terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Adeus a 2019


Há dois anos que comemoro a passagem de ano na companhia de uma amiga muito querida. Perdi-a durante cerca de quatro lustros (ena, tanto lustro). Entretanto, a vida acertou, desacertou, nasceram e cresceram filhos. De repente, resolvi, talvez em urgência de origem divina (acredito nestas coisas), procurá-la de novo. Encontrei-a em momento bem difícil, mas, nela mesma, igualinha a antes. Esta garota, com quem sempre sintonizei por sermos talvez almas gémeas, única lembrança que me comoveu e fez chorar numa aula - facto que a própria desconhece mas deixou os alunos estupefactos -, amenizou os meus dias e tornou mais leves e desejadas as idas à capital. Dela guardo ternas recordações, passou a ferro o meu vestido de noiva, acompanhou os meus dias de praia – temos insana loucura por imersão em água de mar –, cantou comigo as mesmas canções - literal e metaforicamente – a caminho da praia do nosso contentamento, jantámos juntas vezes sem conta nas cantinas da universidade e, durante anos, depois do lauto jantar de cantina, atravessámos o rio e passámos comuns fins de semana em companhia, feitos de penúria, cantigas (passou-me algumas letras como de Yesterday e Sounds of silence que ainda conservo), leitura e confidências. Pois este ano já eu desesperava mansamente (sou de desesperos não incomodativos) quando, eis que, no meu telemóvel que sofre de abandono sistémico, está um sms já com atraso. Dela. Que vem. Que o camarão grelhado. E tal. E que pode importar-me o resto?! Tê-la assim, à beirinha de mim, é cumprimento de desejo que já murchara. Viva! Iremos ambas a meu pai levar um mimo, vamos encher a cozinha com o fumo dos camarões, zelar pela frescura do vinho que não bebo, dizer baboseiras inofensivas e vestir-nos a preceito para o jantar (no ano passado envergonhou-me, a marota). A minha amiga é assim, aparece-me com roupas a preceito escondidas na malinha. Mas este ano não me apanha descalça. Isso é que não. E Viva 2020!!!
A todos os que passaram e pararam na minha janela. Aos perseverantes que me fizeram grata companhia. Aos que melhor me conhecem e sabem. A quem mitigou a minha solidão, me deu algum carinho e estendeu a mão
Muito Obrigada. E que 2020 nos encontre por aqui e nos reserve boas surpresas. Dentro. E, sobretudo, fora da net:).
Bem hajam

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Dia VINTE SETE


Todos os natais da nossa vida contêm pormenores que nos ficam: uns entram no saco das boas lembranças;  outros,  nem tanto.  
As lembranças deste ano:
 Uma jovem no lar dos velhos, fantasiada de elfo e a dar colheradas de papa a uma avozinha com cem anos. Cem, sim. Tem uns olhinhos fundos e risonhos que pisca continuamente, mete conversa com todos e nem sempre se entende o que diz. A mim já me perguntou se queria ir a sua casa (parece estar sempre de partida para a casa que já não tem). Admiro esta velhinha, tem um sorriso bom naquelas luzinhas frouxas em cama de pele enrugada. E é alegre, por vezes encontro-a a cantar e sorri-me sempre. Mas aquela que admirei e admiro é a garota. Lembro-me dela na escola, alta, meio tímida, enfiada. E ali, não. Ali é sorridente e compassiva, leva a vida a gargalhar e todos os pensionistas a gostam. Chefia o lar mas agarra qualquer tarefa, carrega os velhos para a cadeiras de rodas, leva-os ao refeitório e dá-lhes a sopa à boca, medicamentos, etc. Julgo que encontrou o seu lugar no mundo. Bem haja.
É uma venerável senhora beirando os noventa. Gosto dela por muitas razões e conheço-a desde que me me lembro de existir. O mês de Dezembro trouxe-lhe um impecilho de monta: caiu. E, apesar da fisioterapia, as artroses que a afligem há anos, lixam-lhe agora as pernas e comprometem a deslocação. Ora quando recebeu um mimo, não descansou enquanto o não viu, dedos a rasgar o embrulho e, à vista dele, sorriu inteirinha, experimentou-o logo ali e saiu a coxear apoiada na bengala, dizendo, vou ver ao espelho. E não parecia ter noventa anos, era só uma garota contente.
O terceiro pormenor chegou-me hoje num molho de confidências inesperadas. É sabido o quanto, por vezes,  nos atormentam as injustiças do passado (os actos injustos passam incólumes sobre o tempo, perduram). E que vida triste e revoltada há-de ter tido para assim desabafar comigo que não sou íntima. Lembrei minha mãe, “há pais desnaturados, não merecem os filhos que têm”. Foi o caso; que quem assim procede não é pai nem mãe, mas algoz. E ter dois esbirros em casa é forte influência; além de um penador.
Tudo o resto apaga, esquece. Foi mais um Natal. E um calendário.
                                                             FIM



quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Dia VINTE SEIS


No pós natal o calendário não me faz muito sentido. Já tudo aconteceu. Mas há uns restos que se agarram como rebuçado pegajoso. Fazer a troca das prendas que não serviam, que outra cor seria melhor, que. Lavar as toalhas onde se entornou o copo do vinho, cujo deve ser mesmo bom, a nódoa não sai nem por nada e só me falta besuntá-la com protector solar. Tratar do golpe que infligi a mim mesma quando me chateei de cortar apenas o ananás e ataquei um dedo inocente, facto que me pôs à Artur Semedo, só que em luva de látex  verde, afinal em nada comparável à classe A do Artur. Enfim, é tempo de pensar nas pequenas coisas que têm andado soterradas pela novidade natalícia. Isto tudo para dizer que voltar à rotina também dá trabalho. As coisas andam esgrouviadas e têm que assentar. E eu estou  de ressaca. Já escrevo, mas ainda não me apetece ler. Logo agora que ganhei uns livritos.

Dias VINTE e QUATRO e VINTE e CINCO


Pela primeira vez, parecem-me indistinguíveis os dias vinte e quatro e vinte e cinco. É certo que dormi entre eles, mas tão breve retomei  a maratona  que me parece, grosso modo, tarefa ininterrupta.   Eternizar-me na cozinha é sina da época. Limito-me a pequenas incursões pela sala, tão breves que nem sequer me põem a par do que, amenamente, se discute ao calor da lareira. Todos trajando domingo e eu de avental, cabelo preso não vá algum fio soltar-se onde não deve. Ora este ano devo ter-me portado pior, no dia de Natal nem sequer assomei à sala, não sei o que se discutiu.  Na cozinha, consegui a proeza de pegar a estadia do almoço com a do jantar. Sim senhora. Piorei substancialmente. E tudo por culpa dos fritos de abóbora que ficaram a escorrer (a gente tem de lançar culpa a alguma coisa, não é?). E escorreram, escorreram, escorreram. Porque os esqueci. E portanto, foi uma consoada sem eles. Mas, numa das manas,  eles são o sabor do natal. Portanto, combinámos que viriam lanchar no dia vinte e cinco. É que devo andar em fase de lesmice desgraçada apesar do inefável café, sem o qual, vejo agora, o meu ponteiro não teria aguentado a  velocidade natalícia. Senão repare-se. Terminado o almoço, lancei-me a arrumar tudo na cozinha a fim de preparar o jantar (havia novas visitas para a janta). Mas quando arrumei tudo e comecei o jantar eram horas de preparar o lanche. E chegaram as visitas do lanche. E lá saíram à cena os fritos de abóbora. De modos que, feito e saboreado o lanche, ficou aquela desarrumação na cozinha e na sala. E enquanto uns saíam e iam à sua vida e  outros se entretinham em amena cavaqueira com os que, entretanto, tinham chegado para a marcação do jantar, eu arrumava de novo e jogava-me a preparar a janta. Porque as mulheres – malditas mulheres – chegaram-me muito cansadas e exaustas dos trabalhos do natal e sentaram-se a conversar no que acho muito bem, se eu fosse visita faria igual.
E foi isto o meu natal. Digamos que me sentei às refeições (levantando-me n vezes, claro, o Ambrósio não sei dele, se calhar foi passar o natal a Itália ou assim). E julgo tão notório o meu cansaço que as visitas de dia de Natal – graças a Deus –, às vinte e três badaladas se despediram. E eu idem. Desliguei o motor e fui dormir. Desta vez, sem hora de acordar. E, apesar do café que sempre me tira o sono, neste natal não houve efeitos secundários: caí como pedra em poço fundo.
 Bom, é certo que ganhei uns livrinhos, os meus doces filhos são mesmo mesmo o meu encanto; e um guarda chuva esquisitíssimo que serve para trazermos e usarmos no carro e me parece um ovni. E uma blusa quentinha e larga, um conforto. E just.
Não sei se minha mãe e meu avô acorreram à chamada, não dei por eles. Mas gostei do jantar de consoada cheiinho de satisfação em volta da mesa. E foi um jantar alegre,  bom ambiente, mesa farta. Os mais jovens, contentes e lindos, madrugaram nos empregos para chegarem a horas ao  jantar. Uns queridos, eles.
E viva o Natal dos Trabalhadores mal pagos. E que, como diz Rentes de Carvalho no seu post, seja também assim no ano que vem. Mesmo que eu dobre a dose de cafés, estilo um extra a meio do dia:).
Magia acho que não houve, não foi um Natal de poetas...mas vou pensar melhor no assunto.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Dia VINTE e TRÊS


A ante véspera, que na verdade é véspera,  enche-se de corre corre. A que se supõe ser a última compra de Natal, preparar a chegada das visitas, recebê-las e acomodá-las;  fazer as últimas entregas de prendinhas, tomar tento no arroz doce ao fogão, a colher mergulhada no leite empastado de vagares que a mão orquestra. Com amor e o desejo de ouvir, está bom,  antevendo nos olhos o agrado do paladar. E mais que isto. Menos bonito. Mais esforçado. O jantar melhorado e em  companhia;  a preparação das carnes; a cozedura da abóbora que escorre noite inteira e amanhã  cumpre a tradição na  travessa de fritos.
E o basta do corpo todo. A cama onde se afunda quase feliz, um último pensamento, ai os bolos, ai o post, o corpo a colapsar num repente. Silêncio, uma menina dorme.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Dia VINTE e DOIS


O dia vinte e dois é o último dia de sossego e gestos pausados. O tempo como que se retrai a poupar-se para o esforço.  Prepara-se para correr à desfilada e, a certa altura, o sprint quase nos assustará. Então, hão-de vir horas de doces a fazer ponto, compras de última hora, aquela prenda que ainda não foi entregue, mercearias que faltam, a família que chega de tão longe só para estar connosco e passar a consoada.  Mas, neste momento, tudo isso é futuro. Ainda não é.  Minutos e horas não se destacam e, uniformes, pespontam o tempo. Gozo-os com o prazer preguiçoso de quem acorda e se compraz no último fôlego do repouso.
Algures, há guerras e homens feridos e a morrer por coisa nenhuma, que nada é tão útil ou tão bom que valha a vida que os homens tiram uns aos outros numa injustiça sem nome. Há o desconforto da água a invadir  casas e desalojar pessoas, anos de vida em haveres que se perdem; gente que previu um Natal acolhedor e terá outra coisa. Há mulheres violadas, violentadas, submetidas como animais de carga e crianças a quem o mundo deve tudo porque lhes retirou a infância. Há intolerável sofrimento escondido dentro dos hospitais e dores de andar pela rua sem uma queixa.  
A nós espera-nos apenas a azáfama própria da quadra. Fomos talvez abençoados e protegidos por um deus. Será acaso ou outro nome. Jesus Cristo. Alá. Buda. Estamos vivos, temos um lugar de pertença, gente que gosta de nós. De que nos queixamos?!

sábado, 21 de dezembro de 2019

Dia VINTE E UM


Quando tenho compras feitas e tudo no seu lugar, perdido o sentido de buscar o melhor e fazer alguém contente, perco o norte do Natal e sou um pára raios aparando lentas melancolias. Em mim desponta a melancolia do mundo, espiga, agita o corpo tristonho.
E posto que estou melancólica até ao tutano e não há luz nem Jesus que disto me desobrigue, vou curtir o nevoeiro. Amanhã há-de ser um dia originário, gentil.  

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Dia VINTE


Chamo Picamilho ao meu mínimo Menino.  É tão pequenino que quase parece aqueles bonequitos que saíam das caixas da farinha Amparo e Predilecta. Por ser um deus, repousa  levemente sobre uma almofadinha vermelha debruada a fio dourado, e tem grande probabilidade de ter sido desencantado numa loja de chineses. E ali está na copa, mesmo à beirinha da mesa,  sorriso alegre no rostinho chupado.  Para mim, tem falta de nutrientes. Trouxe-mo a senhora que conheço há tanto ano e me ajuda um pouco em casa. Disse ela, “a senhora gosta tanto do Natal que olhei para ele e me lembrei de si”. E, portanto, vão três.
Mudando de assunto, hoje estive a rever meus passos e meus erros mais incandescentes neste Natal. O primeiro foi que embrulhei prendas sem me lembrar de retirar preços. Portanto, toca a desembrulhar. E tal. E tal. E novo papel que o outro rasgou. Avante. O segundo foi que enviei dois cartões de Boas Festas em branco - que tenha dado por isso foram só dois. O primeiro erro emendei; o segundo, já não posso. A esta hora já eles vão sei lá eu onde. O terceiro foi atezanar-me um facto antigo e que, à época, me escapou (julgo que não o pensei, mas posso ter pensado).
Há muitos anos, mesmo muitos, nas vésperas de Natal, vinha minha mãe do cemitério onde fora pôr flores a uma tia ou coisa que o valha e encontrou uma nota de quinhentos escudos. A bem dizer, conta ela, a nota veio rolando até aos seus pés, empurrada pelo vento. O dia era semelhante ao de hoje, chovera, ventava e fazia um frio desagradável. Olhou. Na rua não havia vivalma. Guardou-a pensando que se encontrasse alguém em busca dela lha daria. Veio andando devagar até ao centro da vila e nada. Então, decidiu-se. Resumindo: tivemos o melhor Menino Jesus de sempre (o hábito era um gatinho ou uma sombrinha de chocolate). Havia um montão de embrulhos sobre cada par de sapatos. Que alegria.
O que hoje constatei, talvez por estar rodeada de embrulhos e laços, num fazer e desfazer solitário, foi que minha mãe não comprou uma peça para si. Nada. Ela que jamais vira um tostão do que ganhava, que não teve sequer uma escova de cabelo que fosse sua, um boião de creme ou perfume barato. E para que quereria tais alindares quando roupa e calçado eram de tão extrema magreza. Pergunto-me se eu seria capaz de tal desprendimento. E não sei responder. Mas calculo que essa doação despojada seja próxima ao espírito do Natal.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Dia DEZANOVE


         O meu Menino do meio é o mais bonito. Tem uma manjedoura de compra revestida a palhinhas verdadeiras e, fora a desgraça do pézito, é lindo. Comprei-o no Porto, provavelmente na Rua de Santa Catarina (ou não), num comércio qualquer que o tinha na montra. Não era uma daquelas casas cheias de santos e que acho um bocadinho assustadoras. A gente passa entre a santidade (até papas lá vi, imaginem) e os santos sussurram, tira-me daqui. Falta-lhes espaço, não podem abrir os braços, coisas assim que lhes criam mau ambiente. Então e o São Sebastião que está doentíssimo, os outros nem conseguem olhar para ele; estou para saber como é que ainda não apanhou um tétano, aquele pobre. Pois eu e o Menino do Porto simpatizámos logo um com o outro, pus-me a acenar-lhe ao vidro feita parola e decidi que havia de ser meu.
A bondade dos objectos é a sua aparente submissão. Portanto,  entrei e comprei-o. Parece-me agradado com o calor alentejano, no que deve ser o único, mas até hoje ainda não descobri onde andou metido o ano inteiro, - Natal a Natal -, que me apareceu mais enfarruscado que um limpa chaminés. Como é sabido, passei-lhe um algodão em rama embebido em álcool puro pelo corpinho pequeno e foi dois em um: desinfecção e limpeza. Pois este Jesus purificado repousa agora sobre a mesinha da entrada e, na sua elegância despida, recebe quem chega. É loiro, airoso, rosadinho. Ainda não lhe fiz o penso, mas urge fazê-lo antes que chegue a outra gente.
Atendendo ao esfalfar de ontem, hoje singrei ao ralenti. Porém, a invernia de chuva gemebunda  que se atira às vidraças em presteza de assombro, a fúria sibilante do vento a intrometer-se e sacudir portas e janelas, a água que escorre rua abaixo em regueiras que se tornam lagos onde os automóveis levantam pequenos geizers gelados, impedem-nos de pôr o nariz em contacto com o ar da rua.  Lá fora, apoiada pela noite, reina a severa natureza. À luz das lâmpadas, atravessadas por riscos de chuva, ruas e árvores brilham em manto de água que escorre e alimenta a minha preclara moleza. 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Dia DEZOITO


A minha árvore de Natal tira-me do sério. Foi-me oferecida há muitos anos por um amigo. Também lha deram, mas como já tinha uma e a preferia, deu-ma a mim que não tinha nenhuma; fez muito bem. Durante dez anos a minha árvore cumpriu fielmente as funções atribuídas. Cumpriu, digo bem. Já não cumpre. Há uns dois anos, um dos pés quebrou e esparramou-se toda.  Com a queda, partiu uma data de bolas vermelhas e brancas e deu-me logo vontade de lhe dar uma sova. Na impossibilidade de lhe baixar a cuequinha e assentar uns açoites, saíram-me de enfiada uma data de asneiras que não resolveram o problema. Habituada que fui a atamancar tudo, logo me lembrei de um vaso grande que descansava muito sossegado ao lado de irmãos minorcas e, depois de enchê-lo de terra, experimentei enfiar a árvore. 
É claro que devemos respeitar a natureza das coisas e a culpa, a haver, é minha. Uma árvore de plástico vai lá agora querer saber de ser enterrada. Pois se ela nem sabe o que é terra. Estava ainda no começo de maçãs vermelhinhas penduradas e já ela sem equilíbrio. E portanto entendi que precisava segurá-la melhor. E foi assim. Posto isto, hoje trouxe-a para o lugar e fui logo à cata do vaso. Só que a terra molhada pesa mais. Ainda arrastei o vaso até à laranjeira que ria vagamente de mim, o cão farejava muito interessado no negócio, mas sem ajuda que se visse (nada se vê neste cão, nem ladra). O meu fôlego terminou debaixo da laranjeira. Foi aí que deixei o vaso e pedi ajuda a uma senhora. Uma de um lado e outra do outro, lá trouxemos o dito. Enfiei a palerma da árvore e saí a buscar pedras que a obrigam à postura correcta. Abro a porta e a minha futura vizinha vem vindo num sorriso deleitado, Biiiiaaaa, pêrrgunto po você todo o dia e não istá, ia bátê na porrrta pa dêsêjá bom nátau pa você. E eu suja de terra até aos cotovelos, Obrigada, obrigada, também desejo  Bom Natal e bom ano aos meus futuros vizinhos. E a desculpar-me, é que estou a fazer a árvore de Natal. E ela na sua simpatia tropical, não vô incômôdá mais, vai, vai; e encaminhou-se para a casa de outra vizinha. Uma querida. Desconfio que estou a gostar dela (foi a segunda vez que a vi). Bom, preso o tronco, o que é que descubro? Calculem vocês bem, que todos ou quase todos os ramos da dita planta artificial me faziam um manguito. Como é que a parva da árvore, que está o ano inteiro numa caixa que não a deixa mexer e tem de ficar tudo direitinho para conseguir caber naquele túnel de papelão, digo eu, como é que a parva da árvore entortou os ramos todos da mesma maneira? É que é torta, só pode. Mas desmanchei-lhe os intentos um a um e enfeitei-a na mesma. Toma! Branco e vermelho. Não parece mal. Coloquei luzes que piscam e que não piscam e ficou extraordinariamente árvore de Natal. Sem o suporte, é quase anã, bolas a um palmo do chão. Ainda assim é uma anã graciosa.
Mas se ela para o ano que vem me sai com as hastes da mesma maneira, deixa deixa, acho que a piso toda, de ponta a ponta:).

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Dia DEZASSETE


Tenho um Menino Jesus à porta do meu quarto. Vero. Subo a escada e ele ali, rechonchudo e argiloso. É o maior (em tamanho, que em grandeza e poder, do maior ao mínimo, são todos iguais). Como todos os objectos, tem a sua história. Foi-me dado por uma amiga que, quando o cancro a atacou pensou que morria e se desfez do pouco que tinha. Calhou-me o Menino Jesus, um barro trigueiro,   alentejano chapado e gordinho de açordas,  que, caindo, nada se aproveita. Tem aquela pose de pezinho levantado, mas inteirinho, benza-o Deus. E a minha amiga? Pois está com o seu cancro vagaroso, mas já lhe disse, quem foi ao ar perdeu o lugar, o Menino agora é meu e é melhor nem pensar nele. É que, sendo de casa, quero-o bem instalado e comprei-lhe uma camita azul que por acaso devia ser outra coisa (ainda não descortinei o quê), mas me pareceu um bom ninho para o garoto espernear. Para não estranhar a cama, até lhe arranjei umas palhinhas; habituado há mais de mil anos a uma manjedoura, não pode agora uma pessoa, assim, sem mais nem menos, deitá-lo num colchão de molas, não é, inda lhe entortava a coluna. E garanto, não desmanchou o sorriso e continua a fixar o tecto, não se desvia um milímetro (cá para mim vai desdizer de ser Deus e ser matemático; pelo branco do olho nota-se que está a treinar as contas). Bebé asseado está ali, pertence-me há uns três anos e nunca molhou a fralda. Está certo, é Deus. Bom, também é verdade que rasa o WC, às vezes oiço um barulhinho pequeno, deve ser ele que vai à sanita descalcinho. Nunca me acordou com cólicas, gases, ou birra de sono. É um santinho este Menino. Deus dê saúde a quem mo deu e vive os natais sem ele.
Pois eu hoje comecei a desenhar os meus cartões de Natal. Chamar desenho aos riscos que faço é mesmo usar dose maciça de boa vontade. Mas pronto, é Natal, releva-se a indecência. Então porque persevero? Acontece que tenho uma amiga que gosta deles, até parece que o Natal lhe é mais Natal se os envio. E não me deixa desistir. Ralha-me se os não recebe. Diz ela que os espera. Mas admoesta-me tão ternamente que, se não fora a sua tristeza subtil, não os faria só para a ouvir de novo. E fiquei melancólica. As pessoas de quem gosto estão tão longe. Algumas vejo, mas outras não. E vão os meus risquinhos em vez de mim. Mas não são eu; são riscos que os meus dedos soletraram em melancolia.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Dia DEZASSEIS


O dia acordou soturno. Mas era a oportunidade para as últimas compras. Os livros, os livros.  E não apenas os livros, que havia mais gente de que me fui lembrando. E, ao dobro dos livros juntei outras minhoquices agradáveis. Portanto, estou em consonância com os portugueses que afirmaram pretender gastar mais este ano que no ano transacto (não sei onde foi, mas afirmaram; como todos sabem, a tv nunca se engana, é fonte fidedigna). Alto lá. Há aqui uma diferença fundamental entre mim e o geral portuga. É que eu pretendia gastar menos e gastei mais. Quem sabe, eles intentam gastar mais e acabam a economizar. Tudo é possível.
         Pois foi uma canseira, mas comprei uns livrinhos supimpas. Resisto a tudo excepto comprar livros para outrem e não me auto-oferecer um.  Por sorte, tinha umas prendas de aniversário para levantar na Bertrand. Que jeito me deram. Agora vou pedir às minhas amigas para depois me emprestarem os livros que lhes vou ofertar:). Bom, dois deles pertencem-me, comprei-os para mim, eu, me, migo. Viva! E ainda acrescentava uns cinco ou seis, mas o valor dos cheques esgota num ápice e o subsídio de Natal é para o Natal. Ponto. Parágrafo.
E portanto. Ora deixa cá ver. Por entre pingos de chuva e poças de água lá vim carregada de sacos até ao carro. Mas antes, no Metro, em conversa de empata tempo com uma senhora desconhecida (há desconhecidos muito simpáticos e precisamos falar com alguém, não é), reparei que a moda nos presentes familiares é assim uma troca (ao acaso) sem graça nenhuma e cujo único objectivo será dar cada pessoa apenas um presente (a senhora admoestou os meus sacos, imaginem). Sem querer ofender ninguém, e muito menos ela que era uma simpatia florida, isso era o que fazíamos no almoço de Natal do trabalho. Éramos mais de cem, entre profissionais e funcionários; marcava-se um tecto para os presentes e depois havia uma troca por meio de adivinhas, provérbios, cidades, sei lá. E o engraçado eram os provérbios, as adivinhas...que os presentes apenas serviam para oferta em quermesses. Mas na minha família não se joga aos afectos. Ninguém oferece por ter de dar – aliás há pessoas que nunca oferecem. Mas tenho grande prazer em verificar que os meus filhos também se dão ao trabalho de comprar  e oferecer presentes à família na noite da consoada. E a esse gesto o meu coração deleita e eu mudo-me em Cinha Jardim sem os tiques de menina colunável e penso, “meus ricos filhos”. Sem que o saibam, porque nunca isso nos serve de assunto, fazem de mim uma mãe rica.
E é isto. Por hoje.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Dia QUINZE


Abençoada com a Oratória de Natal, estou um bocadinho  ternurenta. Culpa da música.  Comove-me o maestro Michel Corboz tão trôpego e apoiado à bengala. Rege sentado e sempre a escorregar da cadeira e a empurrar-se para trás. A vida é injusta. Mesmo. Cinquenta anos na Orquestra da Fundação Calouste Gulbenkian. Quando, debilitado e magro, se virou para o público, comecei a ver tudo fosco. Mas a ternura com que cumprimentou os violinos, a doçura dos olhos pousados nas sopranos – fico sempre o mais próxima do palco que consigo, estas coisas pequenas, lá atrás, mal se apercebem. O modo como estendeu os braços a quem não conseguiu abraçar, a palma da mão aberta apontando o coro. E o sorriso de Coro e Orquestra inteira, o ar de gostamos de ti, estás no nosso coração, que havia em toda a sala, no palco e fora dele. É um velhinho que tem a música na alma. Mas estes concertos de Natal são também a sua despedida. Pois se o maestro já nem consegue entrar e sair as três vezes da praxe para agradecer.  Não voltarei a ver Michel Corboz. Talvez regresse à Suiça e viva o final da sua partitura num daqueles chalés das tabletes de chocolate. Ou será quase português e demora-se por cá.  Mas, quem só o conhece da função, não torna a vê-lo. Foi uma despedida. Com música, mas uma despedida. Michel Corboz evaporou.
Ana Quintans é a minha excepção no bel canto; tem a voz que tolero ouvir e a que admiro o timbre. A soprano é uma figurinha adorável. Elegância a  lembrar Audrey Hepburn e voz de ave canora, límpida, um cristal. Mas hoje, dia de música tão alegre e jubilosa, saí em melancolia.
Oh, e aquela garotinha, Mariana de seu nome, três a quatro anos, que os pais teimaram levar à Oratória? Pois a pobre não parava quieta e pouco se calava. Não se calcula a alegria dela quando começaram as ovações. Os pais eram jovens e letrados, mas faltava ali algum bom senso.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Dia CATORZE


É Natal quando os amigos se lembram de nos visitar. Nesse dia de encontro é sempre Natal.  Ora tenho uma amiga de quem me sinto um pouco mãe (verdadinha). É uma amiga especial como especiais são todos os meus amigos, cada um na sua especificidade. Mas também porque a conheço desde os seus quinze anos e lhe acompanhei a vida. Em boa verdade, é quase sempre ela que liga e visita. Não vive por perto e nunca fui a sua casa. Mas partilhou comigo  gostos e desgostos, apresentou-me o namorado, soube do casamento. E do rebento a espigar que hoje me visita com ela.  Não tenho opinião fundamentada sobre a sua personalidade, só sei que gosto dela. Muito. Gosto quase como se fora minha filha e estou incomensuravelmente grata por não me ter esquecido; afinal, era jovem quando eu roçava a meia idade. Aturdo se adoece, fico ansiosa se um problema familiar a aflige. E escuto-a em intermináveis conversas telefónicas, o que me espanta. Detesto telefonar e receber chamadas, mas fico parvamente  a escutá-la e dizer pois, sem dar pelo tempo. Toda contente. É que gosto mesmo dela. Conta-me tudo que lhe apraz e apetece, precisa conversar. Não sobre grandes temas; não para fazer confidências peludas; não por necessidade de se internar em intimidades. Precisa falar do trivial, do emprego, das colegas, da família, dos amigos. Do que pensa e porque o pensa. E o seu modo de pensar tem voz e orgulha-me que ela seja assim, tenho um bocadinho de fé em que talvez eu tenha contribuído para a voz que tem. É isto que fazemos se nos juntamos.
E é certo que lhe preparo o ninho. Faço um doce e um bolo, um almoço que agrade ao garoto (carne, carne), uma salada mais cuidadosa e variada, apronto a fruta, ajeito as flores nas jarras, espreito as toalhas no WC, miro a sala, aqueço a casa. E hoje, porque é Natal a sério, junto  as prendas da família. No final da tarde, fazemos a troca de presentes. Depois fico a acenar e a vê-los desaparecer rumo à vida que lhes pertence.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Dia TREZE


Não é que esteja tudo pronto, que não está.  Andei a “acartar” bibelots, a dar-lhes poiso para que o Natal tenha espaço, que objectos uns em cima de outros bolem-me com os nervos e perdem beleza. E praticamente foi isto, um tirar e pôr, muito de hábito nesta época. Não se pense que invento novas coisas. Nada. Sou conservadora e aguento mudanças suaves. Ou seja, vou ao sótão buscar os enfeites que retiro e encho as caixas com o que existe e se torna demais. Depois, volto a subir para arrumar as ditas, tão cheias como antes e com tudo embalado.
Bom, a árvore de Natal ainda não saiu à cena. Mas vai ter que se assumir, amo aquelas luzinhas a piscar no escuro, é um imprescindível. Se eu tivesse tido uma árvore de Natal em criança, hoje era de certeza outra pessoa. Ainda assim, detesto enfeitá-la. Mesmo.
Ah, mas eu vinha dar notícias dos meus Meninos Jesus (os meus Jesuses). Pois é, apareceram. Portanto, não vale a pena ligar à GNR ou mesmo para a polícia, ou até em crise e completamente destrambelhada, quem sabe, ligaria a um qualquer detective privado daqueles de chapéu de aba mole, gabardine e a modos que meio trocista. É que nem cheguei a investigar, bastou desembrulhar o que ainda restava. O busílis foi que um apareceu-me de pé amputado, é de meio a meio (do pé). Coitadinha da criança. E agora? Os hospitais cheios de espirros e gripes e nem pensar, apanha-me ali qualquer coisa nos brônquios e nunca mais há Natal; e também não vou levá-lo às urgências do Centro de Saúde que aquilo são mais que dez cães a um osso, e um porque está a soro, outro porque caiu e talvez tenha a clavícula fora do lugar, outro porque está a arder em febre e deve ser (lá vem de novo) a gripe. Então e eu levo uma criança desta idade (a bem dizer tem idade abaixo de zero) para tal lugar? É que nem sei onde é que andou e perdeu a metade do pé. Portanto, cuidadinho ao pisar. E, se virem cinco milímetros de pé, rematados por cinco dedos muito perfeitinhos, é favor trazerem-mos em mão, pertencem-lhe. Tirei um curso de colagem e quem sabe ele pode, sem complexos, bandear a perninha de novo. Dá uma peninha o inocente, ali está de perninha levantada e meio pezinho no ar...um dó. Ah, podem dizer, então e substituí-lo, ainda há dois. Ora essa, pois há, mas a pergunta até me ofende. Mais respeito com um deus, se fazem favor.  Em minha casa, sendo três da mesma coisa, cada um é um e tem o seu lugar. Um dia destes conversamos sobre o meu maior. E pode que também sobre o meu mínimo. Estou aqui a pensar...se calhar o melhor é entrapar-lhe o pé. É que o meu Menino Jesus não tem sangue azul, por dentro é de uma brancura de cal. Todo puro, o meu querido Menino. Mas acontece que a pureza numa metade de pé, cai mal e com um penso fica invisível.  Não é?


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Dia DOZE


Sou de prazeres e  coisas pequenas. E nem tanto por serem os únicos que contam, mas sobretudo por serem os que me acontecem, os que estão ao alcance de qualquer e portanto também ao meu, os que ocorrem com maior frequência. E há factos tão de frente para o humor que não podem senão deixar-nos bem dispostos. Sim, porque, sendo factos indesmentíveis, -aconteceram - têm a marca do inverosímil. Que haja um fulano – um artista, pronto – que atravessa uma banana com fita-cola e a pespega numa mostra de arte, já é um bocado parvo (o artista tem ar de ser um gozão de primeira e parece que era provocação premeditada), mas o mundo da arte está mesmo cheio de coisas que não entendo porque, em seguida, alguém se propôs dar 108 000 euros (feita a conversão do dólar) pela obra. É idiota acreditar, mas sucede que sucedeu:). E que depois (parece telenovela), um outro artista vá lá e coma a banana filmando-se no acto (penso que não tenha ingerido a fita adesiva), é supremo. Deglutiu a obra de arte :). E ler isto num dia de cinzentice careta, deu-me boa cara. Que, para mim, os três protagonistas do evento tinham um secretíssimo convénio. E o Ricardo, nA Boca do Inferno, fez o favor de engalanar o meu raciocínio. Tem vezes que a Visão não está com nada. Desta vez superou-se a si mesma e inflou a todo o pano, muito ancha. Gostei um imenso de ver e ler. Afinal, haver a Dulce Maria Cardoso e hoje, soma dois motivos, hip, hip, hurra!, para renovar a assinatura.
E o Natal? Booom...já encontrei os lápis de desenho e algumas folhas sobrantes de anos anteriores, há peças de roupa por todo o lado que não tenho um único embrulho (minto, tenho um), enfeites dentro e fora de caixas e vários presentes em falta. Mas lá iremos. Preocupa-me ainda só ter descoberto um Menino Jesus, será que os outros dois emigraram?! Ora esta.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Dia ONZE


Tinha prometido  passeio e prenda. Na verdade, uma viagem em regime de pensão completa. E foi hoje. Está feito. Nada faltou. Mas que venda nos tapa o olhar quando passeamos alguém; é que não recordo ruas, pormenores de gente e lugares, e tenho saudade a essa atenção às coisas e ao mundo.  Suponho que seja pouco cristão, mas sobrou apenas um desalentado cansaço. Era para ser um dia natalício do nascer ao pôr do sol, e até um tanto para lá. E não. Coisas.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Dia DEZ


De hoje a quinze dias é noite de consoada e, os deuses permitindo, vai haver muita mexida por aqui, um polvoró. Para tudo que ainda está por fazer conto apenas catorze dias. Tão poucos. Apercebo que estou atrasada com tudo. Mas, a esta hora, também não  dá para adiantar o que quer que seja. Portanto, mais me vale escrever.
Regressada à normalidade, foram-se os brilhos, os apartes bem dispostos, o decisivo adiantar no por fazer. Tudo voltou ao ralenti, uma coisa de cada vez. Contra meu hábito, sentei-me a ler quando devia estar a alindar a casa. Paciência. Por vezes, também faço o que me apetece. Noventa minutos a ler durante o dia é uma avaria, oh, se é. E tão depressa passaram. Talvez os precise daqui a quinze dias. Mas daqui a quinze dias logo verei. Hoje ainda é dia dez.
Certo é que a cozinha está festiva e avermelha. Por aqui e por ali alinhavei uns dourados a fazer pendant. O Natal já se dependurou nas portas exteriores e a casa só por falta de mãos não bateu palmas. Paredes e janelas, bem o senti, rejubilaram.
E agora, se me dão licença, pretendo voltar à leitura da tarde.
Uma noite santa e que um anjo vos guarde o sono.


segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Dia NOVE


Prometo montes de coisas a mim mesma que não cumpro. Seria melhor, até para mim, cumpri-las. Mas sou para comigo bem menos perseverante do que para com os outros. Aflijo-me se marco com alguém e atraso, se prometo uma visita e falto (não me lembro de tal ter acontecido); e, se combino um encontro a dada hora, mesmo que me esfalfe e me calhe pessimamente, apareço. Mas falto com toda a desfaçatez a qualquer compromisso comigo.  Digo que vou caminhar um pouco e qualquer coisa mo impede, é a roupa, a casa, as refeições, um doce, o meu pai, os meus filhos, o vento nas folhas da rua, sei lá que mais,  e depois estou muito cansada, já não pode ser; e fica sempre para amanhã que é um hoje repetido.  Se prometo que agora é que é, desta vez chego à natação antes da hora, é ter de mudar os carros, é não saber de uma das chaves, é estar já a estacionar e verificar que esqueci a mochila e, claro, voltar a casa, é procurar a funcionária porque me falta o elástico do cabelo e não consigo enfiar a touca, é estar a entrar para a piscina e reparar que esqueci na mochila os óculos e a mola do nariz.
Portanto, como ontem prometi a mim mesma que hoje abria a época dos enfeites de Natal, para que resultasse, bebi um café. Ah, pois é, um café. Parece que não tem a ver, mas tem. O café, por incrível que pareça, dá-me vontade e disposição para fazer tudo. A coisa que menos gosto de fazer (deixa cá ver o que será...talvez limpar o alpendre, ou limpar pó em casa) torna-se simples e rápida. Portanto, o café serviu-me para: primeiro, nadar com o turbo ligado que as colegas de pista nem me reconheciam (não por nadar muito rápida, mas porque perdi a moleza habitual). Segundo, fazer as compras do super e tudo muito simpaticamente; e rápido. Terceiro, entrei numa loja a conter-me com muita força que sou perigosa por me apetecer comprar variadíssimas coisas nestas alturas; deu resultado, comprei apenas o que me propusera. Quarto, arrumei compras, fiz a sopa do jantar e o almoço, a salada, maçãs assadas e tudo; ainda pensei fazer um bolo, mas desisti temendo ir a seguir beber um chá (com o bolo, claro) e me sentar ao portátil a escrever palermices esquecendo-me do motivo primeiro do café: inaugurar os enfeites. Quinto, engomei as peças na boa, como se fosse coisa agradável (afinal há outra coisa que não gosto muito, engomar), desembrulhei n enfeites dos mais variados, li mais uns cartões de anos anteriores que se passeavam fora do baralho, empoleirei-me no escadote e tirei e pus cortinados, de caminho aproveitei e limpei o pó aos varões, ao ar condicionado que estava próximo e etc. Sexto, calcei as luvas grossas de jardinagem e ataquei o azevinho - mas com cuidado que gosto muito dele. Digo-vos, a minha copa está apenas ligeiramente pirosa, no computo geral ficou amorosinha. Amanhã vou alegrar outro canto que este já pouco precisa.
Portanto, é isto. Ainda tenho algum efeito de café. O café –entre outros males – dura-me demais. Mas tem uns bens extraordinários. Se não calho a usá-los só para trabalhar, ainda arranjava alguma complicação:)
Como diz uma amiga do peito: Sede felizes.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Dia OITO


Abandonada de todos os espíritos e vontades , mesmo não sendo Deus, ao sétimo dia descansei. Isto dito em palavras bonitas, para não parecer o que é. A verdade é que hoje, se não fora escrever e ler, diria que fiz vida de quadrúpede mesmo sem a locomoção da espécie. E portanto todo o pensamento de Natal se reduziu aos resmungos com o aproveitamento insano que a TV faz da época e que ainda não notara. Ele são programas a puxar à debilidade mental, graçolas estafadas onde o que mais falta é o humor, sinos e bolas e presépios em tanta medida que farta, e muito amor sorridente, dentaduras perfeitas que ainda assim não me convencem. Olho-as e dou por mim a lembrar o sorriso da ministra da saúde por quem não tenho qualquer empatia, mas é um sorriso de jeito, os dentes um bocadinho às cavalitas uns dos outros que lhe dão certa graça e a fazem parecer pessoa. Os outros sorrisos tv são apenas e só bocas bonitas.  Resigno-me. De cada vez que resolvo ver tv é isto, logo me arrependo.
Estás certo, Sérgio, temos de proteger o Natal das imitações. Conclusão, é bom faltar tempo para a caixinha mágica, a magia esvaiu, ficaram os tristes, pacóvios arremedos.


Carrossel


Na Boa Semente o carinho que todos dedicávamos ao Amora humanizava-nos a dureza e ligava-nos uns aos outros. Entretanto, a morte levou-nos o lado esperançoso da vida. Octávio perdeu os apartes felizes que lhe rasgavam o mutismo, Maria os sorrisos meigos, nós a ternura expressa que nos adoçava ao vê-lo e brincar com ele. Contudo, foi por essa altura que, do mundo adulto, me veio uma mão.
Desde o primeiro dia na Casa, quando ganhara um carro de linhas vazio na sala de visitas a uso das costureiras, que a mulher que mo passara (só podia ser ela) cumpriu o prometido e me tornou herdeiro das roupas do neto. Não voltámos a estar próximos, ainda que as visse, uma vez por outra, a entrar ou sair. Abrandavam o passo ao ver-nos, cochichavam entre si, por vezes apontavam-me, mas não se detinham. E confesso que já lhe baralhava a figura, achava-as todas parecidas a vestir e pentear e a velhice indiferenciava-as.
Numa tarde em que saía da cozinha carregando o balde das cascas de batata e restos de legumes até ao galinheiro - na Casa nada se estragava -, a mulher deixou a costura e seguiu-me. Só a vi quando, na volta, fechava a porta, as pitas cacarejando avisos e às bicadas umas às outras na disputa dos melhores bocados. A minha benfeitora sorria-me num avental de quadrados azuis e brancos. Julguei que o sorriso lhe vinha por reconhecer as roupas do neto  e agradeci, obrigada, ficam-me mesmo boas. Mas ela puxou-me pelo braço até uma esquina da casa onde não éramos vistos e, afundando as  mãos nos bolsos trouxe à luz cinco maçãs redondas e de riscas bem vermelhas, igualinhas às que roubara. Depois deixou-as cair no balde vazio, ploc, ploc, ploc, ploc, ploc sussurrando em conluio, é a conta das que deixaste cair quando subiste o muro. Não são as mesmas, que essas apanhei-as e levei para casa. E a olhar-me muito séria, não podes deixar rasto, tu. Depois, à laia de explicação acrescentou, andava por ali às ervas para os coelhos e vi-te. Come-as que estás magrinho. E, beliscando-me a face de leve, afastou-se. Eu num estupor radiante, a vê-la dirigir-se serenamente para a sala da costura, a proximidade da tentação  ardendo-me na boca que salivava, mão esquerda hipnotizada pelo conteúdo do balde. A desejo, devorei uma maçã e, num repente cuidadoso, arranquei um tufo de erva, escavei um pouco, coloquei as maçãs e voltei a pô-lo no lugar. Pareceu-me sem diferença.
 E foi assim que eu, Esparguete e Lingrinhas provámos as maçãs. A minha benfeitora era uma mulher envelhecida, tisnada de sóis e ventos, a testa a descoberto, grandes orelhas e, na base do pescoço, preso num elástico escuro, um rabo de cavalo minúsculo. Não era bonita ou bem ataviada, mas a memória guardou-lhe os olhos de boas vindas  e a discrição do gesto protector. 

sábado, 7 de dezembro de 2019

Dia SETE



Entro ao pé coxinho nos enfeites de Natal. Mas pronto, dei o primeiro passo que é como quem diz, trouxe as caixas do sótão e arejei as peças.  Entretanto, descobri as fitas de embrulho que não encontrei ano passado. Bom. Bom.Bom. E depois fiquei parvamente a ler os cartões de Natal que me têm enviado ao longo dos anos.  Algumas pessoas deixaram de escrever e não foi por esquecimento. Letra tão bonita, parece que aquela mão não havia de morrer, que hei-de receber ainda este ano um cartão a falar da saudade sempre grata e amizade certa, desejando Bom Natal. Mas a verdade é que, de uns anos a esta parte, recebo apenas um cartão de Boas Festas (os unibancos desta vida e os dentistas não contam). Certo, as gentes enviam sms, ligam, escolhem um pps com piada ou beleza, segundo o gosto de cada um,  e clicam no enviar a todos, como se fôssemos farinha do mesmo saco. Ou personalizam um cartão elaborando-o, põem uma foto, um desenho alusivo, datam. E são incapazes de pensar que o que interessa personalizar não é o boneco que enviam, mas a mensagem escrita que segue para uma pessoa que é única e de quem gostamos. A indiferenciação que ocorre no campo do destinatário é irritante, arranha-me a alma.

Portanto,  cartas, selos, cartões natalícios tão bonitinhos, cheios de dourados, letras desenhadas a brilhos com as maiúsculas a capricharem nos arcos das pernas do B e do F, anjinhos com bochechas cérelac, cores suavíssimas e ruas e telhados a abarrotar de neve que é um gosto. Pois foi, perdemos tudo isso. Ficámos sem a neve, sem as maiúsculas vistosas, sem aquelas paisagens de sonho cheias de abetos a que a minha mãe chamava pinheiros e que debalde me faziam correr pinheiro atrás de pinheiro, sem entender o que se passava com os autóctones, parentes pobres de tão sugestiva elegância.

E que mais? Hummm...gostava de ter netos. Devem dar certo movimento à vida. Mas garanto que dada a conjuntura necessária à proficiência da coisa, é bem capaz de ser impossível até a um Deus pôr-me um no sapatinho. Paciência.



Carrossel


Nunca soubemos o que aconteceu aos míseros pertences do Amora. Quando à noite entrámos na camarata, a cama, quase geminada com a de Lingrinhas, evaporara. E, se não fora o retrato dos dois que Maria guardava desde a festa do Natal anterior e ofereceu a Lingrinhas, podíamos pensar que o tínhamos inventado e era tão real como as personagens imaginárias com que eu povoava as tardes calmosas de Alentejo sem brisa. Porém, a ausência das pessoas não elide o que sentimos por elas, o Amora tornou-se uma memória de ternura  triste em todos nós. E, se alguma coisa sei desses rapazes de então, é que nenhum esqueceu a tragédia daquele garoto. Mas também nós éramos crianças e, por hábito de vida difícil, pouco atreitos a manter e exibir desgostos. Engenhocas ofereceu-se e, com a ajuda de Octávio, fez uma pequena moldura para a foto. Depois, Lingrinhas suspendeu-a por uma fita colorida que pediu a Maria, e  pendurou-a na barra de latão da cabeceira da cama. A princípio ainda íamos olhar a inocência  sorridente do Amora, mãos dadas com o irmão, os dois de risca ao lado, lavados, roupa limpa. Mas a instante vida chamava-nos, a escola estava a começar e o início do ano escolar era, no meu caso, mais uma novidade absoluta. À medida que se tornava passado, o Amora ia-se libertando de nós ou nós dele, mudava-se docilmente do coração para a lembrança. A falta era golpe em processo de cura, deixava de doer. Em dois dias a foto virou elemento de hábito para que ninguém olhava;  permanecia de atalaia no escuro da camarata, talvez guardando o irmão.
Voltámos à normalidade de horas de tudo, uma correria de horas que não nos dava descanso senão o que engendrávamos iludindo os vigias; a cozinheira, militar restabelecida e mal disposta connosco; o medo de Esparguete se cruzar  com Mau agoiro; a frugalidade excessiva que nos fazia revirar na cama. Contudo, numa noite de luar em que tardava mais a adormecer, entrevi a dada altura o vulto magro de Lingrinhas a sair da camarata. Atravessou-me um pressentimento e segui-o. Maria fechava-nos todas as portas à chave excepto a da casa de banho, não podia estar noutro lado. Na obscuridade do lugar, à luz da lua no janelico, não o vi de imediato. Mas ali estava, um novelito acocorado no canto escurecido. Chorava. Sentei-me a seu lado, sentei-o e estendi-lhe as pernas. Permaneci calado, sem saber o que dizer. Quando se acalmou pediu, não contes a ninguém. Prometi num aceno. Depois, um atrás do outro entrámos e adormecemos.  Não é à toa que se partilham lágrimas,  ganhara outro amigo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Dia SEIS


 Surpreendi-me a pensar no Natal. Nos enfeites guardados em caixas e que precisam arejar e ser engomados. E naquele sobe e desce do escadote, para aqui e para ali, a tirar e pôr cortinados, pendurar laços e bolas, fazer a cesta dos azevinhos e flores de Natal, os centros de mesa. Etc. Mas como só pensei, nada saiu das caixas que continuam quedas no sótão. Os azevinhos, muito senhores,  lá estão na árvore, mirando de alto e a crepitar importâncias pelo vermelho das bagas.
Portanto, de Natal foi só isto. Não apenas. Entrei numa loja para fazer um recado e caí de amores por uma peça que vai servir lindamente a alguém a quem escasseia tempo; que nem se sabe até quando será capaz de apreciar presentes e restantes bens da vida. Figura calada e terna que é parte inalienável de mim, me atapetou a infância  e acompanhou os anos. Ofereceu-me brinquedos a sério, cadeiras, mesas, tachinhos e panelas, chávenas pequeninas com pires e tudo, peças bonitas que as outras garotas invejavam a pegar-lhes como se em vez de plástico fossem limoges. Olhando para trás, reparo que fui sempre eu a procurá-la. Criei o hábito de visitá-la em casa. Suponho que por gosto e saudade. E por ser recebida com invariável alegria. Nunca, ai, agora não tenho tempo (e tanta vez o não tinha). 
Pensei na prenda que já comprara. Não interessa. Esta é mais bonita. E vão duas....

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Dia CINCO


Hoje, para quem quiser espreitar, desembrulho a tarefa inglória que, de há umas semanas a esta parte, azocrina as minhas andanças por Lisboa. É função natalícia, está no menu e nem foge do tema.  Mas já estou pelos cabelos com ela. Se isto se prolonga ainda há uma desgraça e deito-me a afogar no caco das galinhas.
Acontece que tenho família numerosa e as tias proliferam, parece que nascem do chão. É evidente que basta olhá-las para se perceber que o nascimento é coisa já muito distante e isso de nascer do chão é bocejo mal educado do eu que é mim. E há as manas. E as minhas amigas manas. E as outras minhas amigas. E todas, talvez por serem mulheres, gostam de roupas. Sobretudo as tias velhas, adoram roupa. Portanto, vejam vocês o aperto em que me coloco a escolher – e a vestir – roupas para mais velhas e mais novas que eu, a calcular cores que gostem e usem, a ter cuidado com rachas, decotes e transparências no que toca às mais velhas; a pensar nas que só vestem preto. Enfim, faço um estágio na loja e tenho horas de provador em cima. Essas, já ninguém mas tira. Que primeiro faço uma tournée para escolher: para esta, para aquela, para a outra; adquirido um molho de cabides, entro decisiva num provador e ali fico numa salsada de trapos em que nem da minha roupa sei, mãos que se demoram a engordar blusas e casacos, imaginando, ela não é mais gorda que isto; a esticar os braços, ela tem braços maiores que os meus, a medir alturas de saia, larguras de blusinha, colarinhos de camisa, comprimento de casacos. Com sinceridade o digo, julgo que todas vão gostar. Mas nem sonham a trabalheira e as carradas de paciência que delapidei. Haja saúde. E sono.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Dia QUATRO


As sextas feiras andam a sair-me um bocadinho obtusas. Portanto, hoje dei-me ao prazer de enganar o tempo e criar uma a meio da semana (toma!). À sexta levanto-me de salto, faço um café de cafeteira, como os da minha avó mas mais aromático, que nesse tempo não se ouvia falar do Senhor Nabeiro, ou então éramos pobrezinhos e bebíamos café de pé feito à lareira e era preciso deixar assentar as borras. Pronto, a minha cafeteira é mais moderna, coisa até um bocadinho airosa e muito útil porque, enquanto a água sobe num glu glu tão suave que tenho de apurar o ouvido,   espalha-se na cozinha o aroma  forte e perfumado de café acabado de fazer. Fica apetecível, a minha cozinha. Se tenho uma máquina daquelas todas lindinhas? Tenho mesmo, mas é que não me dá pica, é só carregar no botão e já está a bica tirada. Que graça é que tem? Nenhuminha. Não há o cheiro – é mesmo verdade, sou um bocado maluca com os cheiros, os bons, os maus, os que passo a detestar até sem explicação, os que me são execráveis e se explicam. Tem vezes em que julgo que a minha vida foi mesmo condicionada pela pituitária. Está bom, não vou escrever mais sobre o olfacto. À frente. E depois desforro-me das manhãs insípidas, a leite com ingredientes que não cheiram,  e faço um café-com-leite mulato até ao âmago, que vou curtindo devagar, prazer tão grande em cada gole que não sei se não ofendo algum mandamento daqueles dez que estudámos. A pena que é terminá-lo, Santo Deus.
E portanto, depois do café, foi mesmo uma canseira das antigas e que nada tinha a ver com natais e festas. Há muita vida que é só porque tem de ser. E hoje foi. Ora, escrevo eu as diárias folhas deste calendário de Natal, e não fiz nada em prol da festividade. Ai fiz, fiz. Já tenho três prendas nos envelopes, cujos ainda vou enfeitar se encontrar os fugitivos lápis dos natais. Além disso, iniciei os meus contactos em prol de quem vem de mais longe; nessa noite, todas as camas são poucas. Quero, com muita força, acolhê-los e que todos sintam que pertencem e são da casa.  É assim o amor familiar, preocupa-se, tece, envolve.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Dia TRÊS



O dia dos acertos e da organização de praças no quartel tem de haver, mas é uma fastidiosa  aborrecência.  Por ordem prioritária: roupas,  frigorífico, almoços e jantares,  contas atrasadas, as prendas de Natal agrupadas em duas secções, de  entrega em mão e de longa distância. E a  lista de prendas  a encompridar, até final do mês há actualizações não automáticas.  Que coisa aborrecida, diz quem me lê. E é. É tanto e de tal maneira que enjoei e mudei a agulha. Dei entrada  ao espírito natalício do dia.
Dispus-me pois a dissipar horas de mau andar fazendo um bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Mesmo. Tive até de cozer as ditas e passá-las pelo passevite (os termos franceses são aquela coisa, olha o je t’aime à vista do amo-te; o primeiro é doce como mel, todo a vir cá do palato; o segundo até custa a pronunciar, calha mal, não tem uma única vogal doce ou aberta, diz-se todo na pontinha da boca, é lúgubre). Peço desculpa pelo parêntesis. Continuemos. Como não consigo perder a mania de ter mau feitio enquanto os bolos crescem, que é como quem diz, cozem, e de me aborrecer com o forno e culpá-lo da falta de jeito que é minha – já vou entrando na dinâmica do aparelho; não me há-de vencer, quem é que ele pensa que é –, enquanto visitava os blogues de hábito, ia vigiando o palerma do bolo que teimava em crescer em pirâmide, coisa que não dá jeito nenhum em bolos que ainda por cima são de levar cobertura. E é claro que já imaginava para aí o Monte Branco coberto de chocolate e ia apostrofando o estúpido do forno, quem me manda andar feita parva a fazer bolos num forno que... eu é que sou parva... porcaria de forno... olhem para isto,...no meio está todo cru... E tal. Muito tal. Mas, irrazoavelmente, ficou impec. A cobertura assentou, o monte branco afinal desdisse a intenção, que é como quem diz, fez-se um bolo normalíssimo. E depois fui reparti-lo por aí. E foi muito bem recebido pelas locatárias futuras:) E se isto não é Natal, paciência. Fica a intenção.
Entretanto fez-se noite e, sem dar conta - os meus desajeitados dedos tocam nos manípulos que não devem -, marquei o limite de velocidade nos 25 km hora. Não é que custei a chegar a casa?!


segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Dia DOIS


Hoje recebi a primeira prenda de Natal. Que prometi só abrir na noite de 24, mas já abri. Não foi curiosidade. Pronto, foi, mas não da natureza que estão a pensar, que a regra é abrir os presentes na hora de haver Natal. Conto: na época natalícia e no aniversário, esta amiga que não ama a leitura  dá-me várias prendinhas da sua lavra (é artesã esmerada) acrescidas de  um livro que não leio. Portanto, hoje disse-lhe que a biblioteca da terra está a dar livros e já tenho tantos que há material até ao fim da vida. Disse-o desta maneira para evitar que mos compre. Sei que não tem qualquer rendimento e suspeito que, por vezes, subsidio o meu livro. Ora, depois da minha manifestação sobre a quantidade insofismável de livros adquiridos a custo zero, disse-me que tinha mais um. Levou um raspanete. E ela tornou, são contos, acho que foi uma actriz que os escreveu. Fiquei a olhar para ela de sobrolho franzido e duas rugas verticais na testa, uma actriz a escrever contos?! Duvido das actrizes no género conto, sobretudo se me lembro dos Morangos com açúcar. E, portanto, cheguei a casa e não aguentei, fui espreitar o livro da actriz. Mas não é que são os Contos Exemplares da Sophia?! De onde terá tirado a ideia de que é uma actriz...
E depois vi o Tejo em dia soalheiro, uma alegria de sol toda à volta da água espelhada e o Bugio lá muito à frente, na lonjura do mar liso. E na escada rolante do metro, toda a gente a andar em câmara rápida, seguia quieta de pés e pernas, uma senhora que tinha sentado o filho no corrimão e o rodeava com os braços, uma mochila pequenina a pender. Hora de ponta, toda a gente a ultrapassá-los. Olhos fechados e rosto encostado no tronco da mãe, o garoto sorria radiante. Estava no céu.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Dia UM


O que é que eu fiz neste Primeiro de Dezembro, feriado nacional  por via da libertação do domínio dos Filipes, reis espanhóis que se eternizavam a reinar em Portugal havia sessenta anos.  Reza a história que a um de Dezembro de mil seiscentos e quarenta,  quarenta benditos conjurados esconjuraram a obediência à coroa espanhola e proclamaram de novo o Portugal independente, defenestrando o traiçoeiro Miguel de Vasconcelos e remetendo à origem e com aviso de recepção, a duquesa de Mântua. Bingo.  E depois ainda houve o convite a D. João, a ver se o senhor duque queria ser rei (se isto é coisa que se pergunte). E ele em Vila Viçosa, hã, hã, hã... não atava nem desatava, pensando em espadeiradas que lhe acertassem e exércitos espanhóis cheios de genica a invadirem o Portugal, e tão bem que se estava no Paço alentejano. E vai daí,  a mulher, que até era espanhola, não esteve com meias medidas e encostou-o à parede, ou aceitas ou vais bater a outra porta, que bem se vê nos olhos dela que foi assim que tudo se passou. Mas o que consta dos autos é  que mais lhe valia ser rainha uma hora que duquesa toda a vida. Seja como for, temos que convir, falou bem.
Pois, mas eu vinha falar do meu primeiro de Dezembro. O assunto nem era a revolução de 1640. Isto porque tenho de começar o calendário. E entrei tão, mas tão bem, com a missa de Bernstein. Coisa mais bonita. Abençoada canseira que me fez correr o dia todo para chegar em cima da hora. Tanta gente em palco (mais de 250 músicos) e todos tão completos no seu papel. E logo eu que tanto gosto de coros: eram vários, o da Gulbenkian, pois claro; os coros participativos e os coros infantis  da Casa Pia de Lisboa e do Instituto Gregoriano; a orquestra da Gulbenkian, a Orquestra Geração e músicos da Escola de Jazz Luís Villas-Boas. Foi um espectáculo ma-ra-vi-lho-so.
E pensar que esta missa foi encomenda de Jacqueline Kennedy  para a abertura do  Kennedy Center for the Performing Arts no ano de 1971. Não me esqueci, bem sei que nessa altura a senhora tinha nome Onassis, mas para mim Onassis não conta como não contou para a D. Jacqueline. Havia de facto um milionário com tal nome e ela usou-lhe poder e influência,  não que lhe existisse.
Obrigada, Bernstein, estou rojada  a teus pés desde a missa. E já sabes, se os anjos te chatearem,  agora que suponho sejas todo colcheias e claves de sol, desabafa à vontade. Conta comigo para o que for, um recado musical, uma pauta preenchida que queiras divulgar, uns cânticos ainda mais celestes que os que ouvi hoje, estás à vontade.
E obrigada a todos que, em palco ou fora dele, deram o seu contributo em arte tão completa. O sabor da qualidade foi prazer raro. Respirei.

sábado, 30 de novembro de 2019

Carrossel


A morte corre em cada um a seu modo. Há os que definham em silêncio como o Lingrinhas. Pensam não se sabe o quê, desorientam na falta do astro que os ilumina, falta-lhes o apetite e a vontade de continuar, afundam. Os que falam e remoem lembranças do morto, como o Mãozinha que não parava de segredar, lembras-te daquela vez. Os que chamam a morte dos seus, qual Gaitinhas que tinha a dita de um avô musical na memória e assim o revivia, não destrinçando se chorava por si ou pelo Amora; os que se espantam por a morte levar outro primeiro, como o Feloso, jungido pelo arfar impressionante e que não aguentava subidas, nós a transportá-lo a pares, cadeirinha tecida a poder de mãos e braços sempre prontos para a sua leveza congestionada. Os que, fleumáticos, assistem de fora e atiram palpites e soluções sem préstimo, como o Engenhocas, se o Paz de alma tivesse regado mais cedo ainda lhe acudia, se não tivessem deixado a cancela aberta, se não houvesse libelinhas, se.  Os que se activam em tarefas inúteis que lhes surgem em urgência de vida e morte. Maria arrasou o jardim, cortou todas as flores e não deixou rebento com  viço. Embebida em desgosto,  montou-o  na sala de estudo e só à noitinha abriu portas. Carteiras, bancos, livros, jogo da glória, tinham sumido. Havia um jardim florido e, à cabeça, a caixinha branca onde o nosso Amora dormia sossegado, tão lindo como sempre, mas sem o moreno que  Maria apreciava a abrir-lhe os braços, anda cá minha bolachinha torrada. Havia Octávio, o nosso Paz de alma, desimportado da vida, a olhar sem ver, olhos tão esquisitos que assustaram Esparguete, achas que ele ficou maluco. E, quem sabe, Octávio se recriminava por nada ter ouvido, por talvez a cancela aberta, por. Ou revia a ternura nocturna do Amora sentado nos seus joelhos unidos onde nascia um cavalinho fogoso, os joelhos em nervosa corrida muar, corpo distendido e feliz que até parecia ter nascido para fazer cavalinho a crianças. E o garoto cavalgando entrecortado de riso, até que o Paz de alma parava a corrida e, como quem estica rédeas, aííí, óóóó!!!, depunha no chão o cavaleiro contristado que, esquecido da sua condição, esticava os braços para o colo e fazia beicinho, mais, mais. Octávio sorria e, sem lhe obedecer, beliscava de manso a bochechinha do Amora e, o cavalo correu muito, está cansado, olha bem o que andámos, temos de dormir. Lá atrás, em remate justo e de carácter, o bando sério dos crescidos encostava na parede. Unidos como tijolos em muro, faziam-se fortes uns aos outros, lágrimas são entretém de crianças e mulheres. E o espanto que nos veio do Mau agoiro a olhar o Amora na sua caminha branca e que desatou em  soluços de inusitada fundura, o resto do muro primeiro arremelgado e depois a avançar esquecido do bloco, animando-o à vez, palmadinhas nas costas, enquanto em mim e Esparguete, um feixe de simpatia se impunha a contragosto. Mau agoiro com a pose em farrapos, criança grande enrodilhada no desgosto e limpando as lágrimas às costas da mão, peito no sobe e desce soluçante, a repetir maquinal, morreu mesmo, morreu mesmo. No centro, a cozinheira em relevo enlutado e sem touca, as mãos gordas no regaço agarradas a uma bóia chamada terço e finalizando cada mistério com um suspiro das entranhas e ladainha específica, ai o meu rico menino que nunca mais o vejo, a que respondia a curiosidade confrangidas das mulheres do povoado e as nossas fiéis costureiras, desembrulhando lenços lacrimosos. A morte do Amora desvelou-nos a face ignorada da cozinheira, uma mulher desgostosa e amorável suprindo a costumeira imagem de força e desdém.



quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Carrossel


Na Casa da Boa Semente, nome próprio do que toda a gente conhecia como Lar dos Rapazes, a morte entrou e desarrumou, pôs tudo de pernas para o ar, ninguém se lembrou de escalas e amontoámo-nos pelos cantos em grupos pesarosos e tristonhos, sem saber o que fazer. Maria entrou em casa de pálpebras inchadas e olhos vermelhos de choro, reuniu-nos na sala de estudo e contou que alguém deixara aberta a cancela da horta e a curiosidade do Amora tinha-o levado até ao tanque. Talvez ele se tivesse debruçado para apanhar uma das libelinhas coloridas que o sobrevoavam constantes. Não se ouviu  barulho, não houve um grito. Octávio cavava ao fundo e só viu  o corpo da criança quando veio regueira acima destapar a saída da água. Neste ponto, Maria puxou do lenço amarrotado,  limpou os olhos, assoou-se  e assegurou, o Amora está no céu, os inocentes vão todos para o céu.  Mas eu via a laranjeira e o limoeiro assistindo impotentes,  tão próximos dele que se afogava ali à frente e sem poderem estender um braço, dar-lhe uma mão. Via a oliveira tão perto que as azeitonas lhe caíam dentro do tanque, sem conseguir mover sequer uma folha perante o espanto amedrontado do garoto que se morria sem dar conta de já estar nele a morte. O Amora a abrir e fechar a boca como um peixe e não era peixe, a estender a mãozinha pequena sem apoio e as libelinhas mais próximas a levantar voo com suas asas de rede multicor. O Amora que se perdeu no mar de água. E  depois as duas mãos quietas, a água à vontade e as libelinhas zanzando como se tudo igual.
Entretanto, Maria incumbiu a cozinheira de nos guardar, veio junto do Lingrinhas, pegou-o  pela mão e saiu com ele. Só ela, Octávio e o Lingrinhas trataram dos preparativos. A morte exige o seu momento, requer a nossa atenção. A vida de Amora também requeria atenção e era vida. Revivi tempos de curiosidade mórbida, achas que engoliu muita água; de certeza tem a barriga inchada; deve estar de boca aberta, não é; e agora onde é que o metem, os caixões são tão grandes e ele é tão pequenino.
Contra seu hábito, a cozinheira isolou-se em silêncio espartano, apenas entrecortado por lágrima teimosa a que juntava o lamento, ai o meu rico menino. Depois, o sentido prático prevaleceu. Avaliou-nos por alto e entendeu que não precisávamos de guarda, não havia ânimo para travessura ou maldade. E desandou.  Pelo que ouvimos, parecia esconjurar a dor entrechocando tachos, panelas e tampas. Mas, daí a um bocado, cheirava à sopa do jantar. A mulher fazia o que tinha de ser feito, precisávamos de alimento. Pensei no Lingrinhas, magrinho e branquelas, duas falripas loiras sempre penduradas sobre os olhos descorados. O encanto vinha-lhe da ternura e cuidado que dedicava ao irmão. Sentados na mesma mesa, dava-lhe a comida à boca, obrigava-o a beber água e, no final das refeições, em desvelo materno, limpava-lhe boca e mãos, os crescidos em troça  invejosa, “olha a mãezinha”. O Amora era doido pelo irmão, obedecia-lhe como a um Deus e só adormecia de mão na mão. Lembrei-me das noites sem tia Emília, dos dias compridos sem a voz dela a chamar-me, do cheiro da nossa cozinha. E tive pena do Lingrinhas.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Carrossel


Pela tarde, nas horas de modorra suada,  continuava, a pedido de uns e outros, a contar as minhas andanças no bairro da Venezuela. Por essa altura já tinha desistido da verdade e enveredava temerário pelo mundo da fantasia que agradava sobejamente a todos nós. O bairro da Venezuela tornou-se um país e o pequeno pinhal que o circundava a sul e oeste, uma floresta densa onde tudo acontecia. Havia noites de luar em que os lobisomens saíam a passear nas ruas desertas do povoado e, até clarear,  se faziam donos de tudo, e livre-nos Deus de alguém ser apanhado por algum, era capaz de virar bicho ou se transformar também em lobisomem e ficar feio como a noite. Além disso, todos o sabiam, os lobisomens buscavam mulheres bonitas e, se alguma arriscasse pôr o nariz fora de portas, era arrebatada para nunca mais, tornava-se um ser da floresta. Noutros dias, os piratas davam-me conta do juízo e havia tesouros escondidos em cavernas indistintas, com chave de Ali babá para franquear a entrada a corredores das mil e uma noites e onde tudo era possível.  Enquanto inventava, suspendia a realidade. Esquecia as maçãs e a mentira corajosa de Esparguete que tanto me embevecia como moía o juízo. O meu poeta-de-lava era o campeão dos assobios, das ideias mirabolantes, dos planos sem fim à vista; não era um escalador de muros, as alturas afligiam-no, tinha tonturas, tremiam-lhe as pernas e a vista embaciava. 
Foi numa dessas horas de a minha voz a ressoar em histórias de um lugar a fingir, que a porta se abriu num repente e o Mãozinha, muito pálido, disparou, o Amora morreu. Afogou-se no tanque de rega. E houve um silêncio do tamanho do mundo. Um silêncio varado de dor espantada. Sem voz ou ruído. Ninguém se mexeu, não houve cadeiras a arrastar. Era o silêncio do nosso coração a desmanchar de tristeza e da nossa mente a assimilar o incrível. O Amora era o menino de todos. O Amora não morria, tinha só três anos.


segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Carrossel


Assustado, vi o sorriso atravessadiço, a troça no arrepanhar da boca, maldade porosa espalhada pelo corpo. Sem abrandar o garrote das mãos  mofou, dois pascôncios a fazerem-se espertinhos, hem. E depois, a abanar-nos como folhas, silvou em fúria que a escuridão protegia, aqui quem manda sou eu, ouviram. Ninguém rouba sem a minha ordem e todos me trazem o que roubam. Pensam que não dei pelos segredinhos, que não percebi que tramavam alguma, seus burros sem cabresto. Eu esgazeava em tremedeira incontida, apavorado com o ímpeto colérico de Mau agoiro, o crescido mais bruto e desalmado do Lar, de quem nunca sequer me aproximara. Debruçou-se sobre nós, sentia-lhe o hálito quente a vitoriar, agora nem as provam e o ladrão vai roubar para mim sempre que me apeteçam. E, com uma ponta de curiosidade, quem é que as roubou?  Estarreci. No silêncio do meu terror todo tremeliques, vi e ouvi Esparguete a acusar-se, fui eu. E depois a completar a obra, desqualificando-me, ele é um novato, só ajudou a escondê-las. Num repente inesperado, Mau agoiro largou-nos,  puxou a mão atrás e atirou-lhe um murro que o estatelou. E já a afastar-se, bico calado ou levam os dois, e ai de ti se tornas a roubar  à tua conta. Mal o vi pelas costas corri a ajudar Esparguete a levantar-se. Agarrava o nariz choramingando de dor, aquela besta partiu-me a cana do nariz de certeza, olha para o sangue. Foi quando reparei que alguma coisa lhe pingava por entre os dedos. Levei-o até à luz e assustou-me a desgraça de sangueira que escorria. Lembrei-me dos cuidados de tia Emília e aconselhei, põe a cabeça para trás que eu guio-te, temos que ir contar à Maria. E ele, está bem, mas eu é que falo, senão ainda levo uma surra que nunca mais me endireito.
À vista do sangue e do inchaço, Maria pouco atentou na mentira de Esparguete: andávamos em volta da casa e, na pouca luz,  tinha tropeçado e caído de borco e o nariz despedira em cima de uma pedra. Durante oito dias o meu amigo foi retirado das escalas de trabalho e Maria mantinha-o dentro de casa e perto de si para evitar maior mal. Eu tinha autorização para visitá-lo uma vez por dia visto que pernoitava sozinho no quarto adjacente ao de Maria, “o quarto das visitas” que só era usado pelos doentes;  nunca houve visita que ali dormisse.
A meio do rosto miúdo, adiantava-se aquela batata que foi ficando negra, depois arroxeou, e chegou a esverdear antes de, aos poucos, ir voltando a ser um nariz. Os outros espreitavam-no à vez e corriam exclamativos, chiiiii, tá a ficar roxo, roxo, roxo; se calhar fica assim para sempre. A comentários desta natureza as minhas entranhas mirravam de receio e eu confrangia de remorso e gratidão. Bem sabia a quem era destinado aquele soco. Ao invés, Mau agoiro passava sem olhar e procedia como se não nos conhecesse. Mas eu tinha pesadelos com Esparguete a subir o muro, sonhava que caía e se partia todo, que lhe davam um tiro, que morria.   Acordado, fazia votos para que as maçãs fossem muitas e Mau agoiro não quisesse outras; que uma estivesse envenenada como a de Branca de neve e ele morresse; que as comesse num repente e lhe desse uma caganeira tão grande que ficasse sem forças, deixasse de andar e  mal falasse. Mas a vida só por acaso se faz com os desejos dos homens e nenhum dos meus anseios se materializou.