O
dia apareceu embrulhado em nuvens, sem gota de sol. No ar quase morno da manhã,
a humidade escura que precede o espírito
da chuva. Os prédios sem um aceno, quietos na fixidez cinzenta, uma mansidão expectante
no recorte das árvores. Dissolvida no chão que geme água, a resistência das
últimas folhas. Aqui e ali, gente esgrouviada, roubada à cama por relógios
fisiológicos presos à trela. Gabardines sobre o pijama, sweats com o carapuço puxado
à testa, o fumo que sobe de um lenço e rolos indiscretos, alheio ao cão que encomprida
e todo se estica num parto doloroso de nado morto. Mais à frente, a montra
iluminada de estabelecimento madrugador, apetece. O odor quente do café chama
os passantes. Mas há a zunida dos transportes, a bica tomada à pressa, um ou
dois casais que mastigam, uma garota magra que tamborila no balcão, rabo de
cavalo farto e insubmisso a uma confusão de ganchos, uma data de anéis pequenos
que se escapam e lhe dão graça ao rosto. Terá treze ou catorze, esta libélula sem
artifício. A graça desajeitada dos membros, a palidez afilada das mãos, certo
jeito de gazela assustada, destacam-na. Ainda não a veste a vaidade juvenil das
formas redondas, tudo nela se prepara, nada é definitivo. Faz bem à alma vê-la
assim, mochila às costas e embrulhinho a sumir no bolso do casaco, o andar desengonçado
e inconsciente de si e do bem que transporta.
Logo
ali, o metro é íman que engole pressas e vagares. Indiferentes ao bulício, dois
homens descarregam caixas de fruta de
uma camioneta junto ao passeio e alombam com elas até ao supermercado.
Bea, que texto espectacular! Que olhar atento ao vai-vem de "pressas e vagares" de "gente esgrouviada" nas entranhas da cidade.
ResponderEliminarAmei!
Beijo.
Não se fie. Invento qb.
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