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terça-feira, 2 de julho de 2019

A Única História - o balanço

Wook.pt - A Única História

Uns tempos antes do início da Feira do Livro, chegou-me às mãos este novo romance de Julian Barnes. É a história de um amor e das marcas por ele deixadas; é a história de um amor que acontece uma vez na vida e que passa a servir de medida para todos os outros que acontecerão. E é, sobretudo, um ponto de partida para pensarmos nas palavras iniciais do narrador: «Preferiam amar mais e sofrer mais; ou amar menos e sofrer menos?». Se a resposta parece ser simples e ir ao encontro da óbvia ideia de que queremos sofrer o mínimo possível, a verdade é que não é assim tão linear. Queremos sofrer menos, mas também queremos uma vida intensa e cheia de amor. Portanto, coloque-se tudo na balança e veja-se o que se quer mais.

Julian Barnes é um autor daqueles de quem se espera sempre um novo livro melhor do que o anterior. É um autor que se supera e que traz para os seus textos temas intemporais, como o deste A Única História. Não se limita a escrever por escrever: os seus livros têm sempre algo que fica cá dentro, precisamente porque evoca aspectos que são nossos e que são eternos, como o passado, como a nossa finitude, como o amor. E alia aos temas uma escrita lindíssima, rica, mas clara e encantadora. 

Este A Única História é um romance que vale a pena ler. Inquieta pela intensidade da história, pelas  evidentes marcas que o amor deixa numa vida e porque, como leitores, encontraremos nele algo que também é nosso. O protagonista desenvolve uma relação de amor com uma mulher mais velha e essa é a «única história» que vale a pena contar. No fundo, todos temos uma história que queremos partilhar, uma que é aquela que lembramos todos os dias, que nos fica na pele e que se torna a única história, a tal que serve de medida a todas as outras. E é por isso, porque Julian Barnes soube retratar algo que é tão humano, que este é um livro a não perder. Boa leitura!

sexta-feira, 14 de junho de 2019

A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert - o balanço

Wook.pt - A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert

Com uns dias de descanso para aproveitar, escolhi um livro mais leve para ler. Note-se que leve não diz respeito ao peso, já que o volume é uma verdadeira bisarma de quase 700 páginas. A ideia era mesmo a de ser entretida por um livro com uma história em que queremos mesmo, mas mesmo, correr para saber o final.

Bom, antes de mais, acho que todos se recordam da barulheira em torno deste livro há alguns anos, quando saiu. Foi um best seller, um campeão de vendas, foi a loucura. Acabei por comprá-lo nessa altura e tem estado a aguardar placidamente a sua vez.

A história é narrada por um escritor, Marcus Goldman (que, aparentemente, voltará a aparecer como personagem noutro livro do autor, O Livro dos Baltimore). A propósito de uma fase em que se encontra com a famosa crise da página em branco, visitará o seu antigo professor universitário e amigo Harry Quebert. Esta personagem é assim um mix de Rocky Balboa com Umberto Eco, por isso imaginem. Bom, devido a um acontecimento meio macabro, Goldman ver-se-á na obrigação de investigar o desaparecimento, 33 anos antes, da jovem Nola. A semelhança entre «Nola» e «Lola» não deve passar despercebida. Lembram-se da Lolita, de Nabokov? Tenho a sensação forte de que o autor deste livro quis que recordássemos essa menina, já que a Nola deste livro tem 15 anos e uma relação amorosa com Harry Quebert quando ele tem 34.

Nola, depois de uns meses de amor com o tal mentor de Goldman, desaparece misteriosamente. Durante 33 longos anos a sua cidade não saberá que destino teve. E tudo continuaria assim se Harry Quebert, já sexagenário, não se lembrasse de mandar plantar umas hortênsias no seu jardim. Os jardineiros, remexendo a terra, descobrem ossadas humanas e lá vai o respeitado professor passar uns dias à prisão. É por isso, para salvar a pele do amigo e também por precisar de uma história para contar, que Goldman se envolve até à alma na investigação do que realmente aconteceu a Nola três dezenas de anos antes.

Ora bem, na essência, é o costume. Rapariga desaparece, rapariga é encontrada morta, investigação, rapariga era uma safada, ai não, afinal era uma santa, fim. Porém, este livro parece aqueles comboios que param em todas as estações e apeadeiros e vão com uma lentidão desesperante por esse Portugal fora. Saímos desses comboios com a sensação de que passámos décadas lá dentro e com vontade de nos esbofetearmos por termos sequer comprado o maldito bilhete. Bem, estou a exagerar. O livro cumpre bem a missão de entretenimento (que era, recordo, o meu objectivo), mas tem dois defeitos: em primeiro lugar a acção desenrola-se com uma lentidão desesperante (o livro devia ter menos umas duzentas páginas para acabar com o flagrante enchimento de chouriço) e, depois, tem demasiadas reviravoltas. Dirão: mas isso não é mau, isso confere suspense ao livro. Sim, uma reviravolta sim. Mas três ou quatro cansam. Houve mais «culpados» pela morte de Nola do que portugueses a votar no CDS nas últimas eleições (bem, talvez não fosse assim tão difícil...).

Além desses dois defeitos que, mais do que entusiasmarem, aborreceram, há a questão do estilo. Todas as personagens falavam da mesma maneira. Fossem escritores consagrados, polícias de uma cidade pequena, meninas de 15 anos... Ouvir um era ouvi-los todos. E lá se vai a verosimilhança. Aliás: com tantos twists a verosimilhança já estava nas ruas da amargura. No final fiquei com a sensação de que o autor quis fazer uma coisa mesmo mesmo única, nunca vista, mas conseguiu tornar o livro um pouco mais ridículo. E pelo meio ainda tivemos o momento Cyrano de Bergerac, com uma personagem a escrever cartas de amor em nome de outra e a criar com isso uma enorme confusão. Ah, os clássicos...

Tudo isso empobreceu o livro, a meu ver. Podia ser um livro muito bom sem as reviravoltas a mais e se o autor se tivesse lembrado de que as pessoas não engoliram um dicionário, logo não falam todas da mesma forma. Assim, perdeu qualidade. No entanto, é um livro excelente para nos ocupar umas tardes porque, claro, queremos sempre saber o que aconteceu à jovem Nola. E é por isso que não o largamos. Mesmo quando nos parece que já é de mais, que já se está a exagerar muito, queremos saber o final e queremos saber se a nossa aposta é a correcta. Por isso continuamos e levamos o livro até à última página. No fim já é uma questão de honra.

Tenhamos, porém, em conta que o autor deste livro era jovem e ainda inexperiente nestas andanças quando o escreveu. Isso faz diferença. Talvez nos livros seguintes tenha tido mais cuidado com estas questões de estilo e de verosimilhança, que são importantíssimas, ou talvez não. A verdade é que vende imenso e muita gente adora o que escreve. Apesar de tudo, consegue deixar-nos com vontade de saber que fim terá a história e, portanto, é um livro que ocupa muito bem o nosso tempo.

Agora, o que me irritou realmente, o que me deixou louca de nervos foram as gralhas. Tantas! Mas ninguém revê os livros? Muita gente pode, ao contrário de mim, ter adorado os muitos twists da história. Depende de cada leitor. Mas duvido que algum tenha gostado de encontrar tantas gralhas num só livro. Letras trocadas, letras em falta, erros de concordância, enfim... Uma paródia! Bem sei que é preciso publicar muito e depressa, contudo, é necessário cuidado. Não existem livros sem gralhas, mas também não é preciso semeá-las página sim, página não. Fora tudo o resto que é da competência do autor e cuja apreciação depende do gosto e da experiência do leitor, isto foi o que verdadeiramente me irritou.

O balanço final é, portanto, este: óptimo para entreter, para espicaçar a curiosidade do leitor, mas cansativo porque quando parece que chegámos a um final (embora demasiado óbvio), eis que recomeça o virote outra vez. E torna-se a repetir o que já sabíamos, ainda que com uns acrescentos. É uma espécie de espiral, portanto. Às voltas, voltas, voltas, mas alargando um pouco mais o panorama, acrescentanto um pouco mais de informação. Todavia, voltarei a dar uma oportunidade ao autor. Vamos ver se entretanto mudou alguma coisa...

Nota: A imagem da capa saiu daqui.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Autobiografia de Agatha Christie - o balanço

Wook.pt - Agatha Christie


Quando um escritor tem uma obra tão vasta e reconhecida como Agatha Christie, é fácil esquecermo-nos de que houve uma vida além da escrita. Ora, a existência desta escritora é riquíssima e dava um (ou muitos) livro(s). 

Nasceu no seio de uma família endinheirada, sendo a filha mais nova e, portanto, ao mesmo tempo, a «bonequinha» e a mais esquecida da família. Os irmãos eram consideravelmente mais velhos do que ela e, por isso, desde cedo Agatha Christie começou a criar mundos de fantasia e a fazer parte deles como forma de brincadeira. Estaria longe de imaginar, nesse tempo da infância, que essas efabulações seriam um excelente treino para o futuro que a esperava. Imaginava amigos que não existiam, histórias com múltiplas personagens e traçava minuciosamente o carácter de cada uma delas. Mais: criava enredos para os diferentes núcleos de figuras inventadas.

Anos mais tarde, viu-se desafiada pela irmã a escrever um romance policial. Aquela sugestão ficou dentro de si e, numa fase em que a necessidade imperou, o primeiro livro viu a luz do dia. Porém, antes disso foram muitas as rejeições. O primeiro contrato que assinou com uma editora era draconiano. Ganharia meia dúzia de tostões. Claro que a editora tentou segurá-la ao perceber que ali estava uma autora promissora, mas Agatha Christie deu outros passos e acabou por lucrar com a escrita, vivendo dela mesmo em tempos difíceis. Note-se que a autora viveu as duas guerras mundiais e em ambas trabalhou em hospitais e farmácias, convivendo de perto com substâncias químicas. Esta aprendizagem foi fundamental para as suas histórias, para os famosos casos de envenenamento que imaginou e para o modo como os descreveu tão bem e de forma tão verosímil.

Este é um livro longo, mas o leitor nem nota que está a ler centenas de páginas. É uma vida tão cheia de aventuras e de momentos extraordinários que a leitura flui, as páginas viram-se e o livro termina com a sensação de que podíamos continuar a lê-lo durante muito mais tempo. Agatha Christie faz nesta Autobiografia o mesmo que nos seus outros livros: é directa, ainda que aqui e ali divague um pouco mais sobre alguns temas. Vai contando os factos que moldaram a sua vida e avançando, de modo a que, no fim, somos capazes de perceber em que medida isto ou aquilo, esta ou aquela pessoa tiveram influência sobre ela para que se tornasse na autora que conhecemos. 

Acho sempre muito interessante ler sobre a infância. É uma fase da vida extraordinariamente importante. É sobretudo nela que aprendemos a viver com os outros, que definimos certos gostos e aversões, que experimentamos coisas pela primeira vez, que começamos a idealizar o futuro... Por isso, aquilo a que somos expostos nesses tempos iniciais tem repercussões futuras. No caso dos escritores, a infância dá muitas vezes o mote para muitas histórias, para personagens. Gosto muito de ler biografias e autobiografias, mas a fase sobre a qual gosto mais de ler é mesmo a infância. Com este livro da Agatha Christie, tal voltou a acontecer. Se toda a sua vida é uma catadupa de acontecimentos interessantes, a verdade e que a infância e aquilo que ela construiu durante esses anos serviu de base para o que veio depois. E o que veio depois é uma aventura. Se algumas das suas ideias sobre o mundo podem parecer-nos ultrapassadas (importa ter em conta que eram comuns na época em que viveu), é, por outro lado, inequívoco o espírito aventureiro que nasceu na meninice e que continuou pela vida fora. A viagem no Expresso do Oriente, as visitas a países tão exóticos e diferentes como o Iraque ou a Síria, a África do Sul ou a Rússia fazem parte do seu espírito eternamente curioso e ávido de experiências novas. A maternidade não a fez parar, pelo contrário: Agatha Christie continuou a viajar, a conhecer diferentes hábitos, culturas e histórias e tudo isso entrou nos seus livros. Quando Poirot vive uma aventura no Expresso do Oriente, fá-lo porque a sua criadora fez essa viagem, conheceu-a bem. Se há policiais cujo enredo decorre no Egipto, é porque Agatha Christie esteve lá, viu, ouviu e sentiu o que por lá se vivia. Se encontramos escavações arqueológicas em alguns dos seus livros, tal deve-se ao facto de ter conhecido de perto essa realidade com o segundo marido. Já para não repetir que conviveu de perto com substâncias químicas que conheceu bem e que figuraram nos seus livros. São célebres os homicídios por envenenamento nos livros de Agatha Christie.

É por tudo isto uma leitura que aconselho. São muitas páginas de uma vida real que daria um romance. O tom alegre, optimista da autora falando da sua vida, mesmo quando refere momentos nada doces, enriquece o livro. E ainda que não concordemos com ela relativamente a algumas maneiras de ver o mundo (como quando fala da dependência das mulheres em relação aos maridos), a verdade é que também esses momentos nos permitem ver como o pensamento mudou e, portanto, acabam por ser interessantes. Falta-me apenas referir que o livro inclui fotografias da autora e de familiares seus e só pecam por serem poucas. Ao ter vivido tanto em tantos locais diferentes, apetecia ter quase uma imagem por episódio aludido, o que seria claramente impossível. Ainda assim, seria interessante ver mais fotografias de Agatha Christie nas viagens que fez, uma fotografia de um texto escrito por ela, por exemplo, com correcções (algo que os leitores costumam gostar de ver). Tirando isso e alguns lapsos gramaticais nesta edição portuguesa, o livro é uma delícia. Se conseguirem, deitem-lhe a mão e dediquem-lhe tempo. Não vão dá-lo como perdido.

sábado, 8 de dezembro de 2018

Canção Doce - o balanço


Canção Doce é um daqueles livros que nos faz pensar. Não fechamos o livro como se nada se tivesse passado durante a sua leitura. Pelo contrário: todo o livro é uma revelação sobre um modelo de sociedade que, infelizmente, conhecemos bem e no qual nos servimos dos outros sem querermos realmente saber o que eles querem, pensam ou vivem depois de saírem de junto de nós.

A acção decorre em Paris, num apartamento pequeno de uma família de classe média. Paul e Myriam têm dois filhos e, inicialmente, a mãe opta por ficar em casa com os pequenos, abdicando da sua carreira no Direito. Porém, à medida que o tempo passa, começa a sentir-se sufocada entre as paredes da pequena casa e vem ao cimo a inveja pela vida profissional do marido. Aos poucos vai-se desenhando na sua cabeça o desejo de regressar ao trabalho, mas deixar os filhos entregues ao cuidado de uma estranha gera nela uma ambiguidade de sentimentos difícil de suportar. Inevitavelmente, acabará por surgir a oportunidade profissional e a consequente necessidade de arranjar uma ama para os filhos. Inicia-se a busca e eis que surge Louise, aquela que é vista como a Mary Poppins dos tempos modernos de tão perfeita que é. 

O livro começa a sua história pelo fim. É-nos contado nas primeiras páginas o final da relação entre a ama e esta família francesa. O resto da história é uma analepse, ou seja, é o voltar atrás para se perceber que caminho foi percorrido até àquele momento fatídico em que Louise mata as crianças de quem cuida. Não estou a desvendar nada que estrague a leitura: é mesmo assim que o livro começa e, acreditem, essas primeiras páginas são sufocantes. São páginas dolorosas, de uma dor inimaginável. Contudo, o resto do livro é uma revelação. É um retrato cru de como tendemos a ser ilhas, de como estamos sozinhos mesmo no meio de uma multidão.

Paul e Myriam querem uma ama e têm-na. E rapidamente ela será mais do que uma ama. Será praticamente uma empregada de limpeza, uma cozinheira, uma costureira, uma palhaça... Enfim, será tudo aquilo que lhes fizer falta. E eles aceitam e agradecem que ela faça sempre mais e mais e mais. Aceitam e agradecem a sua presença constante porque isso lhes liberta o tempo. Aceitam que ela lhes mude a casa, que lhes mude os hábitos, que tome decisões que eles até nem tomariam. Tudo porque isso lhes facilita os dias e porque lhes dá a sensação de que a vida é perfeita, de que não têm de se preocupar com nada que não seja importante e que se prenda com as suas vidas profissionais, essas sim dignas de atenção.

O problema é que todos gostamos de ter a papinha feita até ao dia em que alguma coisa, por pequena que seja, começa a irritar-nos. Aí, a Fada Madrinha começa a transformar-se numa Bruxa aos olhos de quem nela principia a encontrar defeitos. E, de repente, aquela que era indispensável passa a ser facilmente descartável. Aquela que tantos elogios recebeu torna-se digna de críticas gratuitas.

Sem desvendar mais sobre o enredo, deixo-vos apenas aquilo que pude perceber com esta narrativa. Percebi que estamos muito sozinhos. Que por muito que façamos falta nesta empresa ou para aqueles colegas, poucos são os que realmente querem conhecer-nos e tentar perceber quem somos, que carga carregamos aos ombros, que dores temos em nós. Há neste livro um momento que considerei duríssimo, carregado de uma crueldade desmedida. Quando Myriam informa uma amiga de que procura uma ama, esta aconselha-a a que opte por uma estrangeira que tenha os seus próprios filhos longe, no país de origem. Isto para que possa estar sempre disponível para os filhos da patroa, seja a que horas ou a que dia da semana for. Queixa-se ela de que a ama que fica com as suas crianças é um problema porque nunca pode ficar durante a noite, nem ser avisada de uma necessidade de um momento para o outro. Como se a ama não tivesse vida, família, ou como se não precisasse nem devesse ter tempo para si. Vi neste pequeno diálogo uma crueldade e um egoísmo imensos que, infelizmente, não estão assim tão longe daquilo que conhecemos nesta sociedade louca em que vivemos. É como se as pessoas fossem objectos que se usam sempre que se quer e que se deitam fora quando já não servem. É uma inversão dos valores e de tudo aquilo que deveríamos ser. E é chocantemente verdadeiro. Paul e Myriam vêem em Louise apenas o que querem ver: alguém que lhes facilita a vida. Nem mesmo quando sabem que a ama atravessa momentos difíceis procuram ajudá-la (pelo contrário: ainda conseguem censurá-la). Não entendem que assim só fazem com que a sua família ganhe uma dimensão doentia para aquela ama que, aos poucos, vê serem cortados todos os fios que ainda a ligam ao mundo.

Com este livro, Leila Slimani venceu o Prémio Goncourt de 2016 e, em meu entender, foi muito merecido. A escrita é muito directa, sem grandes rodeios ou floreados, e assim vai bem ao encontro da mensagem que pretende passar: uma mensagem também ela crua e violenta, chocante por ser tão verdadeira. É um livro que «não mata, mas mói» e que, precisamente por isso, vale muito a pena ler.

sábado, 10 de novembro de 2018

A Quinta dos Animais - o balanço



A primeira edição deste livro deveria ter tido um prefácio do autor que, no entanto, acabou por não ser publicado. Foi descoberto anos mais tarde. Nele, Orwell explicaria que vários editores, na década de quarenta do século passado, se recusaram a publicar esta obra por perceberem que ela metaforizava lindamente o que se passava na Rússia. Ninguém queria provocar a Rússia e, portanto, era melhor deixar o livro no fundo da gaveta.

Felizmente foi publicado e cá está para nos contar uma história, uma espécie de fábula que não deixa ninguém indiferente. Creio que é daqueles livros de que todos conhecemos em traços gerais o enredo, mesmo sem os termos lido. Numa quinta, os animais iniciam uma revolução que os levará a livrarem-se dos humanos, gerindo eles próprios o espaço, o seu trabalho e tudo o que diz respeito à sua existência. Inicialmente, tudo é idílico. Todos parecem ter o mesmo objectivo e todos parecem ter o mesmo valor naquela quinta. Contudo, rapidamente as coisas começam a mudar e a igualdade entre os animais vai ficando cada vez mais diluída. Esta mudança decorre numa gradação que, se no início chega a ter graça, começa a deixar o leitor desconfortável à medida que tudo se torna mais sério. Mais: nós, que já vimos isto acontecer, percebemos todos os paralelos entre o que acontece com estes animais e aquilo que já vimos suceder em sistemas totalitários (ou no meu antigo local de trabalho...). Assistimos ao fim da liberdade de expressão, ao culto do «bode expiatório» que quer distruir o que de bom o «grande líder» fez, à repressão, aos castigos, à criação de uma força repressiva protectora dos que mandam, entre outros aspectos. Não falta ali nada, até aqueles acéfalos que dizem amén a tudo sem qualquer espírito crítico lá estão.

Ao mesmo tempo que lemos uma história com animais que falam, como nas fábulas da nossa infância, entramos também com estes bichos numa realidade terrível que só é a deles no papel. Na verdade, tais erros só acontecem na realidade humana, o que mostra que somos profundamente idiotas e que cometemos alegremente os mesmos erros vezes e vezes sem conta. Ora, esta estranheza causada pela dicotomia entre uma história impossível de se tornar realidade e uma história que é real  embora com outros protagonistas é uma das razões pelas quais este livro é tão bom. É preciso ser-se um tijolo para não se sentir o incómodo que este texto nos provoca. Só mesmo alguém que viva numa realidade completamente irreal poderá ler A Quinta dos Animais e ficar apenas pela camada superior. Há sempre mais qualquer coisa. Há sempre um espelho que nos reflecte enquanto humanos e que nos desfoca, nos distorce. Reconhecemo-nos ali, naqueles cavalos, naqueles porcos, naquelas ovelhas... mas não nos reconhecendo ao mesmo tempo. Acho mesmo que em certo momento damos por nós a pensar no animal que seríamos, se ali estivéssemos. Qual seria o nosso papel? Conseguiríamos manter o nosso espírito crítico, mesmo quando os outros nos quisessem conduzir cegamente? Conseguiríamos erguer a voz? Conseguiríamos ser mais do que as ovelhas que se limitam a repetir sem pensar a propaganda que lhes passam? Ou seríamos como elas e viveríamos felizes na mais profunda ignorância?

A boa literatura abana-nos pelos ombros. Este livro é indubitavelmente boa literatura. Em tempos tive um colega de trabalho que afirmava ser este o seu livro favorito. Agora, tanto tempo depois, percebo a razão e rio-me ao imaginar as vezes em que ele viu semelhanças entre os porcos deste texto e aqueles que nos lideravam...

domingo, 19 de agosto de 2018

Perguntem a Sarah Gross - o balanço


No final de Julho folheei o livro Perguntem a Sarah Gross nos CTT da zona quando precisei de enviar uma encomenda. Isto de se venderem livros em todos o lado permite estas coisas. Todavia, só o comprei quando tive de passar seis horas no aeroporto de Lisboa devido a um voo cancelado. 

O autor, João Pinto Coelhor, venceu o Prémio Leya de 2017 com Os Loucos da Rua Mazur e parece que já havia sido finalista anteriormente com este livro. Confesso que esta coisa dos prémios nem sempre me dá grande confiança, mas neste caso o enredo pareceu-me promissor. Além disso, a narradora é uma professora de Literatura que vai trabalhar para um importante colégio privado onde tem de lidar com problemas muito complicados. Porém, no meio daquilo que implica ensinar num colégio elitista naquela época, uma outra personagem sobressai: Sarah Gross, a directora da escola. As duas mulheres desenvolverão uma amizade peculiar e isso recordou-me a directora da primeira escola (também privada) onde trabalhei. Aliás, a fase da história em que a narradora está a adaptar-se à escola e à preparação do ano lectivo levou-me a recordar os tempos em que também eu o fiz. 

No fundo, existem neste livro vários tempos, várias vozes e várias acções dentro da principal. Existe a história de Kimberley, a narradora, que opta por refugiar-se numa escola muito longe da família para fugir de alguma coisa; e existe a história de Sarah Gross. Além dessas, existem as de todos os que com elas se cruzaram e não foram poucos. A narradora escreve no século XXI para deixar testemunho das suas vivências no Colégio de St. Oswald's no final da década de sessenta do século XX. Porém, somos também levados a um outro tempo e a um outro espaço: Oshpitzin na primeira metade do século passado. Todos conhecemos o lugar, mas parece que antes de ser baptizado como Auschwitz era assim que se chamava. E, assim, somos levados a pensar num aspecto que provavelmente sempre nos passou ao lado: nem sempre aqueles lugares malditos o foram. Antes de lá chegar todo o mal de que o ser humano é capaz, eram cidades normais, onde viviam pessoas normais e tranquilas. 

Sempre que a narração nos leva para Oshpitzin percebemos a terrível gradação entre a cidade antes da invasão e depois dela. E depois assistimos aos horrores da guerra, ao modo como aos poucos os lugares se esvaziaram de tudo e se transformaram em vazios espaços de má memória. Oshpitzin nunca mais o foi e será para sempre Auschwitz, por muitos séculos que passem. A ideia de que houve um antes só nos chegará por livros como este porque, na realidade, é tudo tão avassalador que é difícil pensar que aquele lugar não tenha sido sempre maldito. O autor é prodigioso nisso. Tendo passado algum tempo em Auschwitz e trabalhado com diversos investigadores sobre o Holocausto, a sua fundamentação histórica é sólida (no final, os Agradecimentos mostram-nos isso mesmo), tanto sobre o local antes da invasão como depois da chegada dos alemães. As descrições dos guetos, depois dos campos de concentração, do modo como tudo por lá funcionava, de como tudo foi acontecendo em crescendo até ao limite da desumanização são muito bem feitas. Além disso, o autor foi também magistral na criação de uma personagem ficcional que se mistura com todos os que tiveram de passar pelo inferno da Segunda Guerra Mundial na Polónia. Sarah Gross é essa personagem e a sua história, que poderia ser a de qualquer outro judeu, é um murro no estômago. Algumas páginas foram muito difíceis de ler. Tem de se parar e ganhar fôlego para mais sofrimento, mais dor, para mais histórias de sobrevivência no meio da loucura mais abjecta. É verdade que é apenas uma personagem, mas considerando a formação do autor no que ao Holocausto diz respeito, saber que tudo aquilo podia acontecer é tremendo. Mais: a escrita tão clara, tão crua, tão directa impede grandes divagações. O filme acontece na nossa cabeça a cada nova frase e o enredo, tão tristemente real, parece agredir-nos a todo o instante. É impossível saber o que aquelas pessoas viveram. Como alguém diz em determinado momento, o dicionário ainda não tem palavras para a dimensão do terror, do medo, da perda e da dor que ali se viveram.

Apesar de todos sabermos em traços muito gerais aquilo que a História registou, o resto é imprevisível. Falo-vos do enredo, do que sucede às personagens. O livro é muito bom também porque nesse aspecto somos levados ao sabor do imprevisível. Quando achamos que tudo rumará numa direcção óbvia, a acção dá uma pirueta. E mesmo quando, no fim, ficamos a ranger os dentes de raiva por certos finais, acabamos por perceber que a vida é mesmo assim: nem sempre os maus levam um tiro no fim. Por vezes vivem até morrerem de velhice e os bons têm de aprender a viver com isso. 

Pelo meio de toda esta história, além da História com «H» grande de que já vos falei, outros temas surgem. Racismo na América da década de sessenta do século passado, segregação, violência sexual, entre outros. Há muito dentro deste livro e vale a pena lê-lo. O autor, sem histórias lamechas, apresenta-nos tempos e realidades que ainda nos dizem muito e que, cada vez mais, vale a pena conhecer. Sabendo nós o reino de doidos em que andamos metidos, é importante não perder de vista o que já foi para que jamais volte a ser. E a verdade é que todos temos agora muito receio de que aquilo que se conquistou se perca para se repetirem os mesmos estúpidos e perigosíssimos erros de outros tempos. 

Podia ter feito um «A Menina Sugere Isto» porque sugiro mesmo, mesmo, mesmo este livro. Espero que este autor continue a escrever, que continue a deixar nos seus livros as realidades que conheceu durante o desempenho da sua função no Conselho da Europa e enquanto conheceu o pior de Auschwitz e o melhor de Oshpitzin. Acredito que haja ainda muitas histórias para contar e que ainda conseguiremos (acho que vamos conseguir sempre) surpreender-nos com o que por ali se viveu. Fiquei agradavelmente surpreendida com a sua escrita tão límpida e despretenciosa (tão diferente de um ou outro autor do momento...). Não é um livro perfeito, mas é muito, muito bom. E é brilhante na sua missão de levar-nos a um lugar passado que tem as duas caras que os loucos lhe deram: a do bem e a do mal.

E agora vou começar a namorar o livro Os Loucos da Rua Mazur, vencedor do Prémio Leya 2017, que ainda nem sequer tenho. Isso e esperar que o autor João Pinto Coelho publique mais umas coisas.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

História da Vida Privada em Portugal: A Época Contemporânea - o balanço


Nem sempre a História olhou para a privacidade dos lares por isso habituámo-nos a entender o estudo do passado como algo que olhava para a economia e para os movimentos sociais, esquecendo que dentro destes existiam indivíduos e que a sua vida ia muito além da sua integração numa economia e numa sociedade. Felizmente, isso acabou por mudar e alguns historiadores começaram a compreender que o estudo das diferentes épocas ficava definitivamente incompleto se não se olhasse para aspectos tão privados como a moda, os sonhos e ambições da população, a alimentação, as crenças religiosas, a vida em família, as ocupações lúdicas, a estrutura das habitações, entre outros muitos aspectos.

Esta História da Vida Privada é composta por quatro volumes que, receio, já não sejam assim tão fáceis de encontrar. Podem ser utilizados como livros de consulta, mas resulta muito bem ler cada volume de uma ponta a outra. A visão que assim formamos de uma determinada época torna-se mais completa e consistente, o que me parece importante.

O terceiro volume, aquele que escolhi ler em primeiro lugar por tratar de uma época (de 1820 a 1950) que figura nos romances camilianos e queirosianos, apanhando ainda a I República e os primeiros tempos do Estado Novo, permite-nos ficar com uma ideia muito concreta do que eram as vivências mais íntimas da população durante aqueles cento e trinta anos. Uma coisa interessante que retive foi a grande evolução das liberdades individuais até à década de 30 do século XX. A República prometia mudar a sociedade e começou mesmo a fazê-lo, alterando medidas relativas ao divórcio, à participação das mulheres na sociedade, entre outros aspectos. Contudo, a chegada do Estado Novo fez com que o relógio português andasse irremediavelmente para trás e com que o papel de dona de casa fosse o único aceite pelo regime para as mulheres. 

Ter uma noção do que aconteceu durante a época abordada em cada volume é importante porque nenhum indivíduo age fora do período histórico em que lhe coube viver. Não esperem, contudo, ser situados historicamente nestes livros, pois para isso existem os outros, os que se dedicam à História económica, política e social. No entanto, é mesmo importante ter uma noção básica de quais os grandes marcos destes cento e trinta anos analisados neste volume de modo a percebermos que o que era constante na vida privada de 1820 poderia já não o ser em 1950, precisamente porque muito mudou entre uma baliza temporal e a outra. 

O único aspecto menos positivo que verifiquei neste livro prende-se com algumas expressões que não são muito claras e que não são alvo de nota de rodapé. Não sei se será por se tratar de conhecimento pressuposto (como a referência aos «cabelos à Joãozinho»), mas senti a falta de algumas notas de rodapé que, mais do que indicarem as fontes, explicitassem melhor alguns aspectos referidos. Também senti que poderia haver mais ilustrações. Nestes volumes, elas são de dois tipos: a preto e branco nas páginas de texto e a cores nas páginas destinadas à exibição de imagens capazes de ilustrar o assunto abordado. Ora, as imagens coloridas, agrupadas em páginas em diferentes secções do livro, mais não são do que a repetição a cores e com melhor resolução daquelas que já havíamos visto a preto e branco com legendas nas páginas de texto. Creio que, em vez da redundância de fotografias, seria mais enriquecedor a inclusão de novas imagens, diferentes das que já haviam sido vistas no momento da leitura do texto.

Excluindo estes dois aspectos, asseguro-vos de que é um livro extraordinariamente interessante. Aborda muitas áreas da vida dos portugueses de oitocentos e da primeira metade de novecentos e permite-nos ver o quanto a vida mudou não só durante aquele período, mas também de meados do século XX até agora. Para quem, como eu, tem família noutros pontos do pais, o livro torna-se ainda mais interessante por revelar pormenores relativos às diferentes regiões, como, por exemplo, que pão se comia no Minho, como se realizavam casamentos na Beira Alta, por que motivo o catolicismo teve mais dificuldade em chegar às gentes do Alentejo, entre outros aspectos. Gostarei de ler o resto da colecção, embora não já de imediato, porque ainda se trataram de quase quinhentas páginas de informação interessante para digerir. Mas não deixo de vos sugerir estes volumes.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Diário de Um Zé Ninguém - o balanço


Ora, depois de um livro muito mau, nada sabe tão bem como ler um livro muito bom. E este livro é muito bom. 

O “Zé Ninguém” do título em português mostra bem quem é o autor deste diário: um homem perfeitamente comum, com um dia-a-dia absolutamente normal e, portanto, sem nada de muito relevante a registar num diário. Porém, é precisamente a mediocridade da existência deste autor que confere tanto humor a este livro. É que se, por um lado, ele não é ninguém que mereça ter, por tratar-se de vida ou obra de relevo, o seu diário publicado, por outro ele valoriza tanto o seu diário e os acontecimentos  irrelevantes que nele relata que o confronto destes dois aspectos fazem com que o leitor ache ainda mais graça ao livro. Mas ele é mesmo o único que vê alguma importância neste registos quase diários. Em determinada altura alguém chega a arrancar algumas páginas deste seu caderno para atear o lume ou para embrulhar restos de comida...

O protagonista, o “eu” deste livro, é um homem de meia-idade que tem a vida mais normal e aborrecida que se possa imaginar. De vez em quando acontecem-lhe algumas situações que perturbam a sua existência perfeitamente comum de funcionário “lambe botas”, mas mesmo esses são pouco dignos de nota. O que quero dizer é que o humor deste livro está em todos estes aspectos: no facto de o próprio título revelar que este diário pertence a alguém pouco digno de destaque, mas tratar-se ainda assim de um tipo de escrita (a diarística) que geralmente só se publica quando a vida do autor pode interessar ao leitor ou quando, pelas reflexões feitas, a obra pode ser relevante para o público; o humor também é visível na ingenuidade do próprio protagonista/autor do diário, recordando o adolescente Adrian Mole cujos diários fizeram furor vários anos depois da publicação desta obra; o facto de este homem tão desinteressante ter sobre si (e sobre o seu diário) uma ideia completamente diferente da que os outros parecem ter também provoca o riso, pois ele é o único que não percebe que os trocadilhos que faz não têm graça nenhuma e que o que escreve não interessa a ninguém porque, bom, escrever uma carta à lavadeira sobre uns lenços que perderam a cor não é coisa digna de figurar num diário que interesse ao público; o humor está também nas personagens que rodeiam o narrador, como o amigo que deixa de ser visto por estar doente e que não avisa ninguém de que o está, censurando depois os amigos por não o terem visitado (e, quando eles dizem que nem sabiam que estava doente, ele responde que a notícia saíra na Gazeta do Ciclista, como se toda a população tivesse a obrigação de ler tal coisa)... Poderia, acreditem, continuar a enumerar elementos que conferem humor a este texto, mas teria de ser ainda mais reveladora do que nele acontece e acho que vocês não querem isso. Basta-me dizer que vale mesmo a pena lê-lo e que com ele garantirão umas horas bem passadas e muito divertidas. É humor simples, sem recurso a grandes enredos e confusões. O risível está precisamente nisso: na simplicidade de tudo, no facto de ser tudo tão prosaico que nem parece ser digno de nota. É um livro que se lê em poucas horas e que só queremos continuar para ver o que tem para nos contar este autor do diário no dia seguinte. Mas porquê se é tudo tão normal como a vida de qualquer um de nós? Precisamente por isso.  Leiam que vão perceber o que quero dizer. 

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Una Historia de La Guerra Civil Que No Va Gustar a Nadie - o balanço


Já acabei de ler este livro há vários dias, mas como andei (e ando) em crise de inspiração e de vontade de escrever, só hoje venho falar-vos dele.

Na minha opinião, ler sobre guerras não é nada fácil. Em primeiro lugar porque há o nosso lado emocional que, quando não é totalmente posto de lado (algo que só acontece mesmo se o autor for muito mau), faz com que experimentemos alguns sentimentos que nos atordoam. Ninguém gostará de ler sobre milhares de mortos, sobre torturas, sobre crimes hediondos que ficam sem castigo. Por isso, ler sobre conflitos bélicos exige um estômago que nem sempre está preparado para tais leituras.

Por outro lado, uma guerra nunca é simples. Envolve avanços e recuos, estratégias e estrategas, gente leal e desleal, causas e consequências e, ainda, um desmesurado número de nomes de intervenientes que ora estão de um lado, ora se passam para o outro. Fora isso ainda temos os nomes de cada tipo de armamento, a designação e a explicação de cada estratégia utilizada, as datas em que se conquistou determinada vitória ou um redondo fracasso. Não, ler sobre guerras não é nada fácil.

Contudo, este livro de Juan Eslava Galán facilita-nos a vida no que à Guerra Civil espanhola diz respeito. Talvez seja por isso o «que no va gustar a nadie» do título: é que com esta história todos perceberão o enorme desastre que foi aquele conflito e todos repudiarão ainda mais o arrastar ao longo do tempo e apenas por orgulho uma guerra que estava mais do que perdida. Permite-nos, este livro, perceber como começou e como se desenrolou a Guerra Civil espanhola iniciada em 1936. Mais: como colaboraram nela as outras nações e de que modo foram determinantes para o seu desenlace. O autor deixa ainda bem claro, através de uma escrita muito simples, que papel teve o povo neste conflito e como o sexo masculino se transformou em constante alimento fugaz de uma guerra que estava perdida. Percebemos como um dos lados partiu em vantagem e como o outro teve de se adaptar às circunstâncias e aprender a lutar já com a guerra bem avançada. Percebemos, também, como Franco soube contornar todos os obstáculos que pudessem impedi-lo de chegar ao poder e de tornar-se no «Generalíssimo». Espantamo-nos com a facilidade com que se fuzilavam dezenas e dezenas de pessoas cujos corpos, muitas vezes despejados em valas comuns, nem chegaram a aparecer. Arrepiamo-nos com o bombardeamento de lugares como a tristemente conhecida Guernica e como, afinal, mais do que estratégia militar espanhola, tal acontecimento serviu à Alemanha para testar os seus aviões e a capacidade de bombardeamento, ganhando com isso conhecimentos que viriam a ser utilizados na já prevista Segunda Guerra Mundial. Mas, sobretudo, recordamos que tudo isto aconteceu há menos de cem anos aqui ao lado e terminamos a leitura perguntando o que é mais óbvio: como raio foi isto possível?

Este é, sem dúvida, um livro fabuloso para quem quer começar a ler sobre a Guerra Civil espanhola. É claro, está bem organizado e abrange tanto a parte militar da guerra quanto as consequências da mesma sobre os civis (por exemplo, a fome que assolou as populações nos territórios controlados pelos republicanos, como foi o caso de Madrid que resistiu estoicamente ao cerco feito pelos fascistas). Além disso, o autor escreveu outros livros que, usando o mesmo tom, seguem a história espanhola ao longo dos tempos que se seguiram à guerra, tanto durante a repressão franquista quanto depois, já na fase de transição. Escreveu, ainda, livros que explicam outros conflitos (como as Guerras Mundiais e a Revolução Russa), ou religiões como o Cristianismo. 

O mais importante de tudo, parece-me, é que este livro abre portas: quem quiser ler mais sobre a Guerra Civil espanhola poderá, a partir dos conhecimentos com ele adquiridos, chegar mais facilmente a outras leituras (até porque a bibliografia final é riquíssima); se, por outro lado, o leitor quiser ficar por aqui, já terá uma ideia muito clara do que aconteceu e do que levou à vitória de Franco no final do conflito. Por tudo isto, o balanço é positivo e a menina recomenda este livro.

sábado, 20 de janeiro de 2018

Vinte Horas de Liteira - o balanço


Fiz uma Licenciatura em Estudos Portugueses ainda no tempo em que elas duravam quatro anos e consegui passar por ela sem cruzar-me com Camilo e com Pessoa. Extravagante, não é? Basicamente, durante muito tempo, o que conheci destes autores resumiu-se ao que me foi apresentado no ensino secundário pela melhor professora do mundo. No entanto, nem o seu talento para o ensino conseguiu fazer os meus quinze anos gostarem de ler o Amor de Perdição, que, na altura, achei a maior das estopadas.

Só já depois desses anos de Licenciatura, já como leitura recreativa e sem qualquer fim profissional, resolvi dar outra oportunidade ao Camilo. Li já vários dos seus livros, reli, inclusivamente, o Amor de Perdição, mas, de todos, aquele de que mais gostei foi este Vinte Horas de Liteira.

Além de haver um encontro muito propício ao surgimento de narrativas várias (encontro esse na liteira que se refere no título e durante as tais duas dezenas de horas que durou a viagem), estas são feitas maioritariamente por um amigo do narrador/escritor que, a propósito de tudo e de nada, vai contando mais uma e outra história que, diz ele, poderão servir ao amigo escritor nuns novos livros ou folhetins. Obviamente, este último bebe-as, tomando-as como inspiração para o seu trabalho de escrita. Mas a graça do livro vai além destas histórias encaixadas dentro da história principal. As referências ao trabalho de escrita e à forma como os autores são recebidos em Portugal, o humor que se exprime nas palavras tanto do narrador/escritor/personagem como do interlocutor que lhe oferece boleia na liteira, as palavras dirigidas directamente ao leitor como se o narrador estivesse simultaneamente a comunicar com o amigo e com quem já lê o que ele narrou durante a viagem e que o autor escreveu enriquecem grandemente o texto, transformando-o em mais do que a soma de alguns contos. Além disto, o final do livro apresenta uma conclusão e, mais interessante, um epílogo que nos explica o que aconteceu com parte das personagens das narrativas secundárias feitas pelo amigo do narrador.

A dualidade interessante e curiosa entre a capacidade de reflexão e de dissertação do narrador e a simplicidade do interlocutor que, ainda assim, adapta o estilo da narrativa consoante conte uma história de amor ou de outro tema enriquece sobejamente o livro. Aliás, os diálogos entre os dois amigos são, por vezes, tão espontâneos que parece mesmo que estamos a assistir a uma conversa entre duas pessoas que se conhecem e que trocam histórias conhecidas ou vividas entre si. Desde pedidos de esclarecimento, a interrupções, a correcções, tudo o que é próprio de uma interacção oral aparece aqui. Claro que, além disso, temos a riqueza de vocabulário de Camilo que, para alguns pode representar dificuldade, mas que se supera olhando para o contexto (que é sempre o melhor caminho a seguir). Também temos a sua fina ironia, a referência sarcástica a alguns elementos conhecidos... Enfim, tudo isto para dizer-vos que este livro tem que se lhe diga do início ao fim. Começando pela situação em que a conversa tem mesmo de surgir, passando pela forma como uma das personagens alimenta deliberadamente a bagagem de histórias do narrador e que, um dia, verá vertidas em folhetim, e pelo modo como em determinada fase da obra o próprio narrador experimenta na pele o final de um dos contos iniciados pelo amigo, tudo faz sentido e tudo é bom. É um bom livro e é Camilo a mostrar por que motivo é ainda hoje um dos nossos maiores. Acredito que este Vinte Horas de Liteira fosse muito peculiar na época em que surgiu pela primeira vez. Contar histórias é coisa que sempre se fez, mas contá-las e ouvi-las tendo como fito o trabalho de escrita, partilhando-se conselhos que o escritor deve seguir ao passar do oral ao escrito, enfim, aproveitar histórias curtas para abordar a questão da inspiração, da escrita e do trabalho que ela exige parece-me muito moderno. 

Por tudo isto, é um livro que sugiro. Além de ser um dos nossos maiores autores, é um livro riquíssimo em histórias e em personagens, mas também em aspectos mais técnicos e já entrando no campo da narratologia e da teoria literária. Seja como for, é uma boa leitura e, se já antes estava voltada para perdoar o autor pelo tormento que foi o Amor de Perdição nos tempos da adolescência, agora sou eu que lhe peço perdão pela minha profunda e ingénua ignorância.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

A Família Golovliov - o balanço


Há personagens literárias que são inesquecíveis, quer pela grandeza dos feitos, quer pela pobreza de espírito. Umas ficam na memória pelas melhores qualidades e outras ainda pelos piores defeitos. Lembro-me de ficar impressionada pela crueldade de Heathcliff em O Monte dos Vendavais, por exemplo. Recordo-me da maldade e do desdém com que Mildred Rogers trata o protagonista do romance Servidão Humana. Lembro-me de ficar emocionada com a sinceridade de Sancho Pança ao admitir que o amo é louco, mas que o quer mais do que às fibras do seu próprio coração e que, por isso, não o pode deixar. Estas são, por tudo isto, algumas das personagens literárias que, ao serem tão bem construídas, ao aproximarem-se tanto daquilo que nos torna humanos, ficam na nossa memória. Creio que são precisamente estas figuras capazes de espelhar aquilo que podemos ser as que mais nos arrebatam durante a leitura e que transformam alguns livros em verdadeiros «criadores de emoções», como se aquelas personagens fizessem de facto parte da nossa vida e, assim, nos enervassem ou nos comovessem realmente.

Em A Família Golovliov encontramos, como o título afirma, uma família. Além disso, encontramos um lugar: Golovliovo. Ambas as coisas parecem ser suficientes para uma criação literária que provoca no leitor as mais variadas emoções. Se é inevitável rir perante alguns absurdos, também não se consegue evitar a raiva que provoca tanta mesquinhez e hipocrisia juntas numa única personagem. Porfírio, normalmente tratado por «sanguessuga» ou «pequeno Judas», sempre deixou a mãe desconfortável. Havia algo no seu olhar, na sua calma que a preocupava. Ao mesmo tempo e embora soubesse desde sempre que aquela criatura era dissimulada, Arina Petrovna, a mãe, sempre se deixara enredar nas suas palavras melífluas, fazendo exactamente o que ele queria e quase sem se dar conta disso. Não que esta mãe seja o cúmulo da ingenuidade, nada disso. É, até, bastante matreira e está  bastante atenta ao que acontece à sua volta, na tentativa de conseguir os maiores lucros e, assim, aumentar os seus rendimentos. O facto de Arina Petrovna ser uma das personagens que se deixa levar pela hipocrisia de Porfírio é menos a prova da sua simplicidade e mais a de que ele é, efectivamente, um grande manipulador. 

Creio que não há uma página deste livro, no qual se conta a história desta família, que não revele a personalidade mesquinha, hipócrita e manipuladora de Porfírio. Escondida atrás da religião, do temor a Deus, de orações recitadas sem verdadeira fé ou ditas diante dos ícones, mas contrariadas por acções desprezíveis no minuto seguinte, esta personagem passa todo o tempo da narrativa à procura de colher benefícios. Mais: procura-os mesmo onde ainda não é assim tão evidente que possam estar. Pretendendo ser um bom cristão, um homem de fé e um familiar preocupado, Porfírio não dá ponto sem nó e, aos poucos, vai conseguindo sempre o que quer, ao ponto de acumular ganhos consideráveis. É um «farejador» capaz de lucrar sempre com a desgraça alheia, seja a dos irmãos, a dos filhos ou mesmo a da mãe. Passa os dias entretido em cálculos absurdos que, além de procurarem manter controlados os ganhos e os gastos, imaginam formas de aumentar os primeiros e de diminuir os segundos. Faz contas absurdas que o levam a perceber coisas estapafúrdias como quanto ganharia ele se todas as vacas da zona morressem à excepção das suas e se estas começassem a produzir o dobro do leite. Desenvolve cálculos cujas parcelas podiam ser «e se...», pretendendo apenas manter o cérebro ocupado, ainda que nenhuma daquelas contas vá realmente ajudá-lo na vida diária.

Não pensar é, precisamente, uma das tarefas que as personagens desta obra mais procuram desenvolver. E por isso jogam ao burro, falam sobre o tempo, usam provérbios e frases feitas até lhes esgotarem o pouco sentido que têm. Também por isso muitas usarão a vodka como forma de escapar à vulgar e triste realidade. Evitar pensar é mesmo o mais importante para as personagens que nasceram e viveram em Golovliovo e que, mais tarde ou mais cedo, lá vão para terminar a vida. Aliás: podemos afirmar que aquela propriedade familiar que Porfírio tanto deseja que se torne sua é mesmo um lugar de morte, um espaço onde a capacidade mental se deixa adormecer até que também o corpo morra. Apenas Porfírio parece ir sobrevivendo a tantas sepulturas que à sua volta vão nascendo, sempre afirmando que ele é piedoso, que ele respeita Deus, que ele é humilde e virtuoso. Na realidade, Porfírio é o mais apodrecido de todos quantos nos passam à frente durante a leitura. É ele que concentra em si a capacidade de influenciar os outros e apenas com palavras que são, sempre, repetitivas, vazias, aborrecidas. Se Porfírio vir alguma hipótese de lucrar com uma dada situação, então tentará fazê-lo, mas não com o uso da força: apenas com o uso de palavras doces carregadas de veneno e de más intenções. Se um familiar morre e ele é o herdeiro, Porfírio levará a herança até ao último botão, escudando-se em Deus e nas suas vontades, rezando depois de mãos postas pela alma que partiu e que era tão boa, mas... Com ele há sempre um «mas». Mesmo quando ora pelos outros, esta personagem consegue falar mal deles, dizendo coisas como: a mãezinha foi tão boazinha e teve uma morte tão santa, mas... Podia ter escolhido outra altura para morrer que nesta não me dava jeito nenhum, a malvada! Porfírio é um hipócrita e chegamos a um ponto em que não percebemos se esta sua hipocrisia é consciente ou inconsciente, isto é, se é por deliberada maldade ou se, por outro lado, ele só sabe ser assim. A verdade é que esta é daquelas personagens capazes de nos deixar à beira de um ataque de nervos. Ora quase nos mata de tédio com as suas longas conversas desprovidas de interesse, ora quase nos mata de raiva por ser tão mesquinho ao ponto de querer tirar lucro de tudo, seja seu ou não. Mesmo quando só lhe resta a solidão, mesmo quando já não existe o fito de deixar o que é seu a outros, Porfírio continua numa espiral de ganância, dizendo a quem pode que nem tudo o que parece é e que se a uns pode parecer que até tem uns dinheiritos, tudo contado pode ser que até nem tenha nada e que ainda precise de ajuda. Mesmo sabendo nós, leitores, que ele é um grande proprietário e que podia, com os seus haveres, ter tido uma vida sossegada, sem se afadigar em conseguir mais e mais e mais.

Se lerem este livro, verão que não mais esquecerão esta figura. Verão que a forma dissimulada como procura entrar na consciência dos outros e alterar os seus actos é muito enervante. Mas encontrarão, sobretudo, uma história bem contada, divertida em vários momentos e capaz de nos fazer pensar na questão da hipocrisia, sobretudo daquela que, ligada à religião, mostra alguns homens que se julgam mais merecedores do bem e sem a necessidade de darem nada em troca. Como disse, não sabemos verdadeiramente se Porfírio tem consciência desta sua ganância e da sua hipocrisia crescente ou se considera, por outro lado, tudo muito normal e dentro daquilo que tem mesmo de ser. É uma incógnita. O que ele é, sem dúvida, é um tipo chato que é perfeito enquanto personagem, que cumpre o seu papel num livro fantástico e que, provavelmente, consegue como poucos um lugar na memória dos leitores. 

Este é, portanto, um dos livros que vale a pena ler em 2018. Foi reeditado recentemente pela Relógio D’Água, por isso o meu conselho é o de que não esperem muito para ir conhecer Porfírio e a sua terrível mãe que desconhece o amor maternal, limitando a sua tarefa a «atirar uns ossos» aos descendentes, esperando que não mais a aborreçam. E mais não vos conto. Leiam o livro. Contudo, deixo ainda um conselho: se na vossa edição estiver, como naquela cuja capa aqui deixo, uma introdução de James Wood, leiam-na no fim ou ficarão a conhecer demasiados pormenores da história ainda antes de a começarem.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Istambul - o balanço


Terminei ontem o livro Istambul - Memórias de Uma Cidade, de Orhan Pamuk, autor vencedor do Nobel da Literatura de 2006. Gostei muito do início, mas depois surgiram-me alguns «mixed feelings». E porquê? Já lá vamos. Primeiro deixem-me falar sobre aquilo de que gostei mais.

No fundo, o que Orhan Pamuk fez com este livro foi um entrançado que uniu as suas memórias às de uma cidade que muito mudou durante o período da sua infância e juventude, mas que já estava em grande mudança quando nasceu. O ponto de partida é o de que a nossa existência está irremediavelmente ligada a um lugar e que, por isso, ele nos afecta, nos molda, nos muda. Istambul agiu sobre ele tanto ou mais que a família em que nasceu ou os estudos que fez. A cidade, a sua melancolia, a sua dualidade entre orientalismo e ocidentalismo, a queda do império otomano e as marcas que permaneceram em todos os lugares por onde passou, mas sobretudo nas pessoas que tiveram de aprender a viver numa nova cidade, numa Istambul em constante mudança e em busca de identidade, enfim, a soma de todos esses aspectos interferiram na sua personalidade. É por isso que este livro tem memórias do autor e factos ou sensações sobre a cidade: ele nunca deixa de ver-se como um ser humano envolvido num determinado local num determinado período de tempo e, portanto, a sua história pessoal é também feita da história da cidade. 

Ao longo do livro, vamos sendo apresentados a aspectos de Istambul que, de alguma forma, exerceram algum tipo de influência sobre Pamuk. Quer fossem os vestígios do antigo império otomano que os ocidentalistas queriam apagar ou os prédios recentes que substituíram os velhos edifícios, mudando o horizonte da cidade, nos trinta e sete capítulos do livro, o leitor pode percorrer a história da cidade e tentar perceber a luta que nela se travava entre o passado grandioso e o futuro incerto, dividido entre oriente e ocidente, sem se saber muito bem se o modelo a seguir devia ser o europeu ou outro. 

A acompanhar todo o texto estão dezenas de fotografias a preto e branco, algumas do próprio escritor e outras de conhecidos fotógrafos (isso surge explicado num texto final). O facto de serem a preto e branco não tem apenas que ver com o facto de serem antigas, mas também com o sentimento que Istambul causa em Pamuk: um sentimento sem outras cores que não as duas das fotografias, como se a cidade estivesse mesmo encravada num tempo passado sem perceber bem que outro caminho seguir. Portanto, o leitor consegue acompanhar visualmente as memórias evocadas, refira-se ele a antigas casas do império otomano ou mesmo a pinturas de visitantes que ao longo do tempo se deixaram apaixonar pela cidade. Deste modo, acedemos às suas vivências, ao modo como elas se ligam a Istambul e vemos, inclusivamente, como eram certos pontos da cidade noutros tempos.

Claro que, observando o título da obra, não podemos esperar outra coisa que não memórias de Istambul. No entanto, inicialmente ficamos com a sensação de que as memórias do autor, ainda que ligadas às da cidade, terão um maior destaque. No entanto, em alguns capítulos, a leitura torna-se mais aborrecida porque o autor fala de aspectos que estão muitíssimo afastados do que conhecemos e porque não me parece que a contextualização seja assim tão bem feita. Quando, por exemplo, fala de certos autores antigos e caídos em desgraça, penso que se alonga demasiado e, como não são escritores de que falemos todos os dias, fica a sensação de que valia a pena saber um pouco mais sobre eles e sobre a importância que têm na literatura turca. Mais: por vezes, Pamuk escolhe um tema e disserta sobre ele de uma forma que me soou repetitiva. Algumas ideias surgem repetidas ao longo destas memórias, mas não de uma forma muito interessante. 

Contudo, a característica do livro que mais me decepcionou e cuja responsabilidade não é tanto do autor como das editoras prende-se com a necessidade de o leitor precisar, hoje, de um mapa da cidade que lhe mostre onde são os subúrbios e onde está o centro; que situe espacialmente alguns dos bairros pobres que são nomeados, mas que não sabemos onde estão; que indique em que zonas da cidade ficavam as diferentes casas onde Pamuk viveu. Se nos diz que, mudando a situação financeira da família, mudou várias vezes de casa e se nos mostra que os diferentes apartamentos e as vistas que observava pela janela foram importantes para si, seria importante para o leitor poder perceber esse seu itinerário. Não bastam os nomes dos lugares se não conseguimos relacioná-los com um espaço. Claro que poderíamos procurar nós essas informações, mas considerando a quantidade de nomes referidos, seria um trabalho moroso que mataria o prazer que a leitura tende a trazer.

Assim, esta falta de um mapa que nos facilite a leitura, a repetição de algumas ideias e a falta de informações que levem o leitor comum a perceber melhor a importância daqueles que o autor refere como sendo importantes para a cidade (isto acontece mais no campo literário) tornam por vezes a leitura aborrecida. Mesmo assim, o livro é interessante até porque compreendemos que uma cidade tão embrenhada em mudanças constantes exerce um poder incrível sobre os seus habitantes, especialmente os que nela nascem e crescem. Creio que precisava, apenas, de que aqueles aspectos referidos fossem trabalhados de outro modo. Mesmo assim, para quem gosta de ler sobre outros lugares, é um bom livro. Não esperem propriamente um livro de viagens daqueles a que estamos habituados. Esperem as memórias de um lugar que passou por muito. O título não engana.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Um Eléctrico Chamado Desejo e Outras Peças - o balanço


Já acabei de ler este livro há uns dias, mas depois destas quatro peças de Tennessee Williams fiquei com a sensação de que é um autor que, além de se ler com muitíssimo gosto, deixa tanto em que pensar que são precisos alguns dias para digerir o que lemos.

Falei-vos, há algum tempo, da primeira peça deste volume: Gata em Telhado de Zinco Quente. Essa foi, provavelmente, a peça que mais me tocou. Nunca vi uma encenação deste texto, mas achei tudo tão plausível, tão verdadeiro. Há ali situações que facilmente encontramos na vida de todos os dias: a entrega a vícios como forma de desistência; os abutres que só esperam a hora de poderem apropriar-se do que a outros pertence e que usam a bajulação como forma de conseguir o que querem; aqueles que se tentam ajustar à realidade, nem que isso os mantenha num equilíbrio tão instável e desagradável como será o zinco quente sob as patas de uma gata. 

Ainda que as duas peças que se lhe seguem também sejam muito boas, não me senti tão tocada por elas. Subitamente, no Verão Passado é, ainda assim, um texto em que há uma linha muito fina entre a loucura e a sanidade. Tão ténue é a linha que chegamos ao fim do texto sem saber quem diz a verdade, pois o que nos é contado é demasiado bizarro para que nisso acreditemos sem antes nos questionarmos. A morte de um filho, aquilo que se descreve como a dor maior, é o ponto de partida para um texto em que as personagens têm de confrontar-se com a verdade, com aquilo que pode ser a verdade e com o que não querem que seja a verdade. Também aqui encontramos os tais abutres que desejam subir na vida à custa de perdas alheias, algo que me pareceu ser recorrente nas quatro peças que compõem este volume. 

Verão e Fumo é um texto que nos apresenta uma personagem com uma sexualidade florescente que parece aperceber-se demasiado tarde dessa mudança, deixando passar aquilo que gostaria de ter e que esteve sempre ao seu alcance. Parece ser a história de alguém que assume tais responsabilidades ao longo da vida e desde uma idade tão precoce que depois deixa pelo caminho uma parte de si, perdendo um comboio que não poderá voltar a apanhar.

A última peça deste livro tem um título para lá de conhecido: Um Eléctrico Chamado Desejo. Muitos já a terão visto no teatro ou mesmo alguma das suas adaptações cinematográficas (e algumas meninas recordarão o Marlon Brando em t-shirt branca). A peça coloca em rota de colisão duas realidades muito distintas: o fim de uma sociedade aristocrática e a emergência da modernidade, daquilo que substituiria o estado de coisas anterior. A realidade em que as grandes famílias e as suas fortunas moviam a América é representada por Blanche DuBois; aquela em que a força alcança aquilo a que antes se chegava pelo dinheiro surge-nos com Stanley, o cunhado de Blanche. Estas duas forças antagónicas vão, desde o início do texto, enfrentar-se, medindo forças num crescendo de tensão que culmina num final terrível em que um aniquila o outro física e psicologicamente. No fundo, o que ali está são duas versões do mundo: a que foi ficando no passado e a que o futuro fez presente. Temos de um lado a «princesinha» que se viu desapossada de tudo e o bruto que tem perspectivas de futuro naquela nova América da primeira metade do século XX. É um combate que só um pode vencer e não é difícil imaginar quem será, já que o tempo não pode voltar para trás e regressar a uma ordem que já estava praticamente ultrapassada. Aliás, o «sonho americano» nem existiria se essa tal realidade aristocrática, a das grandes famílias com grandes plantações e muitos seres humanos a servi-la, não tivesse desaparecido. O problema (e é o que nem sempre percebíamos nas aulas de História) é que as transições não costumam ser fáceis e se tudo sabe bem a quem sobe na vida, tudo sabe muito mal a quem desce e se vê perder uma série de coisas que dava como certas. Blanche perdeu tudo, mas não sabe viver sem nada e por isso cola-se como uma lapa a todos os que possam ajudá-la a continuar a viver. Além disso, pretende continuar a viver numa fantasia muito desajustada ao meio onde tentou inserir-se. Os vestidos demasiado pomposos, as tiaras e outras jóias, o modo como esconde sempre a sua idade para poder continuar a viver presa ao passado não se enquadram na nova América e Stanley faz questão de a confrontar com a falta de lugar para ela nesse novo mundo em formação. É, por tudo isto, uma peça marcante. Tal como todas as outras referidas, lê-se muitíssimo bem, mas precisa de ser trabalhada dentro de nós porque somos confrontados com aspectos em que poderíamos nunca ter pensado antes. Como disse atrás, as aulas de História sempre nos mostraram um mundo em mudança, mas tendemos a esquecer-nos de que na voragem da mudança estão seres humanos que com ela sofrem ou que dela tiram dividendos.

Tennessee Williams foi uma das melhores surpresas que os livros me reservaram este ano. Não lia textos dramáticos há bastante tempo (excepção feita aos que fazem parte do Programa de Português do Básico e Secundário) e já quase nem me lembrava do modo fabuloso como os dramaturgos talentosos conseguem destacar tantos aspectos importantes da nossa existência e deixar-nos incomodados com eles. Senti com Tennessee Williams aquilo que em 2003 senti quando li Shakespeare pela primeira vez: que estava perante alguém que conhecia os problemas humanos e que sabia mostrá-los com uma mestria difícil de suplantar. Embora um tenha escrito nos séculos XVI/XVII e outro no século XX, ambos conseguiram olhar para a realidade, olhar para o ser humano, ver o que o move, o que o comove e o que o destrói, fazendo disso um espectáculo que deixa o leitor/espectador com a obrigação de analisar tudo profundamente. Não se fica indiferente perante as suas histórias mais poderosas. Há autores assim, capazes de ver dentro daquilo que somos, dos defeitos e virtudes que temos em comum e que, seja em que século for, interferem profundamente na nossa vida. Assim são os bons escritores.

domingo, 8 de outubro de 2017

La Mula - o balanço


La Mula é um livro do autor espanhol Juan Eslava Galán, conhecido entre outros aspectos por dotar os seus textos de humor e ironia. Neste caso, a acção decorre durante a Guerra Civil Espanhola que opôs republicanos e falangistas. O protagonista é um homem chamado Castro, que iniciou a sua vida militar pelos «rojos», mas que optou por mudar de lado e combater ao lado das tropas de Franco. Era responsável pelas mulas da sua companhia, às quais cabia a missão de transportar material bélico de umas trincheiras para outras. 

Um dia, Castro, enquanto andava a apanhar espargos, encontra uma mula perdida. Mansinha, dócil, resolve levá-la para junto das restantes de que toma conta e levá-la consigo para casa quando tudo terminar. Dá-lhe o nome de Valentina, pois era muito valente por andar pelos campos junto a um cenário de guerra sem se assustar, e faz dela uma amiga. Valentina torna-se o símbolo de uma vida pós-guerra na paz do lar. Castro era um homem de aldeia, trabalhador rural, quase analfabeto. Consigo, o destino de Valentina seria o de trabalhar no campo, mas isso também significaria que o conflito terminaria e que poderia regressar a casa. Ao longo do livro falará muitas vezes com a mula, sempre com um carinho enorme e a esperança de que ela venha a ficar com ele. Para que isso aconteça, vai constantemente adulterando os formulários que preenche: em vez das vinte e cinco mulas que se encontram ao seu cuidado, apenas dá conta de vinte e quatro, mantendo Valentina em segredo para que não seja tomada por mais um dos animais pertencentes ao exército.

Mas Castro e os seus companheiros de guerra também servem para mostrar como era a vida destes soldados, como se trocava facilmente de lugar entre republicanos e falangistas porque num dos lados a comida era melhor do que no outro; como as cidades e aldeias ficaram destruídas ao mesmo tempo que outros negócios floresciam, como a venda de objectos roubados às vítimas da guerra (há inclusivamente uns brincos de ouro ainda sujos de sangue) e as casas de «meninas»; como a propaganda falangista distribuía medalhas a uns quantos heróis de guerra (sendo Castro, por um equívoco, um deles), mandando-os novamente para o perigo da frente de batalha; como algumas meninas casadoiras procuravam esquivar-se aos avanços de soldados sem futuro, aceitando apenas os que pretendessem continuar a carreira militar após a guerra, pois esses poderiam fazer delas umas «señoras» com bons vestidos e uma boa vida (o amor pouco importava nestes casos); como as populações espanholas ficaram numa miséria tão grande que é mais do que óbvio o contraste ente as cerimónias de propaganda ou de celebração da vitória dos falangistas e os pobres desgraçados famélicos que continuam a tentar subsistir nos campos, rezando por um pedaço de pão duro; como amigos se viram separados por uma ideologia política que muitas vezes nem seguiam, mas pela qual se viram obrigados a lutar; como os próprios soldados, carne para canhão, viviam em condições tão miseráveis que um banho era um luxo desconhecido, ao contrário dos piolhos que eram o que mais tinham sobre si. Ou seja: entre o humor da escrita do autor, conseguimos perceber uma série de situações que nada têm de risível e que são provocadas pela guerra.

O protagonista ver-se-á, em determinado momento, coroado como um herói de guerra, sem perceber muito bem como. Todavia, na verdade o que lhe importa mesmo não é a medalha que Franco lhe coloca no peito: é a mula Valentina e o facto de poder ou não levá-la consigo quando o conflito terminar. Pelo meio tem uma noiva, mas até ela se vai ao trocá-lo por outro militar com maiores hipóteses de ter um futuro risonho. Assim, só lhe resta mesmo a mula. A guerra não lhe trouxe mais nada além da medalha (de que não fazia questão) e de Valentina, a quem quer muito. 

Um dia declara-se no rádio a rendição dos «rojos» e vitória dos nacionalistas. Terminou a guerra, será tempo de regressar a casa. Mas antes ainda é necessário ir mostrar o triunfo em algumas povoações. Castro bem pede licença para ir ver a família, já que o comboio passará junto à sua aldeia, mas não lhe é concedida. De coração nas mãos, passará esses dias a pensar no modo como poderá levar Valentina para longe dos outros animais do exército. Quanto ao fim da história, não conto mais nada.

Quando pensamos que a Guerra Civil Espanhola aconteceu aqui ao lado há menos de um século, instala-se uma sensação de estranheza. Mas este conflito existiu mesmo e foi muito dramático. Em La Mula, Galán procurou dar ao leitor uma história meio anedótica que consegue simultaneamente deixar perceber o que a guerra fez à vida de todos: soldados e suas famílias, populações locais e, no fim de contas, ao próprio país. Castro, por exemplo, fica a saber que o pai foi preso e que a mãe e a irmã passam muitas dificuldades, algo que até aí nunca tinha acontecido. Por isso, no meio do humor, da comicidade da linguagem tão vernácula dos combatentes, há uma tristeza que nunca desaparece. Como diria Pessoa, são «Malhas que o Império tece» e que sempre acabam por enredar os mesmos.



domingo, 13 de agosto de 2017

A Vida Secreta dos Livros - o balanço


De vez em quando, pelo meio de tantos livros bons com que nos cruzamos, lá aparece um que é completamente «meh». E este é assim, muito «meh». Meeeesmo «meh». E só não digo que é «meh meh» para não soar a «ovelhês».

É um livro sobre livros, é um facto. Conta algumas histórias sobre autores e sobre obras conhecidas, como a recusa de várias editoras ao primeiro livro da saga Harry Potter ou a morte e ressurreição de Sherlock Holmes por pedido dos leitores. O problema é que tirando uma ou outra, são todas mais do que conhecidas. A sensação com que fiquei foi que, sem pesquisa, até eu podia escrever este livro e atrevo-me a dizer que ele sairia melhor. E não sou eu que estou a ser convencida: é o tom que o autor usa que é francamente mau. Vejamos: todos os leitores gostam de saber cusquices em torno das obras conhecidas que já leram ou que ainda querem ler, mas nenhum leitor gostará lá muito que esses episódios sejam contados recriando conversas que ninguém estava lá para ver, estados de espírito que são fruto da imaginação do autor e não factuais. Eu quero que me contem o que sabem da história e não que tentem recriar personagens e ambientes porque isso dá ao texto um carácter ficcional que lhe tira a verosimilhança que, neste caso, faz falta por serem precisamente acontecimentos reais. Se tudo aquilo fosse imaginação, se a recusa do primeiro romance de Jane Austen fosse ficção e parte da acção de um livro, claro que as conversas teriam de ser recriadas, claro que os buracos teriam de ser preenchidos. Se se tratasse de um romance histórico, esse tom teria de existir. Todavia, este livro apresenta-se como pretendendo contar histórias peculiares sobre livros, autores e personagens que se tornaram conhecidos. Não como uma série de ficções em torno desses três aspectos. Até admito que os diálogos pudessem existir se fossem feitos a partir de cartas ou de diários conhecidos, mas não assim. Porém, para perceberem melhor o que quero dizer, deixo-vos um exemplo retirado da história relacionada com o Lazarilho de Tormes:

     «D. Diego voltou a ler aquela missiva do rei. Não havia dúvidas. Não importava o ter acabado de regressar do seu posto de embaixador de Roma: o imperador instava-o a aceitar um novo cargo, e com urgência. D. Diego pousou a carta em cima da secretária e ficou a meditar em silêncio. Por fim, tomou uma decisão. Abriu uma gaveta, tirou de lá um monte de folhas escritas, envolveu-as com cuidado numa pele de couro para as proteger da chuva... e dos olhares indiscretos.
      Levantou-se e chamou um dos criados da casa.
      - A minha capa - pediu. Quando lha trouxeram, D. Diego Hurtado de Mendonza embuçou-se nela e saiu para a rua.
      Estava frio e uma chuva fina caía insistentemente, embora o pior fosse o vento. D. Diego ia armado e era um homem decidido, pelo que não se preocupava com o facto de a noite ter já tomado conta da cidade. [...]» (sublinhados meus nos excertos em que me parece que a imaginação do autor dá completamente cabo do texto)

Isto é o início do texto dedicado ao que se presume ser a história do surgimento de Lazarilho de Tormes, famosa novela pícara espanhola de autor anónimo (editada por cá pela Sistema Solar, podem ver a edição aqui). Se o autor se limitasse a contar-me o que se sabe sobre a obra e aquilo que as investigações têm revelado, ainda entendia. Até podia ter um tom divertido que não me importava. Agora, imaginar dias de chuva e secretárias e gavetas e atitudes que são pura imaginação distrai do que importa e até lhe retira interesse.

Há livros sobre livros e sobre leitura que são muito, muito bons. Este parece ter sido escrito para quem não sabe nada de nada ou então para ser lido em duas horas de almoço para empurrar um hamburguer ou outra fast food qualquer. Porque, para mim, este A Vida Secreta dos Livros é fast food e nem sequer é da que sabe bem. Não recomendo nem um pouco, mas se quiserem ver como é um livro «meh», espreitem-no.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Viagens com o Charley - o balanço


Terminei ontem a minha primeira leitura de um livro de Steinbeck. Neste caso, a narrativa de uma longa viagem que o autor fez pela América na companhia de Charlie, um Cão de Água de doze anos.

Steinbeck, autor já reconhecidíssimo no momento em que resolve escrever este livro, percebe que passou a vida a escrever sobre a América sem que, na realidade, a conhecesse assim tão bem. Por isso mesmo, decide arranjar um veículo grande que lhe permitisse dormir e cozinhar lá dentro e partir para um périplo que lhe permitisse chegar ao fim conhecendo melhor o seu país e as suas gentes.

O objectivo da viagem é nobre e admirável: depois de uma vida a escrever sobre um país, Steinbeck decide ir tomar o pulso às diferenças entre estados, paisagens, povos americanos. Contudo, fica sempre a dúvida: será que no final da viagem conhece melhor os americanos e o próprio país do que ao partir da sua casa em Nova Iorque? É que, se por um lado, esteve em lugares por onde nunca havia passado e falou com gentes com quem nunca tinha trocado duas palavras, o que viu na viagem foi apenas uma amostra. E assim, seguindo este raciocínio, uma viagem nunca está verdadeiramente terminada nem um país fica completamente esgotado. Mais ainda um país tão grande e variado quanto aquele. 

Mais: o autor-narrador conseguiu traduzir nas suas palavras a ideia de que podemos viajar sem ficar a conhecer rigorosamente nada dos lugares por onde passamos e onde paramos. Um dos exemplos que ilustram tal ideia prende-se com as vias rápidas, no sentido em que passamos por elas em direcção a um destino e sem nada para ver à volta. A velocidade é maior do que nas estradas mais pequenas, mas a paisagem é outra assim como é outra a atenção prestada. As estações de serviço são iguais e por muito que converse com quem lá pára, tal não chega para perceber como é aquele país, qual a realidade norte-americana. Como disse anteriormente, o autor admite ter chegado ao fim com a sensação de que não respondeu a todas as perguntas que tinha quando partira e que regressa a casa com ainda mais questões.

A escrita é bonita e oscila de forma interessante entre o humor, o sarcasmo e as descrições mais poéticas de paisagens, lugares e maneiras de existir com as quais o narrador se cruzou. Não aborrece: é cativante. Por isso mesmo, enquanto a viagem prossegue, nós viajamos também e qualquer livro de viagens que o consiga é um bom livro. Quilómetros percorridos, páginas viradas e a viagem continua.

Podia falar-vos de vários momentos do livro, mas vou escolher aquele que me pareceu mais significativo e talvez a parte da viagem que mais terá mostrado ao autor que por muito que percorra milhas e milhas de chão, nunca conhecerá verdadeiramente nem a terra nem as pessoas. Aliás, creio que será o episódio mais tocante de toda a obra. No sul, e tratando-se de uma viagem feita na década de sessenta do século XX, o autor toma conhecimento de umas mulheres a quem chamavam as «Chefes de Claque» e que mais não eram do que pessoas desprezivelmente racistas que diariamente se plantavam à porta de uma escola onde tinha sido aceite a matrícula de dois meninos negros. Assim, o que faziam era esperar a chegada das duas crianças e dos adultos que as acompanhavam para soltarem a língua e insultarem-nos odiosamente. O insulto estendia-se aos poucos pais de crianças brancas que insistiam em ter os seus filhos na mesma escola que as outras duas crianças. A actividade matinal daquelas mulheres já era uma espécie de atracção local que conseguia até ser espalhada pelos jornais, atraindo os olhares de todos os que não queriam perder tal espectáculo. 

O autor assistiu, então, à tal degradação da humanidade, mas pôde ainda conhecer o medo que os negros sentiam, o terror em que viviam. Mesmo quando conheciam alguém que não os via como diferentes, era praticamente palpável o pânico sedimentado por anos de racismo, de segregação. Pôde ainda falar com alguns daqueles racistas e num dos casos não conseguiu esconder a sua revolta, o que culminou num confronto que não acabou pior porque aconteceu em terreno dominado por si. 

Quando o assunto é uma viagem, nem sempre o que há para mostrar é bom ou completamente bom. Infelizmente, quando se conhece uma determinada realidade existe por vezes um choque. Perante isso, há duas opções: guardar essa má experiência para si mesmo ou contá-la ao mundo. Steinbeck, que afirma peremptoriamente o desejo de conhecer melhor o seu país, revelou mesmo no final do seu livro uma das facetas mais cruéis e desprezíveis daquele lugar. O facto de não se limitar a falar da paisagem outonal, da beleza dos lugares visitados, das peculiaridades deste ou daquele estado confere verosimilhança à narração, já que uma viagem é isso mesmo: uma porção de experiências que podem ser melhores ou piores, mas que olharemos de fora até nos deixarmos apanhar por elas. O olhar do autor-narrador foi, por isso, um olhar estrangeiro até certo ponto. Mesmo sendo um americano a conhecer terras americanas, adoptou um olhar distanciado, crítico. Tentou conhecer as gentes tão americanas como ele, mas de outros pontos do país, com outras vivências, maneiras de estar, crenças e, por isso mesmo, diferentes. Um outro episódio curioso que mostra este afastamento do estranho que chega relativamente a quem está é visível quando o autor visita a zona onde cresceu e se cruza com alguém com quem manteve amizade noutra fase da vida. Instado a regressar ao lugar que já foi o seu, tentou simpaticamente explicar que nem ele nem o amigo de infância eram as mesmas pessoas que haviam sido, que muito já tinha sido vivido e que agora os separava. Tentou explicar que não se regressa ao lar precisamente porque não voltamos os mesmos. Todavia, não foi entendido e esta sua forma de perceber a mudança que o tempo provoca em nós foi entendida como soberba, como mania de grandeza e desprezo pelos que outrora foram os seus amigos. E eis que assim a viagem até um lugar que foi o seu mostrou ao autor como os lugares acabam e nos expulsam tal como certos bivalves cospem o que não lhes interessa reter.

Por fim, importa-me dizer-vos que há momentos em que a gargalhada sai de cá do fundo. Certas aventuras do Charlie, o modo como o narrador descreve alguns episódios, o sarcasmo com que encara aquele cão que por vezes parece ter comportamentos humanos são muito divertidos. Por isso disse anteriormente que a escrita oscila deliciosamente entre o humor e a seriedade com que certas coisas são descritas e narradas. É curioso o modo como pelo menos uma vez o autor se serve do cão para conhecer as gentes de um determinado lugar por onde passa, como o Charlie cumpre precisamente a sua missão. Estão bem um para o outro podemos dizer. Aliás, toda esta viagem mostra uma sintonia tocante entre cão e dono e uma amizade bonita, mesmo que o dono por vezes se refira ao Charlie com muito sarcasmo. A verdade é que se o cão não tivesse tido um papel importante neste périplo, o seu nome nem figuraria no título. 

Viagens com o Charley abriu-me as portas para um autor de quem nunca tinha lido nada, mesmo tendo vários livros seus. Gostei tanto que sei que vou continuar a querer conhecer esta obra que foi galardoada com um Prémio Nobel da Literatura. Serão textos de outro tipo nos quais a viagem não será propriamente o tema principal, mas quero lê-los mesmo assim. Assim, se para iniciar uma viagem só é preciso dar o primeiro passo, também para chegar a um autor só é preciso ler um livro seu. Depois virão outros passos e outros livros até chegarmos gloriosamente ao final do caminho.