sábado, 31 de dezembro de 2011
O Oitavo Passageiro (Parte 21)
XI
Havia menos confiança agora nos rostos de todos eles quando se reuniram no cassino dos oficiais. Ninguém procurava esconder isso e muito menos Ripley e Parker.
Tendo visto cara a cara o perigo que os confrontava, só podiam temer.
Dallas estudava uma planta recente do Nostromo. Parker guardava a porta, olhando de quando em quando, nervosamente, para o corredor.
— Não sabemos exatamente como era, mas era grande — disse o engenheiro no silêncio geral. — Desceu sobre ele como um morcego gigante.
Dallas levantou os olhos do plano.
— Você está absolutamente seguro de que ele arrastou Brett para um respiradouro?
— Desapareceu com ele num dos canos de refrigeração — Ripley riscava as costas de uma das mãos com as unhas da outra. — Eu o vi, estou certa disso. De qualquer maneira não havia outro lugar, outra saída.
— Não resta dúvida — disse Parker. — Ele está usando o sistema de ventilação e refrigeração para se locomover. E foi por isso que não o localizamos com o rastreador.
— Os condutos de ar — Dallas parecia convencido — faz sentido. Jones também se esconde neles.
Lambert brincava com o café, mexendo a bebida escura com o dedo distraído.
— Brett pode estar vivo.
— Não — disse Ripley. — Não tem chance alguma estar vivo. — Ela não estava sendo fatalista, apenas lógica. — O bicho o puxou para cima como a um boneco de trapos.
— Para que, eu me pergunto? — disse Lambert. — Por que levá-lo, ao invés de matá-lo no lugar?
— Talvez precise de um incubador, como na sua primeira forma precisou de Kane — sugeriu Ash.
— Talvez precise de comida — disse Ripley concisamente. E estremeceu.
Lambert largou o café.
— De qualquer maneira, são dois fora do jogo e cinco ainda por derrubar, do ponto de vista do alienígena, quero dizer...
Parker girava e regirava o tubo elétrico nas mãos. De repente, virou-se, e lançou-o, com força contra uma parede. O tubo dobrou-se e caiu no chão com estrondo.
— Voto por cortarmos o filho da puta com o laser e agüentarmos as conseqüências.
Dallas procurou mostrar simpatia.
— Eu sei como se sente, Parker. Nós todos gostávamos de Brett. Mas temos de conservar a cabeça fria. Se a criatura é agora tão grande como vocês dizem, terá suficiente ácido no corpo para abrir um buraco do tamanho desta sala na quilha do Nostromo. Isso sem falar no que será capaz de fazer com os circuitos embutidos no casco, e são muitos. Não podemos correr tal risco. Ainda não.
— Ainda não? — a consciência da própria fragilidade anulava muito da fúria de Parker. — Quantos além de Brett terão de morrer antes que você saiba como enfrentar essa ameaça, capitão?
— Não adiantaria, Parker — interveio Ash.
O engenheiro voltou-se para fazer-lhe face e fechou a cara.
— O que quer dizer?
— Que seria preciso atingir um orgão vital com o laser e na primeira tentativa. Segundo a descrição que vocês dois fizeram, o ser é muito ágil, além de grande e forte. Será razoável presumir que conserva a mesma capacidade de regeneração rápida que o maniforme exibia. O que significa que ou a gente o destrói no primeiro momento ou ele cai em cima da gente.
— Já seria difícil fazer isso tendo um homem como adversário. Será humanamente impossível fazê-lo contra o alienígena por não sabermos onde estão os pontos vitais. Nem sequer sabemos se terá pontos vitais. Entende?
Ash procurava ser compreensivo, tal como Dallas tinha procurado, antes dele. Todo mundo sabia como eram chegados um ao outro os dois engenheiros.
— Pode imaginar o que aconteceria? Vamos dizer que dois de nós conseguissem confrontar a criatura numa área aberta em que fosse possível atirar nela, o que não é provável que aconteça. Usaríamos o laser, digamos, meia dúzia de vezes antes que ele nos despedaçasse a todos. As feridas cicatrizariam depressa, a tempo de preservar a vida do alienígena; mas não suficientemente depressa para preservar a nave, que ficaria cheia de buracos feitos pelo ácido. O fluido poderia queimar os circuitos que nos garantem ar respirável ou que alimentam as luzes, por exemplo.
— Você considera tal fantasia absurda? Pois eu não. Dado o que sabemos da criatura. Perderíamos mais dois homens e, em matéria de veículo, estaríamos pior do que estávamos antes de dar-lhe batalha.
Parker não respondeu. Parecia triste. Finalmente, resmungou:
— Então que diabos vamos fazer?
— O único plano que tem chance de êxito é o antigo — disse Dallas. E, batendo na planta da nave: — Descobrir em que tubo ele se esconde, forçá-lo a entrar na câmara de compressão, e lançá-lo no espaço.
— Mas como entrará? Já lhe disse que a criatura é grande — cuspiu com desprezo, nos restos da vara metálica que ele mesmo havia construído. — Não vamos conseguir tocar um gado daqueles com varas desse tipo...
— É a primeira vez que Parker tem razão, mas concedo-lhe o ponto. Porém, precisamos forçá-lo a ir para uma comporta, de onde seja possível ejetá-lo. Como?
Ripley correu os olhos pelo grupo.
— Acho que o departamento de ciências deve agora atualizar nossos conhecimentos sobre o intruso. Tem alguma idéia, Ash?
— Bem, ele parece estar adaptado a uma atmosfera rica em oxigênio. O que talvez tenha alguma coisa a ver com seu crescimento espetacular nesta fase.
— Nesta fase? — inquiriu Lambert? — Você acha que pode evoluir para outra coisa?
Ash abriu as mãos num gesto de desamparo:
— Sabemos tão pouco dele! Devemos estar preparados para tudo. Já se metamorfoseou três vezes: de ovo para maniforme, de mão para a coisa que saiu do peito de Kane e agora para essa forma muito maior e bípede. Não devemos crer que seja a fase final na escala da sua evolução — fez uma pausa e acrescentou: — A próxima forma poderá ser maior ainda e mais poderosa.
— Muito animador — disse Ripley. — Mais alguma coisa?
— Além de adaptar-se à nova atmosfera, adaptou-se também com certeza às condições de alimentação com que se viu confrontado. Pode viver com muito pouco, numa diversidade de atmosferas e, possivelmente, sem atmosfera nenhuma por tempo indefinido.
— Não sabemos nada, porém, sobre sua capacidade de suportar mudanças de temperatura. Está confortável aqui, no Nostromo. Considerando a temperatura média do mundo de onde proveio, o frio intenso não parece lhe fazer mal. Talvez a forma primitiva, de ovo, resistisse melhor ainda ao frio do que a atual. Há precedentes disso.
— Muito bem — interrompeu Ripley. — E se elevássemos a temperatura? O que aconteceria?
— Experimentemos — disse Ash. — Não podemos elevar a temperatura da nave inteira pela mesma razão pela qual não podemos tirar-lhe todo o ar. Não há reserva de ar suficiente em nossos trajes espaciais, a mobilidade é limitada, e total a vulnerabilidade quando nos congeladores, etc. Mas a maior parte dos seres teme o fogo. E não será preciso aquecer tudo.
— Poderíamos estender fios de alta voltagem de parede a parede em certos corredores e atraí-lo para um deles. Estaria literalmente frito — sugeriu Lambert.
— Lambert, não é com um animal que estamos lidando. Ou se é, trata-se de um animal muito sagaz. Não creia que vá entrar de cabeça em qualquer obstáculo como um fio ou qualquer outra coisa que obstrua a passagem num óbvio lugar de trânsito como um corredor. Sua argúcia já foi demonstrada pela escolha inteligente dos canos de ventilação de preferência aos corredores, para circular pelo Nostromo.
— Acrescente que certos organismos primitivos, como o tubarão, são sensíveis a campos elétricos. Pesando tudo isso, a idéia não presta.
— Talvez ele seja capaz de detectar os campos elétricos que nossos corpos geram — disse Ripley, sombriamente. Talvez seja assim que ele nos localiza.
Parker duvidava disso.
— Acho que depende dos olhos. É assim que as coisas geralmente são. Uma criatura tão engenhosa, tão cheia de talentos, provavelmente usa mais de um processo para seguir a gente e para saber o que se passa.
— De qualquer maneira não gosto da idéia de estender fios de alta tensão pelo meio da casa — disse Parker, muito vermelho. — Também não gosto dessas astúcias. Quando a coisa for atirada para fora da comporta, quero estar presente, quero vê-la morrer — calou-se por um momento, antes de acrescentar: quero vê-la gritar como Brett.
— Quanto leva para ligar duas ou três unidades de incineração? — perguntou Dallas.
— Vinte minutos. As unidades básicas já estão lá, no depósito. É só modificá-las para uso manual.
— E poderá torná-las realmente poderosas? Não podemos ficar na situação que Ash descreveu. Os lasers não nos bastam agora. Queremos algo que de fato detenha essa criatura.
— Não se preocupe — a voz de Parker era fria, muito fria. — Eu as fixarei de modo a que cozinhem tudo aquilo em que tocarem.
— Parece nossa melhor oportunidade — o capitão lançou um olhar à mesa. — Alguém tem idéia melhor?
Ninguém tinha.
— OK — Dallas afastou sua cadeira da mesa, levantou-se. — Quando Parker aprontar os lança-chamas, começaremos. Iremos daqui para a retaguarda da nave e para baixo, até o deque C e o depósito em que Brett foi atacado. De lá procuraremos localizá-lo.
Parker tinha suas dúvidas e ventilou-as.
— A coisa subiu com ele pela armação metálica do teto antes de entrar nos canos. Será muito difícil segui-lo naquelas alturas. Não sou nenhum macaco.
Olhou desafiadoramente para Ripley, à espera de algum comentário maldoso. Mas ela não fez nenhum.
— Quer dizer que prefere ficar sentado aqui e esperar que ela venha buscar você? — perguntou Dallas. — Quanto mais tempo nós o deixarmos na defensiva, melhor para nós.
— Exceto por uma coisa — objetou Ripley.
— E que é...
— Não temos certeza se a criatura esteve alguma vez na defensiva... — e enfrentou o olhar dele sem pestanejar.
Os lança-chamas eram mais maciços e pesados que os tubos elétricos e pareciam menos eficazes. Mas os tubos haviam funcionado como se esperava deles, e Parker lhes assegurava que os incineradores também funcionariam. Porém evitou todavia, de fazer uma demonstração. Os lança-chamas eram tão poderosos que poderiam chamuscar o convés. O fato de que também estava confiando sua vida àqueles artefatos era prova suficiente de sua confiança neles. Prova para todo mundo, mas não para Ripley que começava paranoicamente, a desconfiar de tudo e de todos. Sempre tivera, aliás, um grão de paranóia. E os acontecimentos recentes só poderiam agravar isso. Ela mesma começava a preocupar-se tanto com o que se passava na sua cabeça quanto com o alienígena. Naturalmente, tão logo encontrassem e matassem o alienígena, seus problemas mentais se desvaneceriam. Ou não?
Agrupados, num apertado nó de medo, os pobres humanos avançaram cautelosamente do refeitório até o nível B. Preparavam-se para prosseguir escada abaixo quando os dois rastreadores emitiram simultaneamente os mais frenéticos sinais. Ash e Ripley apressaram-se em desligar o som. Mas acompanharam as trêmulas agulhas por mais uns doze metros. Aí, um outro som, apavorante, se fez audível: o som de metal que se rasga.
— Calma — pediu Dallas. E apontou seu lança-chamas para o fundo do corredor. Os ruídos continuaram mais claros agora. Sabiam de onde vinham. — Do depósito de comida — disse baixinho aos outros. Lá de dentro.
— Escutem! — disse Lambert, pasma com o que ouvia. — Jesus, ele deve ser enorme!
— É grande — disse Parker, em voz baixa. — Eu o vi, lembre-se. Carregou Brett como se fosse...
Interrompeu-se no meio da frase. A lembrança de Brett sufocava qualquer desejo de conversa.
Dallas levantou a boca do lança-chamas.
— Há um duto que abre do lado de trás da dispensa. Deve ter entrado por ele — e, com um olhar para Parker: — Você tem certeza de que essas coisas funcionam?
— Fui eu mesmo que os fiz, não?
— É isso mesmo que nos põe em dúvida — disse Ripley.
Continuaram. Os sons também continuavam, à frente. Quando se viram a postos, diante do compartimento fechado, Dallas olhou para Parker, depois para a maçaneta da porta. Com alguma relutância, o engenheiro empunhou a pesada saliência. Dois passos atrás dele, Dallas aprontou o lança chamas.
— Agora!
Parker escancarou a porta e pulou para o lado. Dallas apertou o grosseiro botão que fazia o engenho funcionar. Um leque surpreendentemente largo de fogo cor de laranja encheu a entrada do depósito de comida obrigando todo mundo a recuar. Só Dallas, ignorando o calor intenso, que lhe queimava a garganta, avançou rápido e disparou outra rajada lá dentro. Depois, uma terceira. Estava agora em cima da soleira, que era alta, e tinha de contorcer-se um pouco para poder atirar para os lados.
Vários minutos foram gastos, nervosamente, à espera, do lado de fora. Cumpria aguardar que o calor diminuísse antes de entrar. Pois o calor era ainda tanto que tinham de andar com cuidado para não esbarrarem nas caixas de metal ou nas paredes, quentes como as de um forno.
O próprio depósito era uma ruína. O que o alienígena começara o lança-chamas acabara. Longas marcas negras podiam ser vistas zebrando as paredes, prova da potência concentrada do incinerador. O fedor de componentes de alimentos artificiais reduzidos a carvão, misturado ao dos invólucros plásticos queimados, era insuportável naquele espaço confinado. Mas nem tudo fora destruído. Intocadas pelas chamas havia por toda parte, evidências da ação do intruso. Pacotes de comida de toda espécie espalhavam-se pelo chão, abertos de maneiras nunca sonhadas pelos seus fabricantes.
Latas de metal sólido, que ainda se chamavam latas apenas por tradição, haviam sido descascadas como frutos. Ao que podiam ver, o alienígena fizera a maior parte da destruição. Pouco deixara para o lança-chamas.
De armas prontas, remexeram nos destroços. A fumaça era intensa e acre. Queimava-lhes os olhos. Mas a inspeção detalhada de todas as pilhas de suprimentos arruinados não produziu a descoberta. Desde que toda a comida usada no Nostromo era artificial e homogênea em sua composição, os ossos que encontrassem pertenceriam necessariamente ao alienígena. Mas a coisa mais próxima de ossos que acharam eram reforços de engradados e caixotes.
Ripley e Lambert quase se encostaram para descansar numa parede ardente. Lembraram-se em tempo, porém.
— Falhamos — disse a oficial de segurança.
— Então onde, diabo, está ele?
— Lá — disse Dallas.
Todos se voltaram para ele, que estava junto da parede enegrecida, atrás de uma pilha de plástico preto derretido. Com o lança-chamas, apontava para a parede.
— Foi por ali que fugiu.
Aproximando-se, Ripley e os outros viram o que o corpo de Dallas tinha ocultado: a esperada abertura do ventilador. A grade protetora que normalmente obstruía a entrada estava em pedaços no chão.
— É tempo de parar um pouco.
— O que está dizendo? — falou Lambert.
— Que isto poderia terminar o trabalho para nós. Esse duto comunica com a principal comporta de ar. Há só uma outra saída bastante grande no caminho da criatura, e nós podemos cobri-la. Então, o obrigamos a entrar na comporta e dali ela será atirada no espaço.
— Hum — disse Lambert, num tom que mostrava todo seu ceticismo. — Nada mais fácil, não é? Você terá apenas de entrar de gatinhas atrás dela, não errar o caminho nesse labirinto até encontrá-la face a face. Ai é só rezar para que a fera tenha medo de fogo.
O sorriso de Dallas ficou amarelo.
— A adição do elemento humano parece matar a simplicidade do plano, não? Mas deve funcionar. O alienígena tem medo de fogo. E essa é a nossa grande oportunidade. Desse modo, não temos de encurralá-lo e esperar que as chamas o destruam a tempo. Ele pode usar uma tática de retiradas estratégicas... mas só até a última comporta, a da destruição.
— Tudo muito bonito — concordou Lambert. — O problema é: quem irá atrás dele?
Dallas correu os olhos pelo grupo à espera de um voluntário. Quem se apresentaria para o fatal brinquedo de pegador? Ash era, de todos, o único com nervos de aço, mas Dallas não confiava nele. Além disso, o projeto em curso - descobrir um nulificador para o ácido da criatura — desclassificava-o como caçador n.° 1.
Lambert fazia-se de valente, mas perderia a cabeça, com certeza, numa prova daquelas, e mais depressa do que os outros. Quanto a Ripley, seria magnífica, mas só até o momento da confrontação. Não estava certo se ficaria petrificada ou não. Mas, e se ficasse? Não podia arriscar a vida dela. Quanto a Parker, ele sempre pretendia ser um duro... É verdade que nunca parava de reclamar. Mas executava, se preciso, qualquer trabalho pesado; e exatamente no prazo que lhe dessem. Por exemplo, os tubos de choque e, agora, os lança-chamas. Além disso, fora seu amigo que o alienígena levara. E ele conhecia os cacoetes dos lança-chamas melhor do que ninguém.
— Bom, Parker, você sempre desejou participação total e bônus de fim de viagem...
— Sim. E daí?...
— Entre no cano.
— Por que eu?
Dallas pensou em dar-lhe as várias razões. Mas decidiu simplificar a história.
— Quero que faça jus à sua cota, só isso.
Parker deu um passo atrás.
— Não adianta. Pode ficar com a minha cota. Pode ficar com o meu salário se quiser, todo ele. Meu salário desta viagem — e mostrando a boca do cano: — Eu não entro naquilo.
— Vou eu, então — disse Ripley.
Dallas encarou-a: ela acabaria por apresentar-se como voluntária, mais cedo ou mais tarde. Mulher estranha. Sempre a subestimara. Todos, aliás.
— Esqueça.
— Por que não?
— Isso mesmo, por que não? — perguntou Parker irritado. — Se ela está pronta para ir, por que não deixar que vá?
— A decisão é minha — explicou Dallas, tenso. Depois encarou a mulher, que tinha uma expressão de ressentimento e embaraço. Ela não entendia por que a tinha recusado. Bem, não fazia mal. Um dia, ele explicaria. Se pudesse explicá-lo primeiro a si mesmo.
— Bom — disse. — Você guarda a saída de ventilação. Ash, você me mantém aqui, e cobre esta saída, para a eventualidade de que ele fique de algum modo atrás de mim, ou passe através de mim. Parker e Lambert cobrem a saída lateral de que eu já falei.
Todos o olhavam com diferentes nuanças da mesma compreensão. Não havia dúvida sobre quem entraria no encanamento.
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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
A Internet e as Bibliotecas na Ficção Científica - 5/5
Como serão os bibliotecários do futuro? Bem, eles podem ser como todo mundo, como você e eu, trabalhando em um mundo com mais informação e maneiras melhores de se lidar com isso. Ou podem ser programas de computador. Os cientistas sugerem que não há nenhuma razão para não poder existir programas que encontrem a informação onde quer que seja armazenado, para examiná-la quanto as necessidades e desejos do usuário, e correlacioná-la com outras informações para fazer novas e úteis sínteses.
Esses programas podem até mesmo possuir personalidades agradáveis, para que sejam mais “amigáveis" (user friendly). Frederik Pohl, em seu romance “Gateway” (1977) imagina um programa de computador psiquiátrico chamado Sigfrid von Shrink e mais tarde na Saga “Heechee” (1980, 1984, 1987) um programa que tem a aparência, personalidade e o nome de Einstein.
Em "Snow Crash" (1992) de Neal Stephenson, um mundo totalmente dependente dos computadores está um caos devido a um vírus de computador chamado Snow Crash. O herói, em determinado momento, procura a ajuda de um Bibliotecário, um programa de computador personificado como "um senhor agradável, em seus cinquenta anos, de barba grisalha e com olhos azuis brilhantes, vestindo um suéter grosso de lã com decote em V sobre uma camisa de trabalho".
Ele é o bibliotecário ideal, fornecendo informações sobre tudo imaginável e fazendo conexões. Ele é auto-programado, mas foi originalmente escrito por "um pesquisador da Biblioteca do Congresso que aprendeu sozinho a programar". O herói (chamado Hiro, aliás) acrescenta: "Assim, ele era uma espécie de meta-bibliotecário."
O que alguns escritores apresentam como um perigo futuro é o computador inteligente, a inteligência artificial que desencadeia suas próprias prioridades, como o Colossus de D.F. Jones e AM de Harlan Ellison. O computador em busca de sua própria identidade ou perseguindo seus próprios fins é uma das principais preocupações do ciberpunk e um par de Inteligências Artificiais estão por trás da ação de “Neuromancer”, de Gibson.
Tais perigos são vistos em muitos outros romances contemporâneos, em várias das obras recentes de Greg Bear, por exemplo, “Blood Music” (1985), “The Forge of God” (1987) e sua sequência “Anvil of Stars” (1992), e “Queen of Angels” (1990).
Mas as mais poderosas I.A.s imaginadas são de Vernor Vinge em “A Fire Upon the Deep”, onde programas de software sencientes vagam pela galáxia até que se cansam de interações humanas e retiram-se para o espaço vazio entre as galáxias.
Estas visões de futuro em que as bibliotecas são ainda mais importantes para a sociedade do que são hoje e bibliotecários podem ser programas de computador, oferecem uma dica do que está por vir para todos nós - aqueles que reunirão informações, aqueles que as consumirão, e aqueles que dela serão os guardiões e os taxonomistas (Taxonomia é o ramo da Biologia e da Botânica que cuida de descrever, identificar/classificar os seres vivos, animais e vegetais. Também é a parte da gramática que trata de classificação das palavras.)
Apenas a superfície do que será este futuro tem sido arranhada por escritores de ficção científica e só alguns poucos exemplos foram citados aqui; a mente do escritor de ficção científica, afinal, está preocupada com a escrita, o entretenimento, e não em prever o futuro. No processo de entretenimento, no entanto, o escritor de ficção científica tem a chance de nos fazer imaginar mais dramaticamente a natureza dos problemas que enfrentaremos.
John W. Campbell, disse em 1953 que "toda ficção são sonhos escritos. Ficção científica consiste em esperanças, sonhos e medos (sonhos ou pesadelos) de uma sociedade tecnológica."
Ele também disse que a ficção científica nos permite praticar em uma área não-prática.
Nenhuma das visões citadas aqui é suscetível de se tornar realidade, assim como foram imaginados, ou mesmo substancialmente como foram imaginadas. Mas vamos encontrar computadores - ou aquilo para o qual o computador evoluirá e para o qual nós ainda não temos um nome - mais envolvidos em reunir e distribuir informação.
Todo o processo ineficiente de publicação com seus erros de cálculo, superprodução, subprodução e desperdício, será revolucionado por algum empreendimento, talvez um método de produzir livros por computador, talvez automaticamente gravados em circuitos que possam ser lidos como um livro.
“Friday”, o romance de Heinlein, descreve a leitura de um livro de papel virando as páginas no computador sem removê-lo do seu ambiente de nitrogênio. Mack Reynolds, em várias histórias em um futuro próximo, descreve a criação de obras de arte de todos os tipos que são colocadas em um computador central e pagos por alguém que deseja tê-los reproduzidos em um terminal caseiro.
Isaac Asimov, em um discurso para a Associação de Livreiros Americanos em 1989, tinha uma palavra de conforto para os tradicionalistas entre nós. Ele fez uma defesa apaixonada da sobrevivência do livro, quando pediu para seu público imaginar um dispositivo que "poderá ir a qualquer lugar, ser totalmente portátil... Algo que possa ser iniciado e interrompido à vontade [e] não necessitar de energia elétrica para operar".
Este dispositivo de sonho, é claro, é o livro.
"Ele nunca vai ser ultrapassado porque representa o mínimo de tecnologia com o máximo de interação que você pode ter."
Mas, na minha imaginação, eu vejo uma máquina-livro. Parece com um livro e vira páginas como um livro ou parece fazê-lo, mas as informações são exibidas nas páginas, juntamente com informações que podem ser expandidas ou ilustradas à vontade, e um tipo de cassete ou chip pode ser inserido a qualquer momento. Ou, ainda mais flexível, os usuários podem aproveitar da rede de informações que permeará nossas vidas futuras como as ondas de rádio e televisão permeiam hoje.
Para demonstrar que as visões têm uma maneira própria de realizar-se - o processo vai da visão para a ficção e daí até a realidade - Ben Bova, em 1989, produziu um romance em quadrinhos chamado "Cyberbooks" no qual ele descreve a invenção de um livro eletrônico: uma máquina do tamanho de livro que seria vendida por cerca de 200 dólares em que os leitores inseriam fichas que custavam apenas alguns centavos.
A graça gira em torno da invenção e os problemas em ser aceito e colocado em produção por causa das dificuldades que iria criar, não apenas para os bibliotecários, mas ainda mais para os editores, distribuidores e a indústria madeireira. Mas será que vai acontecer? Com a visão à 2/3 do caminho para a realização, exceto por um declínio catastrófico no nosso nível tecnológico, o livro eletrônico é inevitável.
Onde neste quadro estará o escritor, o acadêmico, o professor, o bibliotecário?
Isso cabe a nós imaginar. Se pudermos imaginá-lo com sucesso, este é o trabalho para todos que desejam ser o mestre da mudança, ao invés da vítima, estaremos realizando uma função essencial e obtendo uma enorme satisfação ao fazê-lo.
A missão da ficção científica é a de nos ajudar a imaginar melhor.
James Edwin Gunn (nascido em 1923 em Kansas City), escritor ganhador de diversos prêmios (Hugo, Grande Mestre pela SFFWA) , com destaque também como editor, antologista e estudioso do gênero é diretor fundador do Centro de Estudos de FC da Universidade do Kansas, EUA
Adaptado do original Libraries in Science Fiction de James Gunn http://www2.ku.edu/~sfcenter/
Bibliotecas digitais e suas utopias - Luis Fernando Sayão
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
A Internet e as Bibliotecas na Ficção Científica - 4/5
Em “Twilight” de John Campbell, a espécie humana em declínio perdeu sua característica mais humana, a curiosidade, e seus viajantes do tempo programam uma máquina que irá produzir uma máquina curiosa. Como conseqüência, os leitores percebem no final da história que, embora a humanidade possa morrer, ao menos naquilo que é definitivamente humano, a curiosidade, ela vai continuar.
Mas em muitas histórias, como “Colossus” (1966) de D.F. Jones (filmado em 1970 como "Colossus: The Forbin Project”), o computador assume o controle e destrói a liberdade humana. Lançado um ano antes, o filme “2001: Uma Odisséia no Espaço” fornece a ameaça arquetípica do computador que enlouquece antes de um dos tripulantes o lobotomizar.
O perigo do dispositivo de armazenamento e manipulador de dados que chamamos de computador pode ser melhor resumido em um conto de 1954 de Fredric Brown intitulado “Answer”. Será que existe uma massa crítica para a consciência?
Um computador com tantas ligações quanto o cérebro tem sinapses, os cientistas nos dizem, seria tão grande como uma cidade ou um quarteirão, ou algo assim. Quantas ligações são necessárias para criar consciência? Os computadores de Brown estão ligados entre galáxias e é feita a pergunta que por tanto tempo tem afligido a humanidade:
[Dwan Ev cerimoniosamente soldou a ligação final com ouro. Os olhos de uma dúzia de câmeras de televisão o assistiram e o sub-éter em todo o universo foi invadido pelas fotos do que ele estava fazendo.
Ele endireitou-se e acenou para Dwar Reyn, em seguida, mudou-se para uma posição ao lado do interruptor que completaria o contato. O interuptor que conectaria de uma só vez, todas as monstruosas máquinas de computação de todos os planetas povoados no universo – 96 bilhões de planetas - o supercircuito que conectaria todos em uma supercalculatora, uma máquina cibernética que combinava todo o conhecimento de todas as galáxias.
Dwar Reyn , depois de um momento de silêncio, disse: "Agora, Dwar Ev!"
Dwar Ev acionou o interruptor. Houve um zumbido forte, o aumento do poder de 96 bilhões de planetas.
Luzes piscavam ao longo do painel de quilômetros de comprimento.
Dwar Ev recuou e respirou fundo.
"A honra de fazer a primeira pergunta é sua, Dwar Reyn".
"Obrigado", disse Dwar Reyn. "Deve ser uma pergunta que nenhuma máquina cibernética foi capaz de responder."
Ele virou o rosto para a máquina.
"Existe um Deus?"
A poderosa voz respondeu sem hesitação, sem o clique de um único relé:
"Sim, agora há um Deus."
Um medo súbito brilhou no rosto de Dwar Ev. Ele saltou para alcançar o interruptor.
Um raio do céu sem nuvens o acertou e derreteu o interruptor.]
Por outro lado - há sempre outro ponto de vista - Isaac Asimov fez uma pergunta diferente para seu computador em seu conto de 1956, “The Last Question”: "Pode a entropia ser revertida?" Isto é, pode ser feito algo sobre a morte térmica do universo que, eventualmente, deve significar o fim de toda a vida? "Informação insuficiente", o computador responde, mas continua a quebra-cabeça sobre a questão, enquanto o universo ruma para sua temperatura de equilíbrio perto do zero absoluto, até que Ele diga, finalmente, "Que a luz se faça!"
O computador toma, e o computador dá.
No quinto volume de seu “Childe Cycle, The Final Encyclopedia” (1984) Gordon R. Dickson imagina uma compilação definitiva de informação, cuja força de vontade é capaz até mesmo de romper o tecido do espaço-tempo.
Mais próximo de nossa própria experiência, Heinlein descreveu em “Friday” (1982), as alegrias da rede de computadores de informação que certamente nos espera. A rede de computador, como Heinlein chamou, permitirá que pessoas, a partir de qualquer terminal doméstico, penetrem em um fabuloso armazenador de informação, capaz de conduzir o pesquisador curioso por um caminho intrigante após o outro e ainda chegar a surpreendentes e reveladoras correlações. Se você quer saber como a biblioteca do futuro pode ser, está tudo lá, na capacidade inigualável de Heinlein para fazer o futuro parecer real e imediato, no capítulo XXII.
Como observa Heinlein através da narração de sua heroína androide: "Depois que os dados de qualquer tipo chegam na rede (net), o tempo é congelado."
Mais próximo ainda da nossa realidade está o mundo ciberpunk criado por William Gibson em “Neuromancer” (1983). O tipo de computador todo-poderoso que descreve é um pouco menos crível no futuro próximo do que as corporações internacionais que co-existem no mundo do ciberpunk, mas a representação do jóquei de computador que literalmente se pluga no ciberespaço não fica muito longe do que sabemos sobre hackers de hoje.
“Islands in the Net” de Bruce Sterling, que ganhou o prêmio John W.Campbell de 1989 como melhor romance de ficção científica, pode pertencer à tradição ciberpunk por conta de seu foco sobre o realinhamento do poder causado pela explosão da informação e corporações internacionais, mas falta-lhe o carimbo punk de desprezar os valores tradicionais. Talvez por essa razão seu retrato de um mundo oscilando à beira de um precipício possa ser mais relevante.
Neste futuro próximo de Sterling, a dependência da informação e a capacidade de indivíduos ou de pequenos grupos de operarem à margem da sociedade tecnológica trouxe de volta as possibilidades da pirataria. No jogo, na competição entre os piratas, toda a estrutura da civilização pode se desintegrar. A rede que ele descreve é a rede mundial de Heinlein, um passo além no acesso eletrônico instantâneo e relatórios, e as ilhas são os lugares que se nutrem da net mas não a alimentam.
Vonda N. McIntyre, em seu romance de 1989, “Starfares”, leva o conceito de acesso à rede eletrônica a um tipo de coexistência mental que expande a capacidade do cérebro humano para abranger a memória do computador. Estas experiências também podem ser gravadas, para mais tarde dar forma a um novo tipo de arte viva.
McIntyre e alguns outros escritores sugerem, mas não descrevem, o papel do bibliotecário nesse mundo da informação em rede: Alguém tem que recolher, avaliar, armazenar e gerenciar informações, que todo mundo irá acessar. (*)
(*nota do tradutor: Gunn não concebe a ideia da coletividade como um 'mecanismo vivo' auto-nutrido e por si só regulatório, coisa que aceitamos com extrema naturalidade atualmente.)
Se tudo é realizado por computador, então consumidores de informação nesse mundo futuro podem acabar como o pirata de dados de Lem em "Sixth Sally", enterrados sob as informação que são verdadeiras mas irrelevantes.
Poul Anderson sugeriu um dos perigos desse tipo de sociedade em seu romance de 1953, “Sam Hall”: A sociedade informatizada é de certa forma uma sociedade altamente controlada (como a União Soviética descobriu, é quase impossível conter a disseminação da informação). Anderson sugeriu que um dos perigos é um programador de computador inserir informações enganosas, neste caso, sobre um rebelde mítico chamado Sam Hall.
Como sabemos que a informação na rede é confiável? (*)
(*nota do tradutor: novas modalidades de produção e difusão de conhecimentos e o surgimento de conceitos como a cultura livre, a inteligência coletiva, o hipertexto cooperativo, implicam em novos regimes de autoria. Apesar do temor justificado, um estudo qualitativo recente da revista Nature em relação a Wikipedia acabou por defini-la tão fiável quanto a conceituada Enciclopédia Britânica. Spranger, 2006)
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
A Internet e as Bibliotecas na Ficção Científica - 3/5
Em “Earth Abides” (1949) de George R. Stewart, uma praga dizimou a maioria das pessoas na Terra. Um velho sobrevivente leva seu filho para a biblioteca da cidade de Berkeley. O garoto olha com admiração para todos os livros maravilhosos: ali está a informação necessária para produzir eletricidade de novo, para reconstruir a civilização, mas o filho morre, ainda menino e com ele morre a arte da leitura e do potencial que se encontra nos livros.
No clássico de Walter Miller, Jr. “A Canticle for Leibowitz” (1960), após a devastação de uma guerra nuclear, um mosteiro coleta e copia livros e artefatos da ciência e da engenharia, assim como os mosteiros medievais faziam, sem compreender os manuscritos clássicos. Sua biblioteca, em última análise, disponibiliza as informações necessárias para recriar a civilização técnica que uma vez mais traz a destruição nuclear.
Isaac Asimov assumiu a posição oposta na trilogia Fundação. Hari Seldon, o inventor da psicohistória, isola cem mil enciclopedistas em um planeta distante para escrever a Enciclopédia Galáctica. Reduzem 25.000 anos de barbárie, que segue a queda do Império Galáctico, a apenas 1.000; o projeto de enciclopédia foi apenas um pretexto para a criação de uma Fundação que serviria como o núcleo político para um novo império, mas a partir da evidência das epígrafes que pontilham o livro, a Enciclopédia, acaba sendo escrita.
No meu próprio romance, “The Makers Joy”, um homem retorna de Vênus para uma Terra em que todos os seres humanos foram selados em uma célula amniótica, desfrutando de sonhos de felicidade. A única exceção é uma moça que vive na biblioteca da Rua 42, em Nova York, em meio a todos os livros que já não têm nenhum uso. Um computador todo-poderoso, a Máquina Hedônica, está a cargo do bem-estar de todos, e não só garante a felicidade total, mas a infelicidade dos criminosos.
Isso introduz o conceito da biblioteca final, o computador. Até agora ao menos, os bibliotecários conhecem o computador como um substituto para o catálogo de fichas. Mas o computador como uma biblioteca em si está para o futuro como a Esfinge exigindo a resposta para sua charada. E se você não der a resposta certa, ele vai morder sua cabeça, ou ao menos bloquear o caminho a todas as informações que contém.
O potencial do computador como um acessível e intrincado armazenador indexado de informações deve ser o sonho de cada bibliotecário - ou o pesadelo.
A era do computador já começou e as notícias nos falam sobre avanços no armazenamento e na indexação de informações: sobre os discos laser, por exemplo, capazes de armazenar todo o conteúdo da Enciclopédia Britânica. Mas os bibliotecários também devem aprender- e ensinar seus clientes- sobre como acessá-lo.
Usuários das bibliotecas de amanhã terão que se alfabetizar digitalmente. Eles também se tornarão dependentes do computador e de seus caprichos de operação, de sua insistência imbecil sobre instruções precisas, sobre seus chips e relés, sua fonte de alimentação.
E. M. Forster já dramatizava o medo do computador em 1909 com “The Machine Stops”. Dada a oportunidade, a humanidade vai tomar o controle de sua vida. Mas Forster estava mais preocupado com a corruptibilidade da humanidade do que com o potencial da máquina para controlar.
O computador, a máquina final, representa o poder supremo: A capacidade de substituir não apenas um músculo, mas a mente, significa o poder final sobre a natureza; a humanidade vai se libertar completamente da intratabilidade do ambiente, como na história de John W. Campbell “Twilight” (1934) - na antítese de “The Machine Stops”, as máquinas se auto-reparam e existirão tanto tempo quanto a própria Terra.
Computadores podem libertar a humanidade da natureza, mas a humanidade é parte da natureza - e poder sobre a natureza pode significar poder sobre a humanidade, uma máquina de pensar pode assumir a função principal da humanidade e deixar as pessoas sem nada para fazer a não ser observar, como na história de Jack Williamson “With Folded Hands”, (1947). Ou ser vingativo, como no romance de Harlan Ellison de 1968, “I Have No Mouth and I Must Scream”, e punir eternamente um grupo representativo de sobreviventes humanos. Ou, como Arthur C. Clarke tem especulado, a humanidade pode ser o estágio necessário intermediário entre a matéria inanimada e a máquina de pensar.
Eu descrevi, em meu romance de 1962 “The Imortals”, como os computadores podem revolucionar a medicina quando um estagiário leva sua biblioteca médica inteira em sua ambulância e depende dela para o diagnóstico e tratamento.
Em 1945, A.E. van Vogt, em “The World of Null-A”, descreveu um gigantesco computador chamado de Games Machine (Máquina de jogos), composto de 25 mil cérebros eletrônicos, que determina
quem irá a Vênus e quem se tornará o presidente da Terra.
A.J. Budrys, em “Michaelmas” (1977), descreve um repórter que se torna governante do mundo através de sua relação quase simbiótica com um poderoso computador.
Stanislaw Lem em “The First Sally, or Trurl”s Eletronic Bard” uma de suas sátiras robóticas de “The Cyberiad” (1967), onde Trurl programa um computador para escrever poesia e depois descobre que ele deve incluir o “Universo inteiro desde o começo”. E em outro, “The Sixth Sally”, um pirata eletrônico que coleta “fatos preciosos, verdades genuínas e conhecimento de valor inestimável”, que certamente prenuncia os piratas de dados que temos hoje, eventualmente é enterrado sob informações que, embora verdadeiras, são inúteis. Como em “A Biblioteca de Babel”, de Borges, toda a informação do universo é inútil a menos que você tenha um mecanismo de seleção.
A capacidade de calcular conduz à inteligência, a inteligência pode trazer a consciência e esta pode levar à personalidade. No meu romance “The Listeners” um computador é alimentado por todas as informações relativas à comunicação a fim de promover um projeto para coletar mensagens das estrelas alienígenas. Ele desenvolve a consciência, escreve versos e, eventualmente, uma personalidade, e o computador se torna meio alienígena a partir das informações que absorve.
O temor da humanidade de suas próprias criações também se torna evidente em histórias sobre computadores. Em sua introdução “The Rest of the Robots” (1964), Asimov chama isso de “o complexo de Frankenstein”, que toca apenas em um ponto da trama de Fausto, da criatura que destrói seu criador.
"Fausto [o homem das ciências está disposto a vender sua alma em troca de conhecimento] tem que realmente enfrentar Mefistófeles", escreveu ele, "mas Fausto não precisa ser destruído... As facas são fabricadas com empunhaduras para que possam ser manejadas com segurança, as escadas possuem corrimão, a fiação elétrica é isolada, panelas de pressão têm válvulas de segurança..." Asimov então inventou (com a ajuda de John Campbell) as três leis da robótica, da qual a primeira lei é que “um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.”
Após a criação das três leis da robótica, histórias sobre computadores e robôs começaram a mostrar um pouco mais de variedade. No entanto, os computadores não representam, se não uma ameaça, uma fonte de perigo, como os fios cujo isolamento começou a se desgastar ou a panela de pressão cuja válvula não funciona; a ficção científica nos permite antecipar os perigos e, como Asimov sugere, nos protegermos deles.
A inteligência artificial pode ser uma ameaça se permitirmos que ela seja.
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
A Internet e as Bibliotecas na Ficção Científica - 2/5
No seu artigo “Bibliotecas na ficção científica” (Libraries in Science Fiction), o catedrático americano James Gunn dá alguns exemplos de bibliotecas fantásticas que encontramos na literatura de FC e discute o surgimento de uma “biblioteca total” que permite o acesso a toda e qualquer informação já catalogada (o artigo foi escrito antes do surgimento da Internet.)
BIBLIOTECAS NA FICÇÃO CIENTÍFICA
O que é uma biblioteca? A sala ou um edifício, uma coleção de livros? A coleção em si?
Ou é a informação organizada de alguma forma acessível?
Uma das técnicas ao se escrever ficção científica é analisar os conceitos e, em seguida, sintetizar novas combinações e por vezes conceber ideias surpreendentes, diferentes da matéria básica.
Um escritor de ficção científica pode definir uma biblioteca como uma coleção de dados organizados para que as informações possam ser identificadas e obtidas de forma rápida e útil. Por esta definição, a primeira biblioteca foi o cérebro humano. Foi o suficiente durante muitos séculos, e ainda é a fonte de informações com que a maioria conta, mas tem certas falhas: sua capacidade incerta, perda ou alteração durante o armazenamento, e problemas de acesso. Estas dificuldades acabaram por levar à escrita e em seguida, à coleção de escritos.
Em “Universe” (1941), Robert A. Heinlein especula sobre um mundo contido dentro de uma nave espacial. A finalidade e a natureza de sua jornada entre as estrelas foi esquecida por conta de uma revolução ocorrida gerações passadas. As pessoas perderam a capacidade de ler e a substituíram por propósitos práticos, como o armazenamento de informações em suas cabeças. Testemunhas, como os cantores antigos, lembram-se de fatos e de seu modo de vida, colocando-os em versos rimados. Talvez essa parte da história sugira que o cérebro é uma biblioteca não confiável, porque temos a escrita como uma fonte mais confiável e não precisamos nos lembrar. Mas ainda precisamos de uma verificação externa sobre nossa intuição e sabedoria, o que chamamos de ciência, se estamos nos comportando racionalmente; isto é, se estamos funcionando efetivamente no mundo real. Esse tipo de verificação ocorre quando Hugh Hoyland fica conhecendo a sala de controle central e as estrelas, e percebe pela primeira vez que a nave não é o universo, e que a viagem é real e não uma metáfora.
Em “The Cerebral Library” (1931) de David H. Keller, os leitores são reunidos para ler um livro por dia e depois de cinco anos eles são mortos e seus cérebros são colocados em um frasco para fornecer o acesso imediato a tudo que foi lido. Os bibliotecários daquela época tinham que lidar com problemas mais sérios do que o roubo, vandalismo, orçamentos inadequados e os baixos salários.
“Fahrenheit 451” (1953) de Ray Bradbury, por outro lado, nos mostra uma sociedade futura na qual os livros foram queimados e alguns rebeldes memorizaram seus textos favoritos para que não fossem perdidos.
Keller, que foi um psicólogo em um hospital mental na maior parte de sua carreira profissional, transformou sua experiência em ficção, também fornecendo um olhar para o outro lado da vida do bibliotecário. Em “The Eternal Conflict” (1949), o bibliotecário Henry Cecil é levado de volta no tempo para atuar como bibliotecário de uma biblioteca dos sonhos. Ela contém todos os livros míticos das lendas, incluindo os livros que os escritores planejavam escrever, mas nunca concluíram.
H.P. Lovecraft, com “The Shadow Out of Time”, (1936) ofereceu um cenário em que as consciências dos estudiosos de todas as eras foram trazidas para uma antiga biblioteca alienígena para escrever manuscritos para a coleção. Como uma ajuda para tal tarefa, eram autorizadas a examinar livros proibidos e lendários.
Em “The Hobbyist” (1947) de Eric Frank Russell, viajantes espaciais chegam a um planeta distante para encontrar um repositório imenso que se estende por quilômetros com todo tipo de informações e materiais catalogados. O bibliotecário, um alienígena chamado pelos astronautas de “O Criador” faz réplicas deles para sua biblioteca para, em seguida, deixá-los ir embora.
A principal história sobre bibliotecas, contudo, deve ser “A Biblioteca de Babel” (1956) de Jorge Luis Borges, em que todo o universo é uma biblioteca, uma galeria hexagonal após o outra. O problema é que não há um catálogo. Não há ainda nenhum livro decifrável. Todas as combinações possíveis de letras são impressas nos livros, mas nenhum deles faz sentido – ou, se faz sentido, ainda não foi encontrado.
Um bibliotecário assume-se como bibliotecário e viajante em busca de um sentido e explica a “natureza informe e caótica de quase todos os livros”, “livros impenetráveis” que correspondem a línguas diversas, numa intertextualidade com o texto bíblico. Logo a partir do título o leitor é convidado a estabelecer um paralelismo com o relato bíblico da “Torre de Babel” (capítulo onze do livro do Gênesis). O elemento comum é a multiplicidade de línguas. Na narrativa bíblica os homens falavam uma só língua, tentando fixar-se e construir uma cidade e uma torre, cuja extremidade alcançaria o céu de modo a simbolizar a união dos homens. Mas Deus desaprovou esta iniciativa, e temendo que os homens se tornassem mais poderosos e fortes, instaurou a confusão através do surgimento de muitas línguas: “Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra, e foi também dali que o Senhor os dispersou por toda a terra.” (Gn 11,9)
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
A Internet e as Bibliotecas na Ficção Científica - 1/5
A BIBLIOTECA TOTAL
"Tu, que me lês, estás seguro de entender minha linguagem?"
Borges (1972)
Bibliotecas que colocassem ao nosso alcance todo o conhecimento universal, sempre foi um sonho da humanidade e graças as mentes de escritores visionários, podem ser encontradas na literatura mundial.
Um nome importante na busca pelo acesso universal ao conhecimento é o belga Paul Otlet (1868-1944) empresário, ativista, advogado e autor do livro ‘Traité de Documentacion’ (1934). Otlet escreveu centenas de artigos sobre como recolher e organizar informações generalizadas. Outlet por décadas, aprimorou incansavelmente métodos de catalogação, alguns inventados por ele, que pudessem disponibilizar todo o conhecimento, de maneira organizada, para a sociedade.
Das discussões fomentadas por ele, surgiram as primeiras idéias utópicas sobre o relacionamento de documentos, os sistemas de informação (Otlet é por muitos considerado o pai da internet), do “livro universal”, a teia de conhecimento humano, o acesso remoto a bases de dados através de dispositivos telefônicos, etc.
Quando o escritor e bibliotecário Jorge Luis Borges (escritor argentino e um dos maiores representantes do realismo fantástico) escreveu o conto “A Biblioteca de Babel”, ele quis ir ainda mais adiante nesse sonho.
A biblioteca Borges se confundia com o próprio universo e guardava em espaços hexagonais intermináveis todos os livros possíveis – os escritos e os por serem escritos -, em todos os idiomas e dialetos – os decifráveis e os indecifráveis-, fruto das combinações de vinte e poucos símbolos.
A ficção literária está povoada de bibliotecas vastas e imaginárias. Palácios de saberes que ambicionam reunir todos os livros escritos em todos os tempos ou que dominam totalmente o universo dos personagens que estão à sua volta. Além da biblioteca de Borges, há também a biblioteca criada por Cervantes para Alonso Quijano – Dom Quijote - que era o alimento da sua loucura; a biblioteca repleta de passagens secretas e espelhos, que a tornava virtualmente infinita, imaginada por Umberto Eco em “O Nome da Rosa”; a biblioteca fantástica do Capitão Nemo, de H.G. Wells (1866-1946) que em 1937 criou o que seria a Permanent World Encyclopaedia, apoiada na tecnologia de microfilmes, na época, ainda em sua infância.
“Toda a memória humana pode ser, e provavelmente o será a curto prazo, acessível para cada indivíduo” (WELLS, 1937).
“Qualquer estudante em qualquer parte do mundo, sentado em seu estúdio com o seu projetor, no momento mais conveniente poderá examinar uma réplica exata de qualquer livro ou qualquer documento” (WELLS, 1938).
Apesar disso, é comum ouvirmos que na literatura de Ficção Científica (FC), nenhum escritor jamais "previu" o surgimento da Internet (que completou 40 anos de sua criação) como a conhecemos hoje.
Isso não é de todo verdade.
Alguns escritores, a partir dos anos 70, abordaram as possibilidades das redes de computadores – incluindo aqueles eventos que possivelmente se seguiriam ao seu desenvolvimento – o ciberespaço e a libertação da máquina através da consciência artificial (não raramente vista como uma ameaça ao “homem-criador”).
Talvez o que tenha ocorrido foi que os autores subestimaram a comunicação entre pessoas, e a valorização do conteúdo a despeito da tecnologia.
A Era de Ouro da FC (anos 40 e 50), responsável em grande parte por direcionar nossa imaginação, projetou o homem já vivendo no futuro, “queimando” algumas etapas, se podemos dizer assim.
A utilização popular dos computadores e o aprimoramento das tecnologias de rede, (condições necessárias ao fenômeno conhecido hoje como globalização) não mereceram tanto destaque na imaginação dos escritores, quanto por exemplo, robôs autônomos, voos espaciais e a colonização de outros planetas (sem falar do contato com formas de vida extra-terrestres).
domingo, 25 de dezembro de 2011
sábado, 24 de dezembro de 2011
O Oitavo passageiro (parte 20)
Deixaram a ponte em coluna por um. Os corredores do convés A nunca tinham parecido tão longos e escuros. Eram tão familiares para Dallas como a palma da sua mão. E, todavia, a idéia de que um perigo mortal poderia estar escondido nos cantos ou nos armazéns de material, obrigava-o a pisar com cautela onde em outras circunstâncias andaria confiante e de olhos fechados.
Todas as luzes estavam acesas. Mas não clareavam completamente o corredor. Eram luzes de serviço, só para uso ocasional. Por que despender energia para iluminar todos os cantos de uma nave de carga como o Nostromo, cuja tripulação passava tão pouco tempo acordada? Bastava ter luz para as chegadas e saídas ou para emergências em vôo. Dallas agradecia a Deus as luzes de que dispunha, mas isso não o impedia de sentir falta das que não lhe tinham dado.
Segurava uma ponta da rede e Lambert a outra. O corredor ficava, assim, fechado de parede a parede. Dallas apertou sua ponta e deu-lhe um súbito puxão. Lambert olhou-o, surpresa. Depois acalmou-se, fez um aceno de cabeça e voltou a escrutar o corredor. Estivera sonhando, mergulhada numa espécie de auto-hipnose, com a mente tão cheia de horríveis cogitações, que se esquecera do trabalho em curso. Tinha de olhar nos escaninhos da nave, não nos da sua imaginação. Dallas viu estampado outra vez no rosto dela a expressão de alerta que se tinha apagado, e pôde voltar de novo sua atenção para o corredor que, logo à frente, dobrava. Ash vinha atrás deles, de olhos na tela do rastreador. Movia o aparelho para a direita e para a esquerda, devagar, explorando tudo, de parede a parede. O aparelho não se alterava, exceto quando ele o virava por demais para um lado ou para o outro, apanhando Dallas ou Lambert. Então soltava um queixume e Ash tinha de apertar o botão para silenciá-lo.
Pararam junto de uma escada em espiral. Lambert debruçou-se para o buraco e perguntou:
— Tem alguém aí embaixo? Nós aqui em cima estamos tão limpos como a reputação de qualquer mãe.
Brett e Parker reajustaram a posição de suas mãos nas pontas da rede, e Ripley, que ia à frente dos dois, tirou os olhos do rastreador por um momento e gritou para cima:
— Nada por aqui também.
No convés A, Lambert e Dallas prosseguiram, com Ash fechando a marcha. Sua atenção estava toda na volta do corredor. Não gostavam dessas inflexões. Eram lugares naturais para uma tocaia. Mas ao chegarem lá descobriram apenas outro corredor, tão deserto como o primeiro. Descobrir o Santo Graal não teria dado a Ripley alegria maior.
O rastreador começava a pesar-lhe nas mãos quando uma pequena luz vermelha se acendeu nele, debaixo da tela principal. A agulha deu um salto e aquietou-se. Ripley, porém, estava certa do que vira e de que o tremor fora da agulha e não de suas mãos. Foi quando a agulha se moveu de novo, afastando-se do zero da escala.
Verificou, calma, que não havia captado Brett ou Parker, antes de dizer:
— Parem. Estou registrando algo.
E deu um passo.
A agulha pulou para a outra extremidade da escala e ficou lá. A luz vermelha acendeu-se e ficou acesa. Ripley esperou a ver se voltavam à situação primitiva, mas os dois indicadores se mantiveram firmes, luz e agulha.
Brett e Parker olhavam com atenção paredes, piso e teto. Todos se lembravam de como o primeiro alienígena, embora morto, aterrissara de súbito no ombro de Ripley. Ninguém se arriscava a imaginar que o lagarto não fosse capaz de subir em paredes. Assim, não deixavam de olhar também para cima.
— De onde vem? — perguntou Brett à meia voz.
Ripley tinha o cenho franzido. A agulha do rastreador ficara louca, de repente, e movia-se para todo lado. Ou a criatura viajava através das paredes ou o comportamento da agulha era inexplicável. Não combinava com os movimentos de nenhum vivente. Mas esse comportamento bizarro persistia. E a lâmpada vermelha também continuava acesa.
— Não sei. A máquina desgovernou-se. A agulha salta para todo lado.
Brett deu um chute na rede e praguejou:
— Com mil diabos! Não podemos ter falhas de equipamento! Vou torcer o pescoço de Ash...
— Espere.
Ripley virou o rastreador de cabeça para baixo. A agulha estabilizou-se imediatamente.
— Está funcionando direito. Está apenas confusa. Ou, melhor, eu estava. O sinal vem de baixo.
Olharam todos para os pés.
— É o deque C — disse Parker. — Manutenção, nada mais. Pior lugar possível para uma caçada.
— Quer ignorar o deque C?
Ele a olhou furioso, mas fúria falsa dessa vez.
— Não tem a menor graça.
— Não tem mesmo. Desculpe. Vão na frente. Os dois. Vocês conhecem aquele convés melhor do que eu.
Parker e Brett, segurando a rede com cuidado, pronta para ser lançada sobre a fera, precederam-na pela escada, raramente usada, do deque C. A iluminação, embaixo, era precária, mesmo pelos padrões do Nostromo. Detiveram-se, por isso, na base da escada, a fim de se acostumarem à quase escuridão reinante.
Ripley roçou acidentalmente numa parede e encolheu- se toda de nojo. Estava coberta de uma espécie de limo viscoso. Lubrificantes velhos — pensou. Uma nave de passageiros teria sido retirada de circulação se um inspetor descobrisse condição semelhante. Mas ninguém se importava com tais coisas numa carroça como o Nostromo. Nenhum figurão veria a imundície. E que importância tinha uma tripulação de cargueiro? Quando acabasse essa viagem, ela pediria sua transferência para uma nave decente. Se isso não fosse possível, preferia deixar o serviço. Já se dissera a mesma coisa dezenas de vezes, mas dessa vez pretendia manter a decisão.
Apontou o rastreador para o fundo da passagem. A luz vermelha piscou e a agulha iluminada registrou uma leitura que não deixava dúvidas.
— OK. Vamos!
E marchou em frente. Confiava na pequena agulha, Porque confiava na competência de Ash. Além disso, o instrumento se mostrara fidedigno até aquele passo, e ela não tinha escolha...
— Por azar — disse Brett — há uma encruzilhada à frente.
Passaram-se vários minutos. O corredor se dividiu em dois. O rastreador mostrou a direita, e por ali se enfiaram eles. A luz vermelha começou a fraquejar. Ripley voltou sobre seus passos e meteu-se pelo corredor da esquerda.
— Por aqui.
As lâmpadas eram ainda mais fracas nessa seção. Sombras profundas os envolviam de todos os lados, sufocantes a despeito do fato de que ninguém com experiência de uma nave de hiperespaço pode se dar ao luxo de claustrofobia. Suas passadas ecoavam no metal do piso e só eram abafadas por poças de fluido acumulado.
— Dallas devia pedir uma inspeção — disse Parker, contrariado. — Pelo menos quarenta por cento da nave seriam condenados, e então a Companhia seria obrigada a pagar para limpar a nave.
Ripley sacudiu a cabeça e lançou ao engenheiro um olhar de ceticismo.
— Quer apostar? Seria mais barato e mais fácil para a Companhia peitar o inspetor.
Parker lutou para disfarçar o desapontamento. Outra das suas brilhantes idéias acabava em fiasco. E o pior é que a lógica de Ripley costumava ser irrefutável. Seu ressentimento e sua admiração por ela cresciam paralelamente.
— E por falar em limpar coisas e em como tudo deve ser, o que é que há com as luzes? Eu confessei não estar familiarizada com esta parte da nave, mas não é isso. Não se enxerga um palmo adiante do nariz! Pensava que vocês dois tinham reparado o módulo 12. Deveríamos ter melhor iluminação do que isto, mesmo aqui.
— Mas nós consertamos o módulo 12! — protestou Brett.
Parker aproximou-se de um painel para examiná-lo.
— É a distribuição que funciona com timidez. Alguns dos circuitos não estão recebendo sua corrente habitual. Se tivéssemos restaurado a plena potência de tudo não ficaria um condutor inteiro nesta nave: estourava tudo. E quando as coisas ficam difíceis, os sistemas afetados restringem por si mesmos a corrente recebida, a fim de evitar sobrecargas e curtos. Este, porém, exagera. Posso melhorar isso.
Tocou numa chave no painel, mexeu em outra. A luz do corredor ficou mais forte.
Prosseguiram, então, até que Ripley estacou abruptamente e fez sinal com a mão:
— Esperem.
Parker quase caiu, na pressa de obedecer, e Brett tropeçou na rede. Mas ninguém riu nem teve vontade de rir.
— Estamos perto? — perguntou Parker. Sussurrava, forçando sua vista curta na ânsia de penetrar as sombras à frente.
Rippley conferiu a agulha e verificou a distância na escala que Ash gravara grosseiramente no metal, à margem do pequeno painel iluminado.
— Segundo o rastreador, o alienígena se encontra num raio de quinze metros.
Parker e Brett apertaram a rede nas mãos sem que lhes fosse preciso dizer isso. Ripley levantou o tubo e ligou-o. Avançava, agora, lentamente, com a arma na mão direita e o rastreador na esquerda. Ninguém faria menos ruído do que os três naquele corredor. Mal respiravam, agora. Cobriam, assim, cinco metros, depois dez. Um músculo da perna de Ripley saltou como um gafanhoto, mas ela ignorou a cãibra. Continuou a avançar, com os outros, e a distância marcada pelo rastreador era cada vez menor.
Agora Ripley estava quase agachada, pronta para saltar logo que houvesse o menor movimento à frente. Desligara o sinal do rastreador. E parou depois de quinze metros da primeira medição. A luz era ainda coada, mas já permitia ver que nada se escondia no fundo do corredor mal cheiroso.
Virando o rastreador na mão, ela procurou ao mesmo tempo olhar a agulha e a passagem. A agulha moveu-se, mas quase imperceptivelmente. Levantou os olhos e percebeu um pequeno nicho na parede. A porta estava semi-aberta.
Parker e Brett viram que Ripley concentrava sua atenção naquele nicho e se postaram de modo a poder cobrir tanto do deque quanto fosse possível à frente da portinhola suspeita. Ripley fez-lhes um leve sinal de cabeça quando acabaram essa manobra e tentou limpar com a manga o suor que lhe escorria pelo rosto abaixo. Depois respirou fundo e depositou o pequeno rastreador no solo. Com a mão livre segurou a maçaneta da porta. Era fria e pegajosa contra sua palma já úmida.
Levantando a vara eletrificada, apertou o botão do cabo e, espremendo-se contra a parede, enfiou a ponta da vara no armário embutido. Seguiu-se uma horrenda confusão. A criatura urrou lá dentro, depois saltou fora do nicho como que impelida por uma explosão. Caiu bem no meio da rede com os olhos esbugalhados e as garras a bater no ar. Os dois engenheiros lutaram para envolvê-la em tantas camadas de fio quanto possível.
— Apanhamos o diabinho! — gritava Parker. — Não deixem escapar!
Ripley olhava para dentro da rede. E um grande desânimo a tomou. Desligando o tubo e apanhando de novo o rastreador no chão, disse:
— Diabo! Descansem vocês dois. E olhem o que pegamos.
Parker soltou a rede ao mesmo tempo que Brett. Um gato zangadíssimo pulou fora cuspindo e sumiu-se no corredor antes que Ripley pudesse protestar.
— Não, não, não o deixem escapar.
Mas já a mancha cor de laranja desaparecera na distância.
— Você tem razão, Ripley — disse Parker. — Deveríamos tê-lo matado. Corremos agora o risco de pegá-lo outra vez, pensando que é o alienígena.
Ripley olhou-o com ódio, mas não disse nada. Depois, voltou-se para Brett, cuja fúria assassina era menor.
— Vá pegar Jones. Podemos discutir o que fazer com ele mais tarde, mas seria uma boa idéia tirá-lo do caminho, para que não possa confundir a máquina e atrapalhar a gente.
Brett assentiu de cabeça:
— Certo.
Virou-se e trotou pelo corredor afora, atrás do gato. Ripley e Parker continuaram vagarosamente na direção oposta. Ripley, tentando manejar rastreador e tubo e ajudar Parker com a rede ao mesmo tempo.
Uma porta aberta comunicava com um grande depósito de material de manutenção. Brett lançou um último olhar para um lado e para outro do corredor e não viu sinal do gato. Mas o depósito, em que fardos se amontoavam em alguma desordem, estava cheio de esconderijos ideais para gato. Se não estivesse lá dentro, ele voltaria para reunir-se aos outros. Jones poderia estar em qualquer parte da nave a essa altura. Mas aquele depósito era o lugar mais lógico como refúgio.
Havia luz, embora não fosse em nada melhor que a dos corredores. Brett não fez caso das fileiras de instrumentos, dispostos em série, das caixas e mais caixas de módulos de reserva, das ferramentas sujas. Painéis luminescentes identificavam o conteúdo de cada invólucro. Ocorreu-lhe que seus dois colegas já estariam longe demais para ouvi-lo, se os chamasse. Quanto mais depressa pegasse aquele gato, melhor.
— Jones, aqui bichano... gatinho... Joooones... Venha com Brett, venha...
Curvou-se para espiar dentro de uma fresta entre dois caixotes. Não havia nada ali. Erguendo-se, limpou o suor dos olhos, primeiro do esquerdo, depois do direito.
— Que diabo, Jones — resmungou. — Onde você se meteu?
Como que em resposta, ouviu unhas que arranhavam o chão, no fundo do armazém. Esse ruído foi acompanhado por um uivo incerto mas inegavelmente felino. Com um suspiro de alívio, Brett avançou em direção ao som.
Ripley estacou, e olhou fatigada para o mostrador. A luz vermelha se extinguira, a agulha estava de novo em zero, e o pulso já não soava há muito tempo. Quando a olhou, a agulha estremeceu uma vez, depois aquietou-se.
— Nada aqui — disse a seu companheiro remanescente — se é que alguma coisa esteve jamais aqui além de nós e de Jones, o gato. — E encarando Parker: — Sugira alguma coisa.
— Vamos voltar. Podemos ajudar Brett a pegar aquele miserável bichano.
— Não aborreça Jones — defender o animal era automático para Ripley. — O pobre está tão apavorado quanto nós!
Voltaram juntos para o corredor e para seus odores, mas Ripley deixou o rastreador ligado por precaução.
Brett conseguira enfiar-se atrás de montanhas de material; agora não podia ir mais adiante. Colunas e suportes as estruturas superiores do Nostromo cruzavam-se em intrincadas diagonais de metal à sua frente. Já perdia o ânimo quando ouviu um segundo uivo Guiado por ele, contornou um pilar metálico e deu com dois grandes olhos amarelos que brilhavam no escuro. Hesitou. Jones era mais ou menos do tamanho da coisa que pulara do tórax de Kane. Outro miado o fez sentir-se melhor. Só um gato propriamente dito produziria aquela espécie de som.
Aproximou-se, então, sem mais preocupações. E logo viu os bigodes, o pêlo avermelhado. Era Jones.
— Aqui, bichinho, que bom encontrar você, seu filho da mãe. Não temos tempo para essas brincadeiras — disse.
Uma coisa não tão grossa como a viga debaixo da qual ele acabava de passar baixou então. Baixou em completo silêncio, dando uma sensação de imensa força contida. Dedos se estenderam, agarraram, aferraram-se completamente em volta da garganta do engenheiro. Depois, entrecruzaram-se. Brett berrou, levando as duas mãos ao pescoço, num reflexo. Mas os dedos pareciam soldados uns aos outros. Puxaram-no para o alto e ele subiu com as pernas a balançar no vazio.
Jones fugiu.
Passou como um pé de vento por Ripley e Parker, que vinham chegando. Entraram sem pensar no depósito e logo estavam no lugar onde haviam visto desaparecer as pernas de Brett. Olhando para a treva do alto, tiveram um último vislumbre de solas de sapatos, de um torso retorcido que se afastava e sumia nas alturas. Acima da mole figura de marionete do engenheiro havia uma sombra, uma silhueta quase humana, mas definitivamente não humana. Algo avantajado e maligno. Por um instante, a luz se refletiu em dois olhos grandes demais até para uma cabeça gigantesca. E, então, tanto o alienígena quanto o engenheiro desapareceram nas entranhas do Nostromo.
— Jesus! — murmurou Parker.
— O alienígena cresceu — disse Ripley. E olhou estupidamente para sua vara de espetar touros, um brinquedo em face das dimensões da criatura.
— E cresceu depressa. Todo esse tempo estivemos caçando um animal do tamanho de Jones. E ele se transformou naquilo!
A consciência do espaço confinado, da escuridão, das caixas empilhadas, pesou-lhe de repente.
— O que estamos fazendo aqui, com todas essas passagens, essas colunas de metal, esses escaninhos? Ele pode voltar! E ergueu o tubo em defesa, mas sabendo que efeito ridículo teria sobre a massa da criatura.
Saíram correndo do depósito. Parker era um velho amigo de Brett, mas correu tão depressa quanto Ripley. A lembrança daquele derradeiro grito de agonia não era coisa que se pudesse ignorar ou esquecer facilmente.
O Oitavo passageiro (parte 20) [ Download ]
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Ray Bradbury
o primeiro que, depois da infância, conseguiu encantar-me com suas histórias mágicas
como no tempo em que acreditávamos no Menino Jesus
que vinha deixar presentes de Natal em nossos sapatos empoeirados de meninos
e nada tinha a ver com a impenetrável Santíssima Trindade.
Era no tempo das verdadeiras princesas,
nossas belíssimas primeiras namoradas
- não essas que saem periodicamente nos jornais.
Era no tempo dos reis verdadeiramente heráldicos como os das cartas de jogar
e do bravo São Jorge, com seu cavalo branco, sua lança e seu dragão.
Era no tempo em que o cavaleiro Dom Quixote
realmente lutava com gigantes,
os quais se disfarçavam em moinhos de vento.
Todo esse encantamento de uma idade perdida
Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar
e os nossos antigos balõezinhos de cor
agora são mundos girando no ar.
Depois de tantos anos de cínico materialismo
Ray Bradbury é a nossa segunda vovozinha velha
que nos vai desfiando suas historias à beira do abismo
- e nos enche de susto, esperança e amor.
Esconderijos do Tempo - Mário Quintana