo o que de mim existe para além da cartesiana certeza  de que penso. Nesse breve hiato que vai do inconsciente à consciência, não me existe lugar e nem um conjunto de certezas que me garantam. Mas tão pouco me importam. Contudo,  intuo à posteriori, não é amnésia ou outra patologia da memória; que essas, a espaços ou no absoluto de si,   engolem o pensamento como o conhecemos. E já frisei, não me sei, mas penso.  É com o pensamento madrugador que varro cerradas névoas e me vou reapossando da circunstância e de mim.  Vêm estes irrisórios a propósito do que vou contar. Porque, a cada dia, mal dou por mim no que sou hoje  - e, bem o sei, sou cada vez menos -, vem-me, irreflectida, a mesma história. Por certo quer ser contada antes que tudo esfume. Viajou-me os interiores durante décadas e faz-me companhia quase desde que me lembro.   No caminho, tocaram-na ventos diversos, a vida tingiu-lhe os acontecimentos e a panóplia está hoje muito mais composta. Admito até a inadvertência de tê-la enfeitado um pouco, a memória inscreve seus arabescos sem pedir licença. Dei-me à liberdade de preencher lacunas que são apenas inferência e dedução. Espero na compreensão do leitor e arde-me o desejo de não manchar com ela as personagens e a história que viveram, e de que resta apenas um simulacro encanecido e cadavérico, acoitado a cadeira de rodas e esvaído de si.

No mundo miserável em que cresci, havia a bebida dos homens e as tabernas abertas à borracheira de fim de semana ou à agrura metódica que os visitava nos dias sem trabalho. Horas e horas de álcool descambavam em brigas que se resolviam em desespero de pó e murros na rua da taberna, ou se faziam caseiras em aflita gritaria de porradas sem motivo em mulheres e filhos; havia a angústia semanal - e se não me escolhem -, encostada na parede da única praça e contratada à jorna a cada segunda feira pela omnipotência indicativa de capataz ou patrão, tu, tu, tu; havia a conta na mercearia que abatia a cada semana, mas não cessava de crescer e só saldava na época das vindimas. Contratados, homens e mulheres migravam às vinhas, trouxa às costas como ciganos, dormindo em barracos de forragem e gado, em busca de melhor soldada que apagasse o cão na mercearia, que já levava verso e reverso no livro dos assentos de fiado; e havia a imensa, a enorme solidariedade feminina, que não inibia a má língua, o diz que diz, e permitia até o volume alentado e fedorento da calúnia. Esta história vem desse poço sem fundo que eram as relações de vizinhança, uma espécie de irmandade extensiva e problemática que tanto absolvia como enciumava, que admirava com o mesmo ímpeto com que escarnecia, e apedrejava sem dó quem antes acarinhara.

 

quinta-feira, 15 de abril de 2021

A Poesia das Manhãs

 

O território das manhãs, como provavelmente outras partes do dia, é distinto. Escrevo-o pensando, por exemplo, em Sophia. A poeta levantava-se, expressamente, para ver nascer o dia bebendo chá, alma e corpo mergulhados na meninice da manhã. E só depois voltava a adormecer (imagino até que tanta vez a manhã a encontrasse insone). Porque há poetas que são outra gente, não levam os filhos à escola; não os vestem nem penteiam, não lhes colocam o lanche na mala ou mochila. Delegam (alguns podem fazê-lo). Têm outras preocupações.  Atendem a musa na hora que lhe apeteça chegar, dançam pela noite imersos em exclusivas felicidades, contemplam a maravilha originária de cada dia que acontece, gozando em pleno do amoroso alvor da luz sobre a terra, alheados de tanta preocupação que o dia carrega. Os poetas nascem para viver naturalmente o particular do seu alheamento, ainda que não se alheiem da vida. Da poesia nos vem o que mais se assemelha à verdade, prova irrefutável da sua atenção ao mundo.

Contudo, a manhã de gente vulgar é outra coisa. Para a maioria, poeta ou não, é um corre-corre até ao emprego. Que aumenta, se há filhos; têm de entregá-los já prontos a avós, amas, vizinhos, OTL, escolas. E, portanto, a norma é não ligar às manhãs que nascem, senão para saber o que vestir às crianças ou se põe gabardine ou casaco e leva guarda chuva; e ainda, se deve sair mais cedo, dado que o trânsito empanca nas manhãs chuvosas. E o dia nasce-lhes assim, privado de poesia. A claridade solar apanha-os nos transportes públicos onde seguem amortecidos de sono e cansados da corrida caseira, no carro onde se enervam aguardando o semáforo verde enquanto os minutos desengalgam, na varanda de casa enquanto estendem a roupa ou passam um chuveiro rápido. E não se lembram de olhar o céu, nem a beleza das manhãs lhes aflora mente e olhos. E talvez haja poetas entre eles, mas são os poetas da Luísa sobe que sobe, sobe a calçada. São outros poetas. Vêm de outro mundo. E a poesia visita-os na mesma. Acredito que percam muito poema porque estão a dar banho a uma criança, a ajudá-la a decorar a tabuada, a fazer o jantar, as camas, a preparar a roupa para o dia seguinte. Acredito que roubam ao sono muita hora e sofram acordares de impiedade depois de uma noite a afeiçoar palavras. Acredito que obrigam a musa a dobrar-se sobre si e a ser noctívaga. E quero dizer-lhes que os entendo desde as costuras do forro da veste e que não são menos poetas quando se armam de amor e paciência para serem pais, mães, empregados domésticos, filhos. E o mais. Sabemos todos que há muito poema sem palavras, amorosamente tecido à mão. Que nunca constará dos livros senão em pálida imagem.

domingo, 11 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Sentaram-se em conversa aturdida e, como leitor distraído passando folhas que não lê, assim eles abordaram família, amigos, projectos. O que quereria Alberto por detrás da tagarelice, nunca ela soube. Talvez não quisesse nada. Ela buscava o milagre, a esperança a emurchecer, fenecendo em arco silencioso à medida que o discurso corria.

 Há mananciais de água não potável. Talvez por acção dos lençóis freáticos que os alimentam, talvez por outro motivo. É água que adoece, pode matar. Envenena sem intenção que, de si mesma, sabe apenas que é água. E foi um gólgota. Deu por si no caminho que repudiara, subido na auscultação de palavras e gestos, que as pessoas se carregam inteiras e são comboio de muita carruagem. Com elas trazem família, meio, vícios, virtudes. E o mais.

Havia sol na cozinha de muita luz, ele sentado, as traves das pernas estiradas, quebrando o dominó do chão. Na sua frente, do outro lado da mesa, ela encolhia e hipnotizava na movida da poalha iluminada. Sabia já que era definitivo, não voltariam a estar juntos. Talvez as partículas que dançavam fossem pretexto, sugestão do eterno vaivém da vida. Ou fosse ali, no pedaço soalhento da janela, em claridade inegável, que o impossível se plasmou. Então, foi içando as pontes que tinha estendido para ele, conversaram mais um pouco sobre assuntos inóquos e despediram-se como se fossem encontrar-se dali a bocadinho, até logo. Mas era um adeus. Não lhe contou do bilhete de identidade. Era recordação, coisa do passado que tomara para si. Fora-lhe entregue em mão. Expressamente. Pertencia-lhe.

Olhou definitiva a foto do garoto brilhando por detrás do plástico, vês, ficámos juntos e é fora de dúvida, guardei de ti a melhor parte. Deixei cair o Alberto e o Inglês, faziam-te falta para prosseguir viagem. Entretanto, amaste e foste amado, sofreste, gozaste alegrias e prazeres, erraste e caíste; e, como toda a gente, te levantaste. Guardo-te a imagem do barro originário e angélico, memória inocente de um amor. Um amor feliz. É assim que quero recordá-lo.

 Observou o céu.  O ar enchia-se de trinados e cumprimentos de asa. Era a hora azul. Levou-o para dentro, a aragem que se levantara molestava ambos, crianças e velhos são gente sensível. Depois, subiu a escada e devolveu-o ternamente aos abraços do diploma arborizado murmurando, é bom lugar para os teus sinais. E num meio sorriso, não esqueças onde moras e tens casa: pessoa x, rua da  memória, bloco do coração.

                                                         FIM

sábado, 10 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Se inquirido, “o inglês” encolhia os ombros e afirmava que os irmãos sempre o tinham chamado assim e depois vulgarizara.  Ela gostava do nome,  mas não o utilizava, parecia-lhe que o desenraizava. Dizia, não és inglês, chamas-te Alberto. E ele, Eu sei, pareces a minha mãe. E ria.

Anos depois, Alberto visitara-a uma única vez. A pedido. Lembrava as recaídas, a razão absurdamente engolida, ausência a latejar-lhe no sangue doloroso e o visco peganhento da saudade derramando sobre o inerte dos dias. Tão jovens. O rigor e exigência primaveris a percorrê-los. O amor em corações jovens é bebé, pena que um sopro derruba e, ao menor incentivo, se levanta.  Aguentava as crises sem queixas, sabia-lhes a necessidade. Mas há sempre a hora nona. Nela, a mente muda a agulha e inverte o sentido. Prevalentes, só a esperança a converter impossíveis e a crença no milagre. E Alberto disse, presente.

Chegou sequioso. Seria verão, talvez. Era verão. Ainda o vê destoar naquela cozinha de mulheres onde parecia caber a custo, copo debaixo da torneira. Ainda sabe a forma como, antes, se inclinou a molhar os lábios. Sorrira do hábito antigo, conhecia o gesto. Tanto o observara nos tempos de escola a debruçar-se sobre repuxos de jardim, antes de beber. Um ritual de purificação que lhe lembrava o lavar das mãos durante a missa. Ele bebia em longos tragos enquanto ela, sentada um pouco atrás, na cadeira junto à mesa, manejava sem arte o volante do coração desaguisado, um remoinho de arrependimento e alegria a atafulhá-la de dúvidas, para quê, porquê, de que vale. Indiferentes ao tropel, os olhos compraziam de encanto. Luzindo satisfeita tranquilidade, festejavam-no sem pudor e, como quem enfim encontra poiso, descansavam-lhe ternamente na figura. Anos sem se verem, tanto se afadigara a pôr quilómetros de permeio.

Da foto tipo passe, o garoto sorria-lhe confiante. Quantas possibilidades nesse sorriso arvorado por fotógrafo. Trouxe-o à rua. Mirou-o na luz natural e reconheceu, tudo que então a tolhera ou lhe parecera importante esvanecera, era agora quase nulo, perdida a força que o presente dá a todas as coisas. Mas a ingenuidade tem seu tempo e direitos e vai talhando rotas à medida que  arde, porque toda a vitória é, em simultâneo, uma derrota, pagamos uns aos outros pena, diria Anaximandro. Ou pagamos pena a nós mesmos e a eles.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Olhou em volta. Como soldados em formatura, umas sobre as outras, um monte de caixas alinhadas por tamanho e com etiqueta lateral, encostava na parede. Viera em demanda de uma peça de roupa desaparecida. O que ela sofria à roupa. Peças havia que, por pirraça, não apareciam em lugar nenhum e tinha de aguentar escapadelas irreparáveis. Eram saias desaparecidas durante um ano ou dois, blusinhas que emigravam sem data marcada, casacos de inverno que, apesar do volume, se escondiam sabe Deus onde, mas quase jurava que não em sua casa.  Puxara uma caixa ao acaso e prosseguiu contrariando a etiqueta  que  garantia, aqui não. Mas já a curiosidade a mordia. Levantou-lhe a tampa e lá estava o diploma da comunhão com a assinatura floreada do padre da altura e a fotografia de um anjo de pedra a que alguma brisa talhada a escopo e martelo tinha  feito esvoaçar o cabelo. Na mão de pedra, a hóstia parecia bolacha maria para desjejum e nada tinha a ver com a fina película que lhe sabia ao que imaginava ser bolacha americana sem doce ou cozedura, branca de cal e uns relevos desenhados que não chegou a decifrar porque a hóstia  se colava à língua e logo desfazia.  Esquecida já do que procurava, passava o contentamento de mãos e olhos por certificados e diplomas e ressaltavam-lhe memórias adormecidas, esforços empenhados que hoje consideraria improfícuos, mas na altura soavam sensatos. Foi nesse revivalismo que, sobre um certificado do Dia da Árvore, lhe avultou o Bilhete de Identidade do Alberto. E o coração já não um baque, mas uma moinha de saudade, um dedo em melancolia terna, descendo pela foto plastificada do garoto. O Alberto. De novo. O Alberto de apelido diferente dos irmãos. Quem concebera que aquela criança se chamasse Alberto Ângelo sem que a brevidade do nome tocasse de leve a progenitura. Quem. Talvez a mãe, uma madrinha jovem e crédula levada pelos anéis louros do querubim, uma avó cumprindo promessa. Mirava o sorriso confiante avaliando quando o teria guardado. Não que o tivesse esquecido, pessoas marcantes não se ausentam. Mas o Bilhete, por que o guardara. Quando. Tê-lo-ia feito nesse dia em que um desconhecido lhe remexera o passado levantando tempestades que preferia olvidar. Ou, sem morada certa, transitara da estante para o interior de um livro, do livro para o fundo da mala, da mala para a gaveta da secretária. Ou será que o olhava em noites de inumeráveis cansaços, fazendo-se mútua companhia. Um conjunto vazio o deles. Ela, espatifada de canseira; a foto, fixando o tempo sem volta e a que ela chegou irremediável e tarde. Não. Ela não era disso.  Contudo, os anos passavam e ainda o coração lhe subia na garganta e fraquejavam as pernas se um cotovelo, uma colónia, um cigarro, uma canção que ele amava.  Ainda esperava no impossível. Gente conhecida também se iludia e  decretava, vi a miúda do Inglês. 

 (cont)

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Foi no remexer de certa caixa onde convivia uma abundância de diplomas e classificações escolares que rememorou a situação. Reviu o ar intrigado da empregada em bamboleio cambaio até si e, num murmúrio, como quem enuncia senha secreta, minha senhora está ali um rapaz. Diz que tem uma coisa para si mas não ma quis entregar. E adensando o mistério, eu não o conheço, não deve ser destes lados. E ela, pois que venha. E quedou expectante, observando o andar trôpego da mulher que se afastava. Depois,  duas pancadas suaves. Ela, faça favor. E, no capacho, um jovem desconhecido, mãos e fato macaco sujos de tinta, as ondas escuras do cabelo em desalinho. Postou-se-lhe na frente entre o indeciso e o envergonhado, retirou qualquer coisa do bolso e disse, um dia destes andava ali junto ao rio e achei isto. Encolheu os ombros, já não serve, mas talvez a senhora goste.  Depositou um rectângulo sobre a mesa, cumprimentou e saiu fechando a porta. Foi pelo depósito e notou de imediato que era um Bilhete de Identidade. Virou-o. O coração baqueou. O Alberto. Consigo. Na sua mão. Tão bonito e tão criança. De bilhete na mão correu para a porta, abriu-a, mas eu…mas nós não…. E nada do moço. A empregada veio lá dos fundos a justificar, minha senhora, o rapaz trazia uma carrinha de caixa aberta, aquilo é pintor de certeza, as latas da tinta chocalhavam por todo o lado. E espreitando a rua quase deserta, olhe, já nem se vê. Voltou para dentro, bilhete na mão. Já na sala, deu-se à contemplação do Alberto infantil, o de antes de crescer, um sujeitinho que ela nem se dera ao trabalho de imaginar. E lhe sorria pacífico, um cacho de caracóis loiros a emoldurar o rosto. Um garoto que nunca sonhara e nem tentara conhecer, mas devia viver ainda no Alberto que lhe coubera. Como se pudéssemos amar apenas uma fracção da vida da pessoa, impôr-lhe o nosso limite, desde aqui até ali. Ela lembrava-o assim, no pedaço de tempo que lhes coubera. No tempo de jovem Alberto.  Mas esse aparava o cabelo tão amiúde que cerceava, quase na raiz, todo o anseio de caracóis. E agora sorria-lhe da infância encaracolada. Do alto dos seus oito nove anos, boca carnuda, sem malícia e ainda fora do tabaco de tanta companhia, olhos que se percebiam claros, a refulgir a luz da idade. E a assinatura desconhecida. Caprichada e em letra escolar. Simples e sem letras finais em cauda comprida. Alberto Ângelo.

(cont.)

sábado, 3 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Forçoso é reconhecer, as caixas que lhe acompanharam a vida não eram preferência. Quando não há móveis, carteiras, bolsas; quando a vida se faz no quase nada, há sempre uma caixa ou outra a guardar pertences. A caixinha das peúgas que a mãe pedira na mercearia, cofre de anjos da guarda e santinhos de olhos em alvo e açucenas na mão, convivendo com a mundana vaidade de pratinhas alisadas à unha, ufanas da sua lisura delicada. E as caixas de fósforos que guardava para os grilos apanhados pelos campos, uma paciente palhinha a ir e vir na lura, gri, gri, gri, gri e os crédulos insectos acabavam a comer pedaços de alface numa caixa com furos na tampa “para respirar”.  Transportava-os no bolso, tesouros puxados ao momento e a que acrescentava o extra exclamativo, e o que ele canta. E quando a alface seca, já farta do grilo, restituía-o à terra. Contudo, nunca a caixa dos sonhos lhe pisou a realidade. Tanto gostava de ter uma com duas bandas de papel de seda. Mas, que soubesse, só as combinações caras se acobertavam na glória cetinosa do papel de seda. E isso sim, era invólucro de categoria, fino. Infelizmente, as sortudas não as davam e repeliam trocas, antes se expandindo em explicações de primas e tias lisboetas, senhoras de luvas e chapéu que eram tu cá tu lá com  elemento tão mavioso. Havia sempre a caixa e a história da caixa que não valia menos que ela. Metia ruas com nome, prédios altos e atravessar o mar que era rio sem que o soubessem, coisa de muita água. E havia  um barco que, diziam, era assim como uma casa, tinha chão e  telhado, janelas, portas, bancos e tudo; e andava pela água como os carros nas estradas, sem ir ao fundo.  Está bom de ver que tanta novidade era conjunto de peso e içava a feliz utente ao pódio, subia na consideração geral.  Nunca ela beneficiara desse rasgão de luz, nenhum parente em Lisboa, ninguém que lhe viesse de fora da aldeia trazendo consigo uma boa história.

Depois, a adolescência fez nascer a caixa dos postais. Quantos postais guardara. De gente desconhecida. Horas a olhá-los amorosamente, a lê-los como se lhe  fossem dirigidos, vendo crescer a colecção. Entre tantos dizeres, mantém o início de um: “Inesquecível São”. Quem seria essa São impossível de esquecer, que teria sentido ao lê-lo. E, portanto, o “Inesquecível São” mora ainda nela pela estranha força que emana, quando, talvez, nunca a tenha tido na destinatária, ou sequer no escriba. Que tanta coisa se diz com palavras fortes como cordas de caldeiro e vai-se a ver, estica-se um bocadinho e logo a corda esfarela e é podridão. Mas, se pensa em postais ilustrados, não lhe vêm os que escreveu, vem-lhe, num ápice, o “Inesquecível São”, muito embora a ilustração se tenha perdido no vaivém dos anos.  E ainda pensa se essa mulher incógnita terá corado ao lê-lo, orgulhosa por ser tão presente na memória de um homem.  Se o amor a agitou com suas ondas concêntricas de grato bem querer.  Quem sabe, apenas repudiou o sentimento, vai chamar inesquecível a outra. Mas não rasgou o postal. Hoje, ela é, talvez, o único lugar onde, ele sim, se tornou inesquecível. Não sabe onde pára, esqueceu os dizeres e se o ilustrava uma paisagem ou era figurativo. Sabe apenas o nome e sua adjectivação.  Estranha força, a do leitor e das palavras nele.

(cont.)

 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Guarda-Jóias de Papelão

 

Sempre fora de guardar coisas em caixas. Vinha-lhe do tempo em que não havia senão o básico em casa e os brinquedos lhe cabiam na caixa de cartão do chapéu do pai. Um chapéu preto de feltro, aba revirada atrás e derrubada na frente. Achava-o bonito, uma fita preta a toda a volta. Contudo, se o pai o usava, tornava-se gente estranha,  alguém com certo ar de feira, um vendedor trapaceiro e brigão. De chapéu, o pai assustava-a. Porém, em cabelo ou de boné, voltava a ser o pai. Tomou medo ao chapéu invejado e nunca ela arriscou experimentá-lo. Secretamente, rodava-o na mão, embevecia na maciez do feltro, passava dois dedos na fita cetinosa e depois subia de novo ao banco para voltar a pendurá-lo no prego da porta do quarto. E ele ali ficava, polícia empertigado tomando conta da penumbra.

 A caixa dos brinquedos era a maior que já vira. À beira dela, as embalagens de sapatos minguavam. As mesmas caixas de sapatos que a mãe espalmava aproveitando para fazer palmilhas, ocupada a desenhar-lhe os pés com um lápis a toda a volta e ela a rir porque o lápis fazia cócegas, a mãe, está quietinha com o pé, não te mexas. Portanto, a caixa dos brinquedos era gigante e fazia as delícias das amiguinhas. Após a brincadeira, empurrava-a para o lugar, debaixo da cama dos pais. Por vezes, o embalo era excessivo e obrigava-a depois a aventurar-se naquele mundo de obscuridade, onde se sentia a violar incompreensíveis segredos.  Rente ao soalho, barriga no chão e braços esticados, tacteava arrastando o corpo ora na direcção dos pés ora na da cabeceira da cama, o nariz desagradado do cheiro a pó e suados cansaços que rançavam as palhas do colchão. Tocava no papelão e acertava a agulha, arrastava-se mais um pouco e, a mãos ambas, orientava a navegação da caixa no bafio espesso daquele mar de odores até a trazer à luz natural. Carregava-a para a rua e as outras garotas divertiam-se a retirar cadeirinhas e mesas onde ninguém cabia, chávenas que duas gotas deixavam rasas, pratos onde uma ervilha era demais. E ela a pensar para que serviam coisas tão pequeninas e por que seria que as outras meninas gostavam tanto delas. E para que queria bonecas que não falavam, não abraçavam nem faziam corridas, e apenas - algumas - mexiam as pálpebras. Tudo que podia fazer com elas era pô-las a dormir ou a acordar. Se a mãe distraía, dava os brinquedos a quem os achava bonitos, que a ela não interessavam. Talvez a mãe gostasse deles porque lhe ordenava que fosse buscar as mesinhas, as cadeiras, as chávenas e pires. Nessa época, desconhecia que a mãe fora também criança, uma criança sem brinquedos e de curta infância. Para ela, a mãe nascera mãe e seria sempre assim. O mundo da infância não pensa em crescer, cresce sem dar conta e não supõe mudanças, é um inalterável hoje.

(cont.)