domingo, 31 de janeiro de 2021

Os Dias Insensatos

 

Neste lago a transbordar de horas preguiçosas, procuro distinguir tempos e divido  as manhãs da rotina semanal em tarefas específicas,  arrumo-as. Na prateleira dos dias existem  horas de ir ao super,  limpar a casa,  fazer sopa, compotas, etc. Mas, talvez por não apetecer o recheio, por vezes, revolvo-me em horas transgressoras. Então, aniquilo horários e sento-me a ler. De tanto livro que li, não recordo uma lição específica, nem houve aquele dia gratificante em que encontrei o princípio que me serviu, estrela polar do meu norte. Os livros são desde sempre o meu escape. Recreiam-me. E, enquanto nos livros de estudo o que mais gostava era já ter estudado, nestes, compraz-me o durante, estar a lê-los. Tenho uma amiga que, após a leitura, elabora relações entre a história e a vida do autor, atribui às personagens um valor real (são esta e aquela pessoa) e faz ela mesma um livro dentro do livro, onde autor e personagens surgem num enredo quase maior que o escrito. Quando discutimos juntas uma obra - temos gostos literários bastante próximos e devo-lhe muita leitura -, fico boquiaberta com o que nela consegue descobrir e, para lá da banalidade,  pouco acrescento, ela interpretou tudo. Claro que não sabemos se as suas afirmações correspondem à verdade, mas admiro-lhe tal perspicácia. Mas, o ponto é que leio as histórias sem querer saber o que está por detrás da mão que escreve. Interessa-me o escrito, páro no improvável das metáforas e encantam-me certos parágrafos pela beleza ou realismo da descrição. Se, enquanto leio, estou lá com as personagens, depois disso, elas não me atormentam nem interessam. Passaram. Penso nos livros lidos como algo de que gostei ou não, sabendo porquê. E Ponto.

É certo, os livros abrem-nos a outros horizontes, mas, do pouco que vi pelo mundo, aprendi que nada é como ir e estar lá. Nada. A descrição, por melhor que seja, não provoca sensações e emoções idênticas a quem pode ver e passear pelos lugares. A realidade, natural ou construída, será sempre o grau máximo do sentir. Mas o que nos livros atrai os homens – os que escrevem e os que lêem -, arrisco afirmar, são as paixões humanas e a forma como cada autor, na sua época, joga com elas. Toda a escrita é forma de estar não estando e convenço-me que escrever seja a expressão mais comum da nossa periclitante eternidade.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Marasmo

 

Hoje ouvi uma poeta a contar que a escrita, mais que uma terapia,  é o seu momento de pausa e que lhe funciona como o tabaco para outros, parte o quotidiano e instaura um sem tempo. Ora, uma pausa na vida normal, penso eu, viabiliza  a realidade e é, também, terapia necessária, a vida torna-se melhor com ela, melhora o sujeito que a vive e torna-o mais apto. 

Não escrevo poesia. Mas a escrita aparece-me assim, um tempo de pausa terapêutica, recreio necessário.  E nunca entenderei a razão dos dias e dias sem palavras verdadeiras, dias de pechisbeque em que o espírito se recolhe e a prosa, se existe, é apenas raciocínio e dedos.  Acontece, nada no mundo é perfeito.

Contudo, os sinais estão no lugar: as horas digitais piscam igual e o gato recebe-me com idêntico espreguiçar langoroso. Lá fora, a rua endorminhada pasma para a humidade que infiltra  na abulia murada da cal, enquanto os beirais entrecortam lágrimas subtis, tímido desgosto de telhas envergonhadas. E o mundo é água e silêncio sem fundo animado. O dia clareia como quem ora, ou apenas alteando uma sobrancelha de costume. Nos braços paralelos e estendidos da estrada passeia uma solidão inconveniente. Mas, cá dentro, a vida afirma-se. O café sobe na cafeteira e, qual dama encalorada, gorgulha em breves volutas. E logo um oloroso e aquecido aroma engole a frieza da cozinha.  O resfolegar de um café ecoa na imaginação e acende não sei que artimanhas de companhia e mesa posta. Dispõe. Ou talvez seja apenas um doce prazer solitário, motor que, prescindindo da paciência temporal, suaviza os dias e os restaura. Parecem novos.

  

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

À Chuva

 

Bom, é sabido que os garotos gostam de usar galochas, calçado que suponho seja sinónimo de botas de borracha. Eu, por exemplo, só uso botas de borracha, não calço galochas, que é isso. Com pena minha, a iniciação fez-se já na idade adulta. Não sei que tinha minha mãe contra as botas de borracha que nunca me deu um par. Por acaso isto é só conversa porque lhe adivinho o motivo. Adiante. Pois, para me ajudar o espírito a regressar, que às vezes me emigra sem destino certo e fico destituída de ser eu sem que possa ser outra e me arrasto como  amiba ou paramécia, mas em pior por ter moitões de abúlicas células esparvecidas, comecei a manhã com o pequeno almoço das sextas. Sem troca de dias. Grandes males pedem grandes remédios: amanhã vai ser sexta e cumpre-se o veredito. Biso. Ora essa.

E é claro que chovia. Porque sim. Porque Deus Nosso Senhor mandou chover. Ou a meteorologia com nome de flor. Ou o que for. Por acaso. Chovia, é o que interessa. Portanto, calcei as botas de borracha cujas são uma canseira para descalçar. Avante, que ninguém precisa saber das minhas figuras tristes para pôr os pés fora das botas. E levei o guarda chuva. O maior. Ninguém na rua. Nem cães. Nem gatos. Nem. Só dei pelos pássaros a cumprimentarem-se de dentro das ramadas dos pinheiros, diziam eles cantando, bom dia, já viu o que nos espera. E o vizinho a pôr o bico fora da cama, num pipilar entornado de cuidados, ai, que escuridão por aí vem, tudo encharcado, não deve haver semente que me sirva de almoço (isto porque os pássaros são frugais e saltam o pequeno almoço). E eu cá em baixo toda contente a pisar sem distracção, bem no meio das poças de água. Só não pulei a pés juntos como os invejados colegas da primária. A gente desviava-se dos respingos de lama, mas levava sempre uma ou outra sarda areada no branco da bata e as mães, olha bem para este esterlaio (termo mais estranho, até me ofendia, palavra). E os das botas numa indiferença orgulhosa, sublinhando de viva voz em novo pulo chapinhado, não entra nem uma pinguinha de água. O ponto é que, as poças do meu caminho eram um nada, não mereciam a chafurdice. Quando acontecer há-de haver assim um lago, atiro-me lá para dentro e salpico-me toda. Ok. Exacto.

E até amanhã se Deus queira. Que eu quero.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Derivações

 

Ficou-me de tempos antigos o horário de fim de semana. À sexta trago a casa à ribalta ,penso nela, arejo, limpo (sempre com um café em cima). Então, o propósito era amenizar o fim de semana. Que acudir a roupas, refeições e tanto mais, evaporava a leveza sonhada para o dia de sábado, e os domingos eram um corre corre que entrava noite dentro. Raro via tv e não havia série que conhecesse. E conto-vos isto apenas porque, matinal, me dispus a ler a Visão. Agora que as corridas dominicais terminaram e o tempo desenrola devagar, tornei-me luxuosa e dada a pequenos dislates.   Foi assim, imersa em preguiça dominical, que li a entrevista a um professor universitário, um psicólogo que é também escritor: Luís Fernandes. Fiquei fã. A cegueira incentivou-o a explorar novos campos, a massagem como exemplo. Mas o melhor é lerem a entrevista porque me cinjo à frase que a jornalista Clara Soares (suponho que tenha sido ela) destacou e que copio em parte, “a experiência do confinamento é muito dolorosa, sobretudo para aqueles que vivem subterrados em estímulos.”

Ora, não têm conta os adjectivos que existem para catalogar o confinamento: prisão; prisão dourada; espaço para fazer coisas novas com a inesperada bolsa de tempo: tempo para cuidar de si e da imagem (emagrecer, engordar, essas coisas), tempo para os filhos, a casa, o quintal, os apetrechos de férias, ensaiar a caridade tecendo para outrém; sei lá. E os exemplos positivos com que os media, nas suas várias versões, nos têm bombardeado. Este mundo e o outro estão cheios de gente meritória que pouco deu pelo confinamento por estar entretida a conversar dentro de portas, a jogar, a entender-se com filhos e companheiros, a experimentar receitas e outras manufacturas. Pessoal que  optimizou o ser refreado e tirou dividendos físicos, psicológicos e até monetários (houve quem mudasse de profissão e se desse bem). Gente que se fez a si mesma mais feliz e estendeu o tapete do bem estar aos outros.

Talvez por ser do contra, soube-me bem ler a afirmação do professor, que o confinamento é muito doloroso. Porque é. Claro que estamos em nossas casas e não nos faltam os bens de primeira necessidade. Mas a nossa prisão não é sempre dourada. Nem quase sempre. É às vezes dourada e apenas para algumas pessoas. Serão essas as afortunadas, as que melhor sabem viver, as que aprenderam a lição com os erros e dão a volta por cima, as que, quiçá, sejam puras e inocentes. Tenho um imenso prazer em saber que existem. Acaso da fortuna ou mérito pessoal, têm a minha vénia. Mas não me lixem, para os eternos inadaptados que são a grande maioria dos homens, qualquer confinamento é em si mesmo um mal. A falta de liberdade e de contacto com os outros não pode ser um bem. E a necessidade não elimina a coerção. Levamos com calma, mas é coerção. Que, mais que ela, arde-nos a incerteza do porvir. Inquieta. Não é auspicioso que ele dependa tanto do mundo da ciência ou de qualquer outro pequeno mundo. Em tudo, elegância e equilíbrio são necessários.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Torto Arado

 

No gelo dos dias em que tudo condensa e solidifica, porfiamos por conservar o calor. Do corpo e da alma, que um sem o outro de pouco valem, desequilibramos. E, se a panóplia de aquecimentos vai amenizando o corpo, os livros agasalham a alma. Portanto, leio. Torto Arado é romance de Itamar Vieira Júnior que desenha a vida difícil dos negros no submundo das roças, passando-a com arte ante os nossos olhos, como em filme. Nele “vemos” o sofrimento das comunidades quilombolas recortado a letras e frases às vezes pontiagudas e a rasgar, outras apenas uma frescura de linho áspero e forte e, em algumas, a lisura de seda roçagante. Ali sabemos de gente dita livre, mas que era vendida e herdada com a terra que cultivava sem que nada lhe pertencesse; gente sem paga pelo suor que florescia e dava fruto na terra, a mesma terra que a alquebrava e apodrecia depressa. A paga, assim o entendiam os donos das fazendas, consistia no “favor” de deixá-los erguer suas efémeras casas de barro e tomar a seu cargo um bocado de terra que cultivavam nas poucas horas livres que a fazenda do senhor lhes deixava e de onde se viam obrigados a tirar sustento, dando ainda parte ao proprietário ou a quem o representava. É assim a civilização, chama caridade e boa acção à exploração do homem pelo homem. E impõe-se mantê-la, mesmo em desobediência à lei.

Sinto alguma dificuldade em contar a história de um romance. Gostando, tudo me parece importante, colo a mil pormenores. Nesta obra, as personagens centrais são duas irmãs e seus caminhos. Contudo, parecem-me pretexto bem urdido e até original para contar a vida escrava dessa gente batalhadora e originária de África, capturada e feita escrava no Brasil. Em grande parte, o fim da escravatura foi coisa assente no papel, mas que não se inscreveu na vida destas comunidades. O que me surge como centro é antes a viagem desse povo unido entre si, desde a submissão escrava à revolta insubmissa, passando pelo explanar da sua cultura: a devoção particular e muito própria; mezinhas e crendices; os curadores que tentavam alisar a vida, torna-la mais vivível; a importância das divindades que encarnavam ao longo dos preitos de homenagem em festas específicas.

A leitura do livro dá conta da profunda religiosidade que acompanhava o povo nas tarefas mais rotineiras recordando os gregos antigos, “tudo está cheio de deuses”. Quem sabe, todo o princípio se assemelha e, quiçá, seja mais próximo da verdade que o mais elaborado pensamento. Mas este não é o meu assunto.

 Destaco ainda o sofrimento das mulheres.  Como se não lhes bastasse a sub condição comum. Subalternas num mundo macho, envelheciam rápido, sujeitas a seus homens que, por malvadez e fraqueza - a cachaça levantava muita mão -, as moíam de pancada e enchiam de filhos e trabalhos com muita dobra. Ou, como sucedeu com uma das manas, eram apenas  má gente, sujeitos intragáveis que as não mereciam.

Digo do que li: há muito a esperar de Itamar Vieira Júnior.

 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Dicionário da Linguagem das Flores

 

Terminei Dicionário da linguagem das flores, o último livro de Lobo Antunes. Tem a marca inconfundível do autor e dos  labirintos a que nos habituou e é um dos motivos a chamar-me à sua escrita. Mas há outros, que  quem gosta, gosta sempre e não apenas por uma razão. Agrada-me o universo em que se move para criar histórias, o vagar com que vai desenrolando esse mundo de pobreza mediana, ou, se quisermos um termo mais actual, a classe média baixa que vai crescendo e engorda a maior parte da sociedade portuguesa, patamar  que o escritor parece conhecer quase tão bem como eu, ainda que não lhe pertença. Quem sabe, esse mundo comum ronda a cabeça de toda a gente, mesmo dos donos de grandes quintas e solares, dos senhores de outros e destes tempos, das damas com mãos de flor a amparar  pregas de seda por detrás dos vidros. Gente incomum e de pérolas ao pescoço que possuía criadas de fora e de dentro, fardadas e de crista,  bandeja sempre alerta. Seres que esvaneceram. Era o tempo do trabalho rural do nascer ao pôr do sol, os trabalhadores pondo o esforço do corpo à venda na praça, chapéu na mão. Ofereciam-se por dia, semana, época. E quanta dificuldade sem paga. Viviam isentos de benesses, caixa, reforma, férias. Nada, além do pagamento contratado. Era o tempo dos declarados senhores. Mandavam à praça o capataz enquanto eles vogavam no banco traseiro de carros luzentes que motoristas encartados e trajados a rigor, conduziam em cuidado silencioso de máquina. Robots humanos. E depois esse mundo de ontem mistura com o de hoje, mas o que me fascina são as expressões utilizadas, as frases ditas, os pensamentos que se ouvem nas obras de Lobo Antunes e, independentes da classe social, são todos pão da boca do povo. E creio ser a sua grande homenagem aos portugueses de meia tigela, aos desvalidos da sorte, a todos que a vida castiga ou se castigam a si mesmos, o pensarem e sentirem de igual modo, usando as mesmas palavras; nelas, todos os homens se igualam. É talvez por esta razão que não há livros que me surjam mais humanos.

Este dicionário especial tem um lastro mais vincado de ternura. E até a ironia que o percorre é meio terna, como se haja no autor um sorriso de compreensão e amizade. Afirma o escriba que a sua escrita é sofrida e lhe dói. Será verdade, mas vou sempre acreditar que também se diverte e há um lado de espontânea ternura que desata e vai entornando pelas páginas.

Creio que esta história, ou melhor, o fulcro ou motivo da história, é Júlio Fogaça e a rejeição de que foi alvo nas altas esferas do partido comunista português quando já pertencia ao comité central. Motivos: o facto de ser homossexual e também a abertura política que defendia. Júlio Fogaça é pretexto e homenagem de Lobo Antunes que o toma para recriar o seu mundo próprio. Mas não  sei se poderá existir melhor interpretação do drama. Talvez pela ternura que desprende, parece-me que este livro foi escrito com palavras e expressões preciosas, daquelas que, por serem de primeira água, dificultam a escolha. Mas, já quase no fim, pág 362, lembrei-me de sublinhar um bocadinho. Garanto, não é o melhor. No entanto, aconchega. “(…) que deliciosa tragédia a afeição, que felicidade de pássaros que voltam estar ao colo de uma mulher crescida que nos protege dos tremores de terra e das vespas, nos chama

-Menino

E a gente, cá por dentro, um alvoroço de beija flores felizes, a podermos dormir, devagarinho, num colo que cheira a refogado e a ternura, que é a mais doce combinação do mundo (…)”

 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Flores em Papel

 

Comprei o primeiro diário de Adrian Mole na segunda metade dos anos noventa. Era, então, uma quarentona despachada. Apesar do despacho fui atrasada em tudo excepto a falar, o que me leva a supor que a leitura das crises da adolescência vieram no tempo certo. Hoje, acho que, nesse tempo, era jovem. E isto porque não tenho memória de me demorar a pensar na idade, razão que atesta a tal juventude atardada. Ora o livro entrou-me na vida porque, armada de pedagogias maternas, tentei estimular o interesse pela leitura num dos meus garotos. Propus leituras entremeadas (eu e ele). Manda a verdade dizê-lo,  Sue Townsend não teve efeitos visíveis. O garoto aborrecia os nossos momentos de leitura, punha olhos revirados de santinho de pagela e tentava escapar-lhes. O livro não o conquistava e eu era uma chata sem tamanho. Suponho que não o concluímos juntos, incomodada pelo seu mal-estar, mandei a pedagogia dar uma volta e libertei-o.  Ele não voltou a pegar no livro, mas eu adorei a crise dos treze anos e três quartos de Adrian Mole. Li e reli. Aos bocadinhos. Quando o trabalho não corria como queria. Apenas para ficar bem disposta. Para dormir desanuviada.  Fiquei fã da família e da Gafanhoto; do adolescente e dos seus problemas, alegrias e preocupações, era garoto de boa índole e bastante assertivo para a idade; dos pais e das suas idiossincrasias; e até do velhote (seria Baxter?) e do seu cão; Adrian ajudava o primeiro e passeava o segundo. 

Sue Townsend conquistou-me pelo estilo desinibido e certa candura trocista e bem humorada que soube imprimir aos livros. Não faço ideia de como são os adolescentes ingleses, mas Adrian Mole é, fora dúvida, um bom rapaz que, para lá das questões da idade, preocupação com raparigas, borbulhas, sexo, a paixão assolapada por uma garota, é bem formado. Lembro-me de ter pensado que os adolescentes portugueses não seriam tão altruístas quanto Adrian Mole e que ele me parecia por vezes ser o mais assisado da família. É claro que comprei todos os outros livros onde Adrian Mole foi crescendo. Que não interessaram a meus filhos. Mas estou em crer que, num ano que está a começar malzinho e com o fantasma de novo confinamento à beirinha de nós, não seria má ideia começar a reler os treze anos e três quartos de Adrian Mole. É-me simpático. Descomprime. E precisamos de sorrisos vindos de dentro, inocentes. Quem sabe nos resgatam.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Avenida Beira-Mar


         A avenida principal, Avenida Beira-Mar,  é um espaço amplo que liga a cidade de Fortaleza ao mar.  De um lado desmaia na água em jeitinho de gente que enfim descansa e “chega em casa”. Do outro, o calçadão onde vagam andarilhos batidos de sol. No chão de árvores frondosas e verdes exuberantes, há frutos caídos e esmagados pelos passantes e somos invadidos pelo odor característico de uma frutaria. As palmeiras sinuosas quase não bolem no langor da aragem e a noite suada da feirinha cheira a trópico e fruta madura. Noite ou dia, os homens juntam-se em cachos pequenos a gozar a cervejinha gelada, enquanto nas barracas, mulheres que são por certo as suas, vendem quanto podem e sabem, voz baixa e sem esganiçamento, a sugestão toda no timbre. Lá à frente, talvez a meio da sua extensão, a escultura que representa a índia Iracema e seu português, cena doméstica inspirada nas descrições do escritor José de Alencar. Iracema domina a cena. De pé, esbelta e desproporcionada em sua grandeza, mas ainda assim linda como não são as mulheres de ascendência índia em Fortaleza. Ao invés delas, Iracema é sublime portento. Tem a pose de quem está não estando, o olhar esmiuçando os longes marítimos que lhe trariam o português. Iracema virada ao íman marítimo e tão mulher na busca do que não há. E o português sentado a seus pés; suponho que assim figurou o artista a saudade da índia. No colo da mulher, um cesto com o filho dos dois. Quem sabe Iracema procura com seu longo pescoço afilado o português que lhe falta. Talvez o escultor tenha querido mostrar nesse esforço longilíneo de ver para lá do horizonte, a imortal  liberdade índia que esmorece nas dobras do amor. Os olhos de Iracema não encontram o que procuram. Na composição, o português é traço menor, figura sentada que descansou dela sem que, imaginamos nós, nunca nela tenha descansado. Mas não lemos José de Alencar e, portanto, podemos pensá-la saudosa do seu povo, desanimada até. Iracema, que José de Alencar conta que desapareceu ou morreu de tristeza devido à ausência do português que por certo, como acontece em madame Butterfly, voltou para casa e esqueceu. E ali está devorando distâncias, olhos em ânsia, cabelo lançado ao vento que arrepia a pele do mar. Espera um barco que não chega. Iracema a quem o tempo engoliu a alegria. Iracema a de longas pernas, músculos treinados a trepar a altura dos morros para enxergar melhor. Iracema que esperou no português o que ele não tinha e morreu em  atropelo de desamor. Ou voltou para o seu povo que é outra forma de morrer. Martins Moreno, o português de Iracema, é figura pequena, nunca cresceu.  Mas a índia abandonou o seu povo por ele e com isso mudou alma e corpo. Agigantou e é hoje a mãe universal de Fortaleza. Diz o povo que ela e a sua descendência deram início à cidade.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Incómodas Convergências

 

Praia de dunas altas, areias sinuosas de deserto onde o turismo se infiltra impiedoso. São os passeios de buggy incluindo emoção de compra, quase a metro. A aquisição de viagens inclui três variantes: muita emoção, emoção média e de intuito paisagístico. Para os menos abonados, há também subidas difíceis ao morro para depois, a prancha a fazer de escorrega, desaguarem na água da praia, um caldo barrento que não apetece. É caricato e até um tanto confrangedor observar os turistas que alinharam na subida, empancarem na areia a arfar de cansaço e serem empurrados por locomotivas-criança, menininhos que carregam as pranchas em calção, mãos e força pronta. Mas somos todos contra a exploração infantil e eles até nem parecem contrariados, estão sorridentes e de boa mente, certamente recebem paga pelas “ajudas”. Talvez tenham faltado à escola, mas isso que importa, é só um dia, sobra-lhes muito tempo para aprender.

E, porque nos encontramos no calçadão, na praia, na Avenida Beira-Mar, no hotel, constato que os homens de meia idade chegaram sós, mas, passadas horas, passeiam  de amarração com sorrisos morenos quase infantis que alugam, desalugam e trocam quase diariamente. E descansam, nada de assédio sexual, são elas oferecem e consentem, divertem-se a divertir passarões portugueses que, provavelmente, deixaram em casa a mulher a cuidar dos filhos. Mas, aqui, fazem de magnatas e exibem a babada vaidade parola de conquistas brasileiras. Foi assim o caminho dos dois exemplares que viajaram connosco e a quem ouvi, ainda no avião, tentando impressionar a jovem universitária que seguia ao nosso lado, que eram empresários e vinham a negócios. Estes somos nós, habitantes do “primeiro mundo”, os que não têm hábitos de violência e precisam ser protegidos por polícias armados da vagabundagem brasileira, dos assaltos de ladrões de ruas e esquinas terceiro mundistas. Um primor.

Foi um Brasil pobre e alguns portugueses de latão a imitar ouro, que, por coincidências da sorte e sem escolha, me foi dado conhecer. Mas, tal como os romances desventurados vendem e perduram mais que os venturosos, assim eu recordo a perplexidade que me acompanhou nesta viagem onde nada de grande me esperava. Uma vez no Brasil, peça a peça, a realidade desmantelou a fantasia.

 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

O Primeiro Olhar

 

Acima das nuvens, rente ao azul. Em baixo, farrapos de terra, carpetes solitárias no imenso mar. Navegação alada que  desafia o canto primeiro. Pairamos sobre a noite da cidade. Lá em baixo, a escuridão de rectângulos minúsculos desenhados a luz. Fortaleza é geometria ocular contornada a eyeliner luminoso. No interior de cada rectângulo, a ignota escuridão brasileira acrescenta o mistério da noite. Há-de haver homens no escuro, riso e choro, suspiros e roncos, angústias animais, gritos lancinantes de ambulâncias, vidas que se vão e outras que chegam. Visto do ar, tudo é breu. À saída, o ar quente bate no rosto desde a manga do avião e o corpo descomprime, alarga, sente que existe num espaço diferente. Na rua,  o odor forte a fruta madura que fermenta anuncia o peso dos trópicos e o suor saturado do termómetro. Depois, o hotel fortemente policiado e a percepção de que a vida se desenrola quase toda no seu interior. Amplo e arejado é reduto do dolce fare niente, um artifício onde o turista pé rapado se sente rei e ordena. Juntou subsídios, apôs economias, comprou roupa leve e garrida. Chegado ao hotel, compreende que ganhou direitos novos. Pede bebidas geladas no quarto, acrescentos de pequeno almoço desnecessários que nunca em outro lugar comeu de mesas tão recheadas, experimenta o whisky servido dentro da piscina, as massagens e os encantos da beleza feminina e virtuosa no spa, os vapores oloríficos de sessões de relaxamento entregues a mãos de fada e perfil de miss. E o brasileiro melífluo e acrescido de sorrisos, ajoelhado, servente que secretamente desdenha a quem serve, sim senhor doutor, como o doutor quiser. E,  aproximando-se humilde, a senhora não bebe uma água de coco  ou assim, estou para a servir. E os europeus democratas, exigentes de direitos e deveres iguais entre os homens, esquecem o que são e viram-se decididos para a autoridade e o sistema de sociedade vertical que tanto usam criticar. Deram por si no cume da pirâmide. Na vertigem do lugar, nasce-lhes certo paternalismo irritante e falso que mina ainda mais a relação com o autóctone. Brasileiro e português fogem de si mesmos. O primeiro finge ser humilde servo; o segundo puxa pelo patrão autoritário que dorme dentro de si e recria-se: rico, ocioso, banhado em prepotência paternal. Convicto de ter chegado ao terceiro mundo, não nota a identidade que trouxe e o marca e assemelha.

O hotel é teatro faustoso onde todos os personagens são maus intérpretes. Mas cá estou.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Gatices

 

Para mim não há dias e noites, há horas de refeição. É a essas que mio como se me pisem os calos que não tenho. Portanto, fica assente, existem-me uns períodos de sossego que passam num rufo, só sei que adormeço na almofada e começo a espreguiçar-me ao som dos passos na escada. A mim parecem dois factos encadeados, mas posso estar enganado que, como já disse, o meu relógio é o estômago.

Depois dos passos, ela abre a porta da copa e acende a luz. Mas já eu estou alerta. E é consoante, ou me pega ao colo enquanto sobe as persianas ou me faz um carinho e passa à frente. E sei que vou tomar o pequeno almoço. Ando por ali ensarilhado nas suas pernas até que me alimente. Devoro tudo num instante e, em silêncio, vou cirandando pelos pés do banco alto em que se senta. Aprendi a respeitar esta meia hora de ainda silêncio e desanimo um nadinha se, arrumada a cozinha, não me deixa subir e acompanhá-la. É que adoro afiar as unhas nos edredons e dormir sonecas aconchegantes. Quando desce enchumaçada, nem um, anda gato, lhe oiço. A disfarçar o desalento, finjo que durmo e, logo que o trinco da porta se cala, amodorro no silêncio e embalo no sono. Nada me importa o que ela é quando não está por perto, a bem dizer as pessoas só me existem pelo olfacto, pelo tacto e pelo olhar. Fora da presença, acho eu, deixam de haver. Quando ela se materializa de novo, se me diz, anda gato, lá vou saltitando ou em corridinhas. Adoro que vá ao sótão das caixas e caixotes. Esgueiro-me por entre aquela balbúrdia empilhada e até me esqueço de descer. Por vezes passo horas a miar à porta fechada e quando ela chega usa uns olhos quase tristes que logo troca mal me vê.

A rua encanta-me. Há árvores para subir e um intrigante animal que se queda a olhar-me perplexo. Rodeio-o. Não me afasto, mas também não o deixo alcançar-me. Estranhamo-nos um ao outro  e o barómetro que tenho na cauda  avisa-me do perigo. Gosto de subir ao arbusto que cresce perto do bicho e ficar lá de cima apreciar-lhe a confusão do olhar perdido na minha desfaçatez trepadora. Tenho para mim que ele nunca será animal para descobrir o poder das minhas garras - a mania que a gente tem de pensar os outros à nossa imagem -, sinto que o desconcerto tanto ou mais que os pássaros a que ladra num desatino esparvoado. Não me parece grande esperteza, até já o vi ladrar a uma mosca.

Bom, a hora do almoço é atribulada, os cheiros acordam-me o estômago e surge a cantiga dos miados ininterruptos. Mas só tenho alimento quando termina a confecção. Podem pensar que os miados são um aborrecimento, e são. Mas, e a tortura que é o cheiro das refeições dos homens? Ah, pois. Eu é que sei o que sofro à mão dos odores que me escancaram o apetite.

Mais à tarde, se ela se senta, estico-me para o colo e são horas de deleite, estirado como um cação, respiração funda e prazerosa.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A Única História

 

É verdade que ainda nos entretemos a desejar maravilhas para o próximo ano, facto  que só pode significar duas coisas, ou um optimismo  indefectível e até um bocadinho parolo. Ou um forte desejo, mas com muito travo de descrença. E neste interim de nos auto convencermos da mudança positiva na conjuntura do mundo e, mais que tudo, na saúde dos homens, nesta esperança de que uma vacina mundial – nunca tal nos existiu – nos devolva o mundo conhecido, venho eu falar de livros. Porque, apesar de ter lido menos, sou como certo filósofo, prefiro pensar noutra coisa. Portanto, sei que li menos mas não me lembro do que li e, nem que quisesse, poderia fazer uma listagem. Li e arrumei. E terei preferido umas obras em detrimento de outras.

Ora acontece que me deram uma prendinha de Natal com antecedência e a abri devido à curiosidade do doador com a minha reacção. Portanto, aproveitei estar ali nuazinha e li-a antes do Natal. Surpresa agradável. Suponho eu nunca ter lido Julian Barnes. Lembro-me de ter andado em busca da obra “O papagaio de Flaubert”, de me dizerem na livraria que só estava disponível para compras on line e entretanto me ter passado. O livro que me ofereceram chama-se “A única história”. É um romance que prende o leitor quase à moda antiga e me parece abordar de forma algo original a solidão dos homens. É certo, tem personagens específicos, mas o que ali se retrata é o homem. Depois há afirmações que nos entram e como que encaixam, podiam ser nossas, “andamos todos à procura de um lugar seguro. E, se não o encontramos, então, temos de aprender a passar o tempo.” E sentimos que não é uma visão desencantada, é assim mesmo. A única história é, afinal, a história de amor de cada um, não é apenas a do livro, é a nossa, a que um dia vivemos, a que não vivemos mas sonhámos, a que imaginámos. Porque, como diz Julian Barnes, “mesmo que fosse um fiasco, que se tivesse desvanecido, que nunca funcionasse ou que, desde o início, fosse só mental: isso não a tornava menos real. E era a única história.” Bom, para além destas verdades há outras; e há também a história do livro cuja não vou desvendar nem de leve. Uma outra afirmação que gostei de ler, diz respeito ao valor da palavra, “as palavras, uma vez ditas, não podem desdizer-se(…) podemos declarar que tudo esquecemos, mas o nosso íntimo mais íntimo não esquece, porque nos transformámos para sempre.”. E depois há assim umas frases simples que nos comovem de tão necessitadas. Por exemplo, “onde estiveste a minha vida toda”. Ou, “Não me deixas já, pois não, Casey Paul”. E há ainda uma grande e herética verdade, bastante necessária ainda que pouco romântica, “conhecia a satisfação de sentir menos”.

Conclusão, encontro-me na disposição de vir a ler outras obras do autor.